Tenho repetido aos leitores em mensagens eletrônicas: não, não e não, não vou transformar em rotina o trabalho de ombudsman não autorizado que durante bom tempo desenvolvi aqui e me sobrecarregou. Ombudsman não autorizado é expressão que criei para explicar o que significava analisar os jornais da região, impressos e digitais, de modo a pressioná-los contra a parede de eficiência informativa. Estou de volta ocasionalmente ontem porque uma desperdiçada manchetíssima envolvendo a General Motors de São Caetano assim o determina.
Existe uma explicação objetiva para a tomada da decisão de deixar o ombudsman não autorizado adormecido o quanto puder. Não darei conta do recado de outras incursões se os parceiros de jornada regional forem novamente esquadrinhados.
Os erros, os equívocos, as contradições, tudo que diga respeito a imperfeições, continuam aos borbotões. Diria mais: o padrão tem sido recorrentemente danoso e por isso mesmo devo poupar as publicações no que seja possível, sem que pareça compadrio. Até porque não tenho obrigação de ser ombudsman não autorizado. É uma prerrogativa minha, profissional, sujeita a intervalos de tempo sob meu arbítrio.
Tudo porque me tornaria repetitivo aos olhos dos leitores, embora a essência para quem é do ramo de comunicação se tornasse mais e mais interessante. Cada capítulo de ombudsman não autorizado é a expressão da experiência vivida.
Nomes aos bois
Se entendem que estou a exagerar quando afirmo que a Imprensa da região anda descuidada demais entre outros motivos porque as condições de trabalho são cada vez piores, vou dar nomes aos bois ao mencionar três casos que ocorreram em dois dias sequenciais.
O Diário do Grande ABC definiu pesos diferentes a questões contrastantes – e errou flagrantemente. Houve preocupação em poupar os leitores de duas notícias desagradáveis na área econômica da mesma forma que houve esmero em transformar em manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) uma notícia precariamente positiva.
É recorrente a vocação do Diário do Grande ABC em confrontar s fatos econômicos na tentativa inútil de que ao poupar os leitores de notícias desagradáveis – menos quando envolve os interesses editoriais da publicação – estaria contribuindo para reduzir a carga de complicações do ambiente regional. Pura bobagem, como o tempo já está cansado de provar.
Não seria a reciclagem de algo como “Meu Grande ABC” -- mote com o qual o Diário do Grande ABC ancorou campanha de valorização da região nos anos 1990 -- que salvaria a pátria regional. Muito pelo contrário. Enquanto o ambiente não for disseminadamente de inquietação em maior dose do que é percebido de forma individual, as possíveis saídas a uma guinada em direção a novos tempos serão sempre adiadas.
Sociedade fragmentada
Uma sociedade fragmentada só se dá conta para valer de que a situação exige terapia de choque quando a casa já ruiu e pouco se tem a fazer. Prevalece um sentimento de frustração, como se o fracasso nos negócios e na busca de trabalho não agregassem componentes fora de controle individual.
Mas, vamos então aos fatos. No mesmo dia em que o Diário do Grande ABC publicou manchetíssima de primeira página (o que é um pleonasmo) sobre o saldo industrial de trabalhadores da região em janeiro, após mais de duas dezenas de meses de resultados negativos, conforme pesquisa do conglomerado Fiesp/Ciesp, a Panex anunciava oficialmente o fechamento da unidade em São Bernardo. A decisão culminou na demissão de mais de duas centenas de trabalhadores. A notícia sobre a Panex foi publicada na versão digital do jornal ABCD Maior e apenas no dia seguinte no Diário do Grande ABC.
Sinceramente, qual é a notícia mais importante ante circunstâncias econômicas e sociais que nos abatem após um período de euforia manipulada pelo consumismo e pela farra fiscal sem fôlego de maratonista?
A resposta é a seguinte: é claro que uma reportagem com respaldo de dados do acervo mais recente de abates de fábricas na região para dar à evasão da Panex conotação estrutural dos fatos e não um registro circunstancial, como se não houvesse cordéis macroeconômicos a expor as vísceras regionais.
Mesmo se considerando que o Diário do Grande ABC desconhecia a decisão da direção da Panex, a manchetíssima do saldo de emprego industrial não se sustentaria. E o peso dessa decisão não seria apenas o contexto de fragilização das relações trabalhistas na região em nível muito superior ao da maioria dos municípios e regiões brasileiros.
Vou explicar: na mesma edição de suposta redenção do emprego industrial na região o Diário do Grande ABC deu de forma burocrática, escondida, quase envergonhada, uma notícia que, por ser furo de reportagem (somente nesta semana o Estadão escreveu sobre o assunto) deveria ganhar o topo de importância da primeira página.
Manchetíssima indiscutível
Trata-se do mais que emblemático anúncio da direção da General Motors em São Caetano, repassado por um sindicalista ao repórter do jornal. A empresa norte-americana chegou a um estágio em que a expressão “dá ou desce” talvez seja a mais apropriada para revelar a relação entre capital e trabalho nas montadoras de veículos da região.
Em suma, ou os trabalhadores aceitam novas regras do jogo, que reduzem os custos de produzir veículos na empresa sediada em São Caetano, ou a vida útil da unidade fabril será bastante curta em termos de competitividade e – claro -- de resistência. As montadoras costumam deixar os locais menos competitivos de forma gradual. Sem alardes. As unidades locais de GM, Volkswagen, Ford e Mercedes-Benz estão aí como provas. Já foram muito maiores em produção e geração de emprego. E serão muito menores nos próximos anos.
Ou seja e sem delongas: a grande manchetíssima daquele dia do Diário do Grande ABC jamais seria o saldo de 150 trabalhadores industriais, segundo dados da Fiesp/Ciesp. Tanto que nenhum dos grandes veículos da Capital se deixou levar pelo balanço positivo de números absolutos mais expressivos no Estado de São Paulo a ponto de alçarem reportagem em forma de manchetíssima.
Seria injusto afirmar que o Diário do Grande ABC age isoladamente ao procurar adocicar o ambiente econômico e social da Província do Grande ABC, embora sempre caia em contradição porque os fatos negativos são avassaladores. Os demais veículos seguem a levantar a bola e transportá-la em direção a um atacante que a fará balançar as redes após bicicleta sensacional.
Vendedores de ilusão
Querem um exemplo não tão recente mas emblemático dessa postura panglossiana? Recorram aos arquivos e vejam o que os jornais da região publicaram durante as chegadas de novos shoppings na região, há menos de três anos, e observem o que disseram as autoridades de plantão. Comparem com o que produzimos neste espaço. Façam isso. Estava tão na cara que os empresários iriam quebrar a cara ao acreditar no marketing dos vendedores de ilusão que não é preciso ter parceria com Deus ou o Diabo para antecipar os fatos. É a macroeconomia, idiotas. E no caso específico da região, é o desfiladeiro do setor industrial, idiotas.
Entenderam agora porque, após 31 análises que esmiuçaram coberturas jornalísticas dos veículos locais, decidi tornar seletiva a aparição do ombudsman não autorizado? Poderá parecer petulância dizer que a maioria dos leitores não sabe ler jornais. Poderá parecer esnobismo afirmar que a maioria dos jornalistas não sabe ler jornais. Não estou nem mesmo me referindo aos recônditos das entrelinhas que dizem mais que as linhas propriamente ditas. Estou indo direto ao ponto: a contextualização das informações geradas a cada jornada de trabalho exige ações imediatas, gestadas ao longo do dia até o momento de finalizar a edição. Essa compreensão que vai muito além do conhecimento fragmentado das redações.
Uma General Motors define prazo para se tornar moderna ou perecer em São Caetano é muito, mas muito mais notícia digna de manchetíssima do que a criação de 150 empregos industriais não mais que circunstanciais numa região que perdeu, no período de déficits acumulados, mais de 40 mil postos de trabalho no setor.
É por essas e por outras que o ombudsman não autorizado vai seguir amordaçado e sob controle ditado pelo pragmatismo de não se perder mais tempo com um cultivo sem futuro.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)