Imprensa

“Culpado por ser inocente”
é bom título para um livro?

DANIEL LIMA - 02/03/2017

Duvido que os sentimentos de cidadania, de revolta contra os mandachuvas e os mandachuvinhas locais, e de tudo que estou cansado de escrever sobre a Sodoma Moral e a Gomorra Ética da Província do Grande ABC se manifestem em forma de cooperação para ver transformado em livro o conjunto de 11 textos originalmente produzidos em 2013 e criminalizados pelo Judiciário de Santo André em atendimento a queixa-crime de um notório produtor de irregularidades no mercado imobiliário.  Entre setembro a dezembro do ano passado reproduzi os textos nesta revista digital, acompanhados de dois ou três artigos cada.

Os 11 textos foram contrapostos pedagogicamente a artigos de gente que escreve nas publicações da Capital e cuja temperatura crítica em média está muito acima, bastante acima, tremendamente acima, da deste jornalista. Sou visto na região como um crítico rigoroso porque a quase totalidade dos jornalistas locais abdica do direito à análise criteriosa dos fatos. Preferem a prática do jornalismo de declarações de terceiros manipuladores da agenda.

Recorri à metodologia de confrontar meus textos com os de terceiros para provar o quanto o Judiciário de Santo André cometeu uma barbaridade ao me condenar por escrever sobre o então mequetrefe Clube dos Construtores do Grande ABC do incomparável empresário Milton Bigucci.  Instituições e personagens sociais e políticas muito mais importantes que Milton Bigucci e seu então Clube de Construtores foram muito, mas muito mais duramente criticados nos textos publicados em editoriais do Estadão, por exemplo, e de vários articulistas. Todos estão livres de qualquer punição porque exerceram o sagrado direito de opinar e de informar. 

Verbetes explicados

Uso de propósito o verbete mequetrefe quando identifico o Clube dos Construtores. Mequetrefe é algo sem importância, embora o setor seja essencial ao conjunto da sociedade. O mequetrefismo caracterizou a realidade do Clube dos Construtores sob o comando do chefe Milton Bigucci durante 25 anos de invernada mandatória.

Já quanto ao verbete “barbaridade”, provavelmente será o mais ameno que os leitores mais sensatos encontrarão no dicionário judicial para definir a sentença do meritíssimo. Que sentença? Deixemos para outro dia. A decisão, se detalhada, tornará “barbaridade” ainda mais conservadora.

Comparo tudo o que escrevi em termos de dosimetria crítica e de profundidade analítica com os articulistas que juntei para enfatizar com todas as letras que fui mais uma vez (a terceira envolvendo o mesmo autor) discriminado por imprecisões judiciais em Santo André. Sempre Santo André de escândalos com dinheiro público que demoram para ser apurados e penalizados. No meu caso, a resposta foi rápida e massacrante.

Só Deus sabe o quanto o juiz em questão me massacrou durante a audiência. Querem pior massacre do que ser impedido de explicar o encadeamento de informações que consubstanciariam os textos?  Quantas vezes fui interrompido, quantas vezes. E quantas falhas processuais se sacramentaram, conforme denunciou o advogado Alexandre Marques Frias?

Magistrados imprecisos

O jornalismo independente sob pressão dos poderosos ainda não foi devidamente entendido por alguns magistrados de Santo André. Em São Bernardo, no único caso em que fui acionado – sempre pelo intocável Milton Bigucci -- fui honrosamente absolvido por um magistrado sensível às causas sociais e ao sagrado direito de informar a sociedade da qual faço parte. 

A sentença do magistrado de São Bernardo reflete o pensamento médio do Judiciário ao se referir à liberdade de opinião. A sentença do magistrado em Santo André reproduz um viés que contradiz os alicerces constitucionais. Flerta com regimes de exceção.

Fosse a Província do Grande ABC vibrante em matéria de defesa de interesses cotidianamente solapados pelo conjunto de malfeitores que a dominam sem-cerimônia, aqueles 11 textos e os referenciais que adicionais não precisariam ser colocados aqui como sugestão de livro a ser editado. As próprias lideranças das mais diferentes categorias econômicas e sociais já teriam se levantado em defesa do que deveria ser sagrado, ou seja, a solidez de um regime supostamente democrático e, mais que isso, da ampla e inesgotável liberdade de opinião. 

Omissão generalizada

Mas o que esperar desta Província se os 11 artigos que serviram de pretexto à queixa-crime de um empresário de ficha amplamente conhecida no Judiciário refletem a essência das organizações coletivas da região – preguiçosas, interesseiras, redundantes, umbilicais, distantes de bases que as desprezam? Quando escrevo que a decisão do juiz de Primeira Instância de Santo André é uma barbaridade jurídica que, devidamente escrutinada, não resistirá à apreciação do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando escrevo isso, quero dizer que mais que os argumentos a esgrimir em minha defesa, prefiro que os leitores os compare com os textos que em cada um dos artigos acrescento adiciono como peça de incontestável oposição ao veredito.

Qualquer profissional de bom senso no jornalismo e nas áreas jurídicas terá a mesma reação diante do que se lhe apresenta em forma do material que pretendo tornar disponível – desde que doadores apareçam para contribuir à empreitada. Trata-se, afirmam todos, de uma sentença que desfigura o direito de expressão, da liberdade de opinião.

Deu-se tratamento de criminoso a quem apenas reflete os interesses mesmo que difusos da sociedade regional. O que a sociedade regional exige? Que seus representantes sociais e econômicos trabalhem efetivamente pelo conjunto, não para grupinhos previamente selecionados e, invariavelmente, mancomunados com os podres poderes públicos de plantão nos Executivos da região. 

Puxão de orelhas

Alguns observadores vão muito mais longe ao retirar a avaliação do terreno meramente formal de judicialização de algo que jamais deveria ser judicializado e caso fosse judicializado jamais deveria ter tido retaguarda: eles afirmam que mais que o direito à liberdade de expressão e de opinião, os textos que escrevi sobre o Clube dos Construtores do Grande ABC em 2013 deveriam servir de lição a todas as instituições públicas e privadas da região que vivem na penumbra da efetividade funcional.

A artimanha articulada pelo milionário e ultraprotegido pela Imprensa regional Milton Bigucci e seus defensores legais é mais que um jogo sórdido que pretende utilizar as queixas-crimes densamente subjetiva para esconder fatos insofismáveis: o então presidente do Clube dos Construtores espatifou-se moral e eticamente desde então, ou seja, desde que decidiu mais uma vez impetrar ação judicial contra este jornalista. Tanto que foi apeado do poder daquela instituição, numa transição diplomática, é verdade, mas que não escondeu a decadência de um dirigente.

Decadência é força de expressão, porque como presidente do Clube dos Construtores Milton Bigucci sempre foi algo como alguém que se reúne literalmente com meia dúzia de parceiros e se considera satisfeito com o quórum registrado. Marcus Santaguita, seu substituto, come o pão que o diabo amassou para dar àquela entidade uma configuração que elimine a constatação de que encontrou o vazio sobreposto ao vazio. 

Escondendo as irregularidades

Trocando em miúdos: ao buscar guarida nos escaninhos da interpretação maquiavélica dos textos que produzi, tecendo fantasias, o que Milton Bigucci pretendeu mesmo era criar uma cortina de fumaça para, com base em decisões judiciais, arvorar-se exemplo a ser seguido pelos homens de bem. E que todo o mal está no jornalista que o desmascarou ao longo dos últimos anos, antecipando os fatos que indelevelmente se constataram. 

A folha corrida de Milton Bigucci está manchada pelo escândalo do Condomínio Marco Zero, em São Bernardo, e pela Máfia do ISS, em São Paulo. Só não está também impregnada pelo escândalo do Semasa, em Santo André, em fase judicial, porque o denunciante Calixto Antônio Júnior, estranhamente, mas por razões que podem ser projetadas até pelos mais ingênuos, o poupou na fase de depoimentos, após anunciar a participação do empresário nas falcatruas.

Não falta quem afirme que está longe de se esgotar o estoque de estripulias do empresário Milton Bigucci à frente do conglomerado MBigucci. Uma Operação Andaime, correspondente à Operação Lava Jato, voltada exclusivamente ao mercado imobiliário da região e mesmo da Capital, o impactaria em cheio, assim como outros protagonistas do mundo construtivo.

Na Capital, por conta do Escândalo do ISS, a MBigucci e dezenas de construtoras seguem livres, leves e soltos. O MP não conta com profissionais em número suficiente e estrutura de trabalho para dar conta do recado – conforme declarou textualmente um dos promotores criminais envolvidos nas investigações.

Não tenho a menor ideia do quanto custa algo como três mil exemplares de um livro que deverá reunir cerca de 300 mil caracteres de conteúdo. Desse total, 250 mil referem-se aos textos dos 11 artigos e seus referenciais. Os demais seriam reservados à abertura da obra. Talvez não convide ninguém para produzir o prefácio.

Poderosos temidos

Acho que teria dificuldades em encontrar quem tenha coragem de enfrentar Milton Bigucci. No Rio de Janeiro de Sérgio Cabral era exatamente algo semelhante que ocorria quando alguém pretendia produzir alguma obra que retratasse o governo de plantão. O que quero dizer com isso é que quando os poderosos estão na ativa, a sociedade se acomodada e as organizações coletivas se locupletam.

Por falar nisso, cadê as OABs (Ordem dos Advogados do Brasil) da Província do Grande ABC que fogem das divididas em que o direito constitucional de liberdade de opinião é vítima de beneficiários da desordem e dos descaminhos institucionais da região?

Linhas auxiliares dos Executivos de turno, as OABs são a prova mais contundente e lamentável da inapetência ao exercício da democracia que muitos imaginam existir só pelo fato de a população se deslocar às urnas – e mesmo assim com índice de abstenção alarmante. Tão alarmante que nem o festejado prefeito paulistano, João Doria, superou o ceticismo e a desconfiança do eleitorado em outubro do ano passado: ele recebeu menos votos que o total de votos nulos, votos em branco e eleitores ausentes. 

Escolha do título

Vou tentar seduzir os eventuais (improváveis) financiadores do livro que provará na forma impressa o que já editamos na forma digital o quanto a prática do jornalismo sem rabo preso com quem quer que seja na região é um exercício de coragem associado à estupidez. Uma das medidas que posso utilizar é sugerir um título que os entusiasme a ponto de participar da empreitada. Que tal “Liberdade de Opinião é alto risco na Província”. Ou: “Justiça da Província pune quem ousa enfrentar mandachuvas”. Ou um título conciso e cortante tipo “Culpado por informar”. Ou então: “Culpado por ser inocente”.

Sabem de uma coisa? Gostei muito desse último, mas “Culpado por ser inocente” ainda não passou por processo depurativo. Sei que a maioria não entendeu a contraposição desafiadora que abarca um dualismo intrigante. Tão intrigante que prefiro, agora, não dissecá-lo. Talvez numa próxima matéria me dedique exclusivamente à tendência de escolher “Culpado por ser inocente”.

Por que os leitores acham que a proposta que fizemos de Reportagem Premiada” não contou até agora com o apoio de qualquer um dos prefeitos? Milton Bigucci não reina soberano por mero acaso. Faltam-nos tudo que está concentrado numa expressão-símbolo de nossas fraquezas coletivas: vergonha na cara. Acho que já comecei a desvendar aos leitores o sentido de “Culpado por ser inocente”.



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