Economia

Muro de Tecnologia separa
pequenas e grandes empresas

DANIEL LIMA - 05/04/2000

Um preocupante Muro de Tecnologia separa as indústrias do Grande ABC. Como no caso dos habitantes cada vez mais divididos entre excluídos e incluídos, também as empresas industriais da região são protagonistas de situações completamente distintas. De um lado está o contingente restrito mas poderoso de grandes e médias empresas, principalmente as relacionadas ao setor automotivo, investindo em tecnologia de produtos e de processos para enfrentar a globalização. De outro lado está o numeroso séquito de pequenas empresas, absolutamente desconectadas das grandes transformações por que passa o setor industrial, no qual produtividade rima com competitividade. Esse verdadeiro Exército de Brancaleone industrial pode estar com os dias contados. O trabalho também confirma a dependência da economia regional da vitalidade da indústria automotiva.


Essa é a interpretação de LIVRE MERCADO para o Caderno de Pesquisa Nº 2 da Agência Regional de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC, apresentado no final de março em Santo André. O estudo se refere à pesquisa feita em 1996 com base nas atividades industriais da região durante o período 1994-1996. Isso significa que o quadro, apresentado com quatro anos de defasagem, certamente se agravou. Aquele foi o período mais fértil da economia brasileira nos anos 90, a bordo do boom consumista do Plano Real e de uma moeda nacional valorizada e estabilizada, depois de mais de três décadas de inflação epidêmica.


Os resultados da pesquisa não surpreendem quem acompanha a performance da economia do Grande ABC. Como LIVRE MERCADO tem revelado historicamente, a queda de participação no bolo do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) acumula-se ano após ano. Como ICMS tem forte relação com Valor Adicionado, que é a capacidade de gerar riquezas, não parece difícil constatar as perdas regionais. Além disso, o Grande ABC tem sofrido derrotas no consumo de energia elétrica industrial, enquanto o Interior soma resultados positivos. Também no quesito Potencial de Consumo, organizado pela Target Pesquisas, empresa especializada na atividade, a região sofreu duro revés nos últimos 10 anos, com queda de 21,5%. Para cada US$ 100 disponíveis em 1990, o morador da região passou a ter US$ 78,50 este ano, garante o estudo da Target.


Com tudo isso, entre muitos indicadores que não deixam dúvida sobre a atrofia do conjunto da economia do Grande ABC, seria muita desconfiança acreditar que um trabalho sério pudesse apresentar resultados diferentes. Os estudos revelados pela Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC analisam de forma superficial mas importante os resultados da Paep/ABC (Pesquisa da Atividade Econômica Paulista para o Grande ABC), uma parceria entre o Seade (Fundação Sistema Estadual de Análises de Dados), braço estatístico do governo do Estado, e o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos do Grande ABC.


Debate difícil


Os resultados do Caderno de Pesquisa não provocaram maiores debates pela simples razão de que a maioria dos convidados só recebeu o material à entrada do auditório do Semasa. Dessa forma, não houve tempo suficiente para leitura mais detalhada. Situação diversa dos componentes da mesa, que receberam os estudos 48 horas antes. A executiva Nádia Someck, assessora do prefeito de Santo André, Celso Daniel, que coordena a Agência de Desenvolvimento, garante que na apresentação do Caderno 3, que vai tratar do processo de terceirização, os exemplares serão distribuídos com antecedência. Assim, será possível aprofundar o debate.


De qualquer forma, mesmo com alguns rompantes ufanistas de quem pretende ser agradável aos demais convidados, o encontro deixou como saldo positivo a maior consciência de que o Grande ABC vive momentos de transformações decisivas em sua principal base econômica, responsável por mais de 70% do PIB regional, e precisa agilizar alternativas para evitar que se agravem as consequências de um mundo produtivo dividido em duas partes.


Talvez o ambiente da apresentação da pesquisa se tornasse efervescente se contasse com a participação de empresários industriais de pequeno porte -- aqueles que estão vivendo na própria pele o lado desanimador do Muro de Tecnologia. Nenhum representante da Anapemei (Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas Industriais) compareceu ao encontro. A entidade foi criada em Santo André há mais de duas décadas para tentar escapar da condição de salsicha entre as grandes empresas e o Novo Sindicalismo de Lula. São poucas as empresas fundadoras da Anapemei que sobreviveram no período, por mais que tenham sido orientadas sobre as tendências macroeconômicas. O empresário e consultor Cláudio Rubens Pereira, presidente da Anapemei em várias gestões, preparava análises especiais para o quadro de associados. A explicação mais simples para o fracasso dos associados da entidade que viraram estatística de mortalidade empresarial e também para aqueles que estão sobrevivendo no conjunto industrial da região é que os pequenos negócios no Grande ABC, como de resto no Brasil, jamais tiveram suporte de políticas de desenvolvimento sustentado de qualquer esfera de governo. Também pesou, principalmente na região, o fato de que os pequenos da cadeia automotiva, que formam a grande parcela das indústrias, foram tratados pelos sindicatos nas conquistas trabalhistas, durante muitos anos, como gigantescas montadoras de veículos. Por isso tudo, e também porque se está pagando o preço da abertura comercial de um País onde a economia de mercado sempre foi subjugada pelo dirigismo do Estado, as pequenas indústrias do Grande ABC estão com a corda no pescoço.


Médias viram pequenas


Cláudio Rubens Pereira, da Anapemei e durante pouco mais de um ano executivo da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Emprego de Santo André, afirma que não foi convidado para a apresentação da pesquisa. Ele não se surpreende com os números que colocam os pequenos na marca do pênalti econômico. “A pesquisa provavelmente não captou, mas muitos dos pequenos negócios de hoje eram médios negócios anteriormente. São empresas que passaram por processo de enxugamento forçado, de miniaturização compulsória e cuja saúde econômico-financeira não é das mais seguras” -- afirma o especialista no segmento.


O estudo da Fundação Seade revela com ênfase que cerca de um terço das unidades industriais da região pertencia em 1996 a empresas que realizaram algum tipo de inovação de produto ou de processo no período de 1994 a 1996. “Embora essas unidades representassem apenas 35% do número total, o peso de sua participação econômica na região é bastante significativo: cerca de 80% do Valor Adicionado da indústria do ABC originaram-se dessas unidades. A razão desse descompasso entre a proporção do número de empresas e a proporção no Valor Adicionado deriva de uma das principais características da economia regional: a elevada participação das grandes empresas na indústria. O perfil da indústria regional, conforme apresentado no Caderno de Pesquisas Nº 1, indica que as micro e pequenas indústrias são responsáveis por 14% do Valor Adicionado total do setor industrial, enquanto que as grandes indústrias geram 60% deste mesmo Valor Adicionado” -- afirma o relatório.


Ao ressaltar o um terço de indústrias que foram obrigadas a recorrer a investimentos para enfrentar a globalização, e só o conseguiram porque de uma forma ou de outra se capitalizaram, o estudo minimiza a grande maioria de 65% do universo produtivo da região à margem do processo de inovação. O comportamento faz parte da estratégia do Consórcio de Prefeitos e de secretários municipais de Desenvolvimento Econômico de amenizar a complicada situação econômica da região. O prefeito Celso Daniel, que dirige a Agência de Desenvolvimento, costuma correlacionar ao que chama de baixa estima qualquer avaliação que enfatize os problemas regionais em grau de importância superior às vantagens comparativas.


O estudo da Fundação Seade pode não ter dado ênfase às pequenas indústrias como problema grave, mas não se deixou levar pelos números favoráveis do um terço de empreendedores que estão do lado saudável do Muro de Tecnologia. “A proporção média de unidades inovadoras não se mantém quando comparamos a performance de cada uma das divisões industriais da região. Verificamos que há importantes diferenças no quesito inovação. Não há desempenho inovador homogêneo entre as diversas divisões industriais” -- diz o relatório.


Como era de se esperar, por força da capacidade de geração de riquezas da indústria automotiva, quatro divisões industriais prevaleceram no estudo da Fundação Seade como muito inovadoras ou inovadoras. São os casos de montagem de veículos, máquinas e material elétrico, metalurgia básica e produtos químicos. Os três setores suplementares ao de montagem de veículos estão diretamente relacionados ao setor automotivo. Inclusive o químico, fortemente representado no setor de tintas automotivas. Essas divisões, segundo o relatório, respondem por 62% do Valor Adicionado do Grande ABC, 50% do pessoal ocupado e 21% das unidades industriais da região.


O relatório destaca também que empresas pertencentes ao grupo de montagem de veículos que inovaram em processo entre 1994 e 1996 e tinham intenção de prosseguir inovando representavam quase 100% do Valor Adicionado do setor. Nada surpreendente para quem acompanha atentamente a ebulição do setor automotivo, onde a concentração de montadoras e de autopeças acentua-se a cada fusão e a cada aquisição de companhias dos mais diferentes tamanhos e produtos.


O relatório prossegue na análise dos dados ao identificar três subsetores que inovaram moderadamente ou pouco, casos de máquinas e equipamentos, produtos de metal, borracha e plástico, e apenas um que praticamente não inovou, no caso alimentos, entre 1994 e 1996. “Estas quatro divisões responderam por 27% do Valor Adicionado, 32% do pessoal ocupado e 46% das unidades locais da indústria do ABC. Embora tenham relevância econômica expressivamente menor que as divisões inovadoras, se destacam pela presença de um número de pequenas unidades produtivas” -- afirma o trabalho do Seade.


À sombra


O estudo identifica alguns grupos em que micro e pequenas (até 99 funcionários) teriam destacada performance nos indicadores de inovação. “Poderiam ser estes grupos de micro e pequenas empresas com potencial acima da média para dar respostas promissoras a estímulos regionais de ordem financeira, tecnológica, organizacional e institucional. Se assim fossem, poderiam ser estes objetos preferenciais de políticas ou experiências de desenvolvimento local do Grande ABC” -- sugere o relatório.


Por ter sido produzido por profissionais que desconhecem os meandros da economia industrial do Grande ABC, a sugestão da Fundação Seade não tem a consistência prática desejada. Afinal, as micro e pequenas empresas que mais inovaram vivem basicamente na órbita das grandes montadoras e autopeças; portanto, com fortes ligações empresariais com quem comanda a economia regional e que por tradição não tem relação substantiva com o Poder Público. Dependem mais do ritmo de produção de veículos do que de políticas domésticas. Estão acima da conjuntura regional. O próprio prefeito Celso Daniel reconheceu, durante intervenção no encontro, a dificuldade de estabelecer políticas públicas com as grandes empresas, que trafegam institucionalmente por outras esferas de poder, e das pequenas, pulverizadas. Integram o grupo de satélites das montadoras de veículos os setores de fabricação de tintas, vernizes, esmaltes, lacas e produtos afins; fabricação de peças e acessórios para veículos automotores; fabricação de produtos de plástico e fabricação de material eletrônico básico. A exceção na lista apresentada é a fabricação de sabões, detergentes, produtos de limpeza e artigos de perfumaria, cujo peso na matriz produtiva da região é baixíssimo, de apenas 2% do Valor Adicionado.


O estudo trata residualmente da indústria de móveis da região, um dos muitos ícones do besteirol dos ufanistas que ainda chamam São Bernardo de Capital Nacional dos Móveis e dos Automóveis. Não surpreende a constatação de que os moveleiros da região, fortemente concentrados em São Bernardo, representam apenas 0,84% do Valor Adicionado, espécie de PIB regional. Tampouco o fato de ter apresentado fraco desempenho inovador, com apenas 23% de suas pequenas empresas terem investido em processo produtivo no período 1994 a 1996. Essas e outras situações do setor foram mostradas em Reportagem de Capa de LIVRE MERCADO na edição de maio de 1998, que, entre outras constatações, revelou que grande parte dos moveleiros da região vende produtos feitos em outras regiões do País.


Embora João Batista Pamplona, coordenador-técnico da equipe responsável pelos estudos, tenha se mostrado surpreso com a importância econômica do setor de fabricação de tintas, vernizes, esmaltes, laca e produtos afins, o resultado apenas confirma outra Reportagem de Capa de LM, que esmiuçou a atividade na região sob o título Grande ABC é a Capital das Tintas, de setembro de 1998. Há em torno de São Bernardo e de Diadema cinturão de pequenas e médias indústrias do setor que abastecem em grande escala as automotivas.


Os dados da Paep cotejaram o que chama de esforço inovador das indústrias do Grande ABC e do Estado de São Paulo. “Quando se compara o grau de inovação de toda a indústria do Grande ABC com outras regiões do Estado de São Paulo, nota-se que o ABC se destaca como tendo desempenho inovador superior. Enquanto 80% do Valor Adicionado de toda a indústria do ABC foram gerados por unidades locais pertencentes a empresas que fizeram alguma inovação em produto ou processo entre 1994 e 1996, nas outras regiões do Estado, inclusive no Município de São Paulo, essa proporção atingiu cerca de 65%. A intenção de inovar também estava presente de forma mais intensa na indústria do ABC. Na região, 81% do Valor Adicionado foram gerados por unidades pertencentes a empresas que desejavam introduzir inovações de produto e processo entre 1997 e 1999, enquanto em todo o Estado de São Paulo a proporção era de 67%. Embora com diferença menor, o ABC continua mais inovador quando se toma como parâmetro o número de unidades locais inovadoras. Em média, 35% das indústrias do Grande ABC fizeram alguma inovação em produto ou processo entre 1994 e 1996. No Estado de São Paulo inteiro, a proporção foi de 27%” -- afirma o relatório da Agência Regional de Desenvolvimento.


Envelhecimento


O que o relatório não informa, e o reparo acabou por irritar Pedro Paulo Martoni Branco, ex-diretor da Fundação Seade e hoje contratado como consultor da Agência de Desenvolvimento do Grande ABC, é que o Grande ABC só apresenta maior índice de inovação tecnológica, comparativamente ao restante do Estado, porque está sob liderança econômica das montadoras de veículos. Pressionadas pela globalização, as automobilísticas resolveram investir bilhões de dólares para recuperar plantas industriais obsoletas que, com o mercado autárquico que prevalecia no País, ofereciam produtos de baixa qualidade. Eram as carroças referidas pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello.


Como a força da indústria automotiva no Grande ABC se irradia para praticamente toda a cadeia produtiva local, é evidente que o florescer de investimentos em produtos e processos vicejou na região, superando as demais localidades de industrialização posterior, mais diversificadas e menos suscetíveis à abertura dos portos. Enfim, o Grande ABC contava com matriz produtiva muito mais envelhecida em relação aos demais parques produtivos do Estado. Evidentemente, precisou investir mais na renovação. Martoni Branco tomou a palavra para contestar o próprio relatório e o aparte de LIVRE MERCADO. Disse, em termos ásperos, que o mais importante é que os investimentos foram feitos — como se o mencionado rejuvenescimento industrial das montadoras e das satélites não embutisse essa constatação. Martoni Branco preferiu jogar para a platéia.


Maria do Carmo Romeiro, representante do Imes (Instituto Municipal de Ensino Superior) de São Caetano e diretora do instituto de pesquisa da escola que produz históricos dados sobre o desemprego em Santo André, São Bernardo e São Caetano, também participou da mesa de trabalhos e fez rápida avaliação sobre os resultados do relatório. Não fez ressalvas ao trecho sobre a supremacia da região nos investimentos com inovação de produtos e processos no Estado, mas lembrou o aspecto perverso contido no outro lado da moeda desse desenvolvimento tecnológico: correlacionou-o com o crescimento do desemprego na região e com a contração no número médio de trabalhadores por empresa. A informação não consta dos dados da Paep, mas recentemente foi revelada pelo professor Antonio Joaquim Andrietta, também do Imes. Maria do Carmo Romeiro procurou abrandar a situação de contraste na indústria regional, que solidificou o Muro de Tecnologia, ao afirmar que os dados divulgados descaracterizam suposta degeneração da economia regional. Um discurso exatamente dentro do figurino que visa a vitaminar a imagem institucional do Grande ABC, defendida por agentes públicos municipais.


Maria do Carmo só não citou as fontes que identificam as perdas regionais como ação degenerativa. O verbete é forte demais e seu uso é inadequado para retratar o que os agentes públicos e acadêmicos se esforçaram para esconder durante a reunião; isto é, o Grande ABC está em crise porque a perda de 125 mil postos de trabalho com carteira assinada no setor industrial entre 1989 e 1997 não é simplesmente um acidente estatístico gerado pela tecnologia -- incorpora também, em larga escala, a depauperação dos pequenos negócios.


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