Caro Jarbas Luiz dos Santos, juiz de Direito da 3ª Vara Criminal de Santo André. Pretendia enviar esta Carta Aberta pelo correio eletrônico, mas ante as dificuldades de encontrar seu endereço, decidi remetê-la via Correios. O meritíssimo me condenou a oito meses de prisão por escrever verdades que só são inconvenientes numa região à deriva institucional e seus efeitos deletérios. Só agora tomei a decisão de dizer o que a dinâmica democrática havia muito me instigava.
O meritíssimo cometeu um erro sentencial que agora vai a julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo. O meritíssimo puniu um jornalista imune a qualquer risco judicial caso fosse omisso ou caso se valesse de mentiras. Custa caro praticar jornalismo independente na Província do Grande ABC, meritíssimo. Em certas situações, como esta que exponho, não podemos contar nem mesmo com uma sentença judicial que proteja um representante da sociedade sem medo dos bandidos sociais à solta na praça.
Não quero tomar seu tempo, meritíssimo, mas é minha liberdade que está em jogo indevidamente. O meritíssimo não teve paciência de me ouvir durante a audiência condenatória, mas agora poderia reservar espaço em sua agenda, mesmo que recolhido em sua residência, para ler não só esta Carta Aberta breve mas, principalmente, os 11 anexos deste material que atestam o equívoco cometido.
Uma leitura indispensável
Tenho certeza de que, apesar da agenda diária intensa, a sentença que me conferiu de criminoso, de delinquente, está em sua memória. Se o meritíssimo acredita que agiu certo, com equilíbrio, com conhecimento da causa muito além provavelmente do atropelo natural de quem vive sobrecarregado de processos, então faço uma sugestão: pegue cada um dos textos adicionais e sugira a instâncias judiciárias da Capital o enquadramento criminal dos respectivos autores. Se houver coerência, eles, todos eles, correm o risco de mofarem na cadeia.
Tenho certeza de que, caso atenda à sugestão, o meritíssimo ganhará espaços extraordinários na mídia. Na Província do Grande ABC, a decisão que proferiu está restrita a poucos e por isso mesmo me vejo em situação delicada de isolacionismo. Fosse dada publicidade nacional à criminalização, muitos e ruidosos desdobramentos emergiriam. Somos Província até nisso.
Acrescento aos 11 artigos assinados -- e selecionados pelo queixoso criminal que me levou a sua Vara de Justiça -- editoriais do jornal O Estado de S. Paulo e artigos de colunistas de jornais de grande porte. Todos criticam personalidades do mundo político e instâncias diversas. Inclusive o Supremo Tribunal Federal. Seria o Clube dos Construtores mais importante que o STF e tantas outras instituições que devem sim ser atentamente observadas num regime democrático?
Compare e reflita
Sugiro ao meritíssimo que leia tudo com a máxima atenção. Que compare os anexos com tudo o que escrevi sobre o Clube dos Construtores do Grande ABC, então sob o comando do notório empresário Milton Bigucci, campeão regional de abusos contra a clientela, segundo denúncia do Ministério Público do Consumidor de São Bernardo e, também, integrante da Máfia do ISS de São Paulo, entre outras atividades fora dos pressupostos de ética e moralidade que, tenho certeza, o meritíssimo tanto preza.
A sentença que o meritíssimo produziu é uma aberração. É um ataque à liberdade de informação e de opinião lastreada por um conjunto de valores expressos ao longo dos anos – e não circunscrito a 11 artigos ardilosamente rebocados para criar falsidade argumentativa. Não vou mergulhar nos aspectos processuais, dos quais quem dá conta é o advogado Alexandre Frias. Como o meritíssimo sabe, ele preparou manifestações providenciais para mostrar que, também sob esse aspecto, houve escorregadelas inconcebíveis. Prefiro me ater à queixa-crime sob o ponto de vista de insumos editoriais.
Verdade consolidada
Primeiro porque o conteúdo é absolutamente verdadeiro. Irretocavelmente verdadeiro. Se o meritíssimo contasse com sensores sociais para avaliar determinadas situações em que mandachuvas e mandachuvinhas imperam nesta Província, distinguiria uma queixa-crime descabida da realidade dos fatos que, este jornalista, ainda insiste em publicar.
Segundo porque a linguagem jornalística que o meritíssimo parece desconhecer ao me atribuir conotação depreciativa no uso de determinados verbetes é uma característica de uma atividade cuja missão principal é dialogar com a sociedade. Se o jornalismo fosse encampado pelo dialeto específico do Judiciário, certamente estaria fadado ao desaparecimento como instrumento de popularização da informação. A recíproca seria verdadeira caso nuances do jornalismo fossem transpostas às manifestações dos magistrados, adulterando-se, portanto, o ritual de entendimento formal.
Também existe um terceiro ponto sobre o qual o meritíssimo não se deu conta ao não distinguir a possibilidade de o jornalismo não se fixar apenas numa estaca de atuação. Como a Medicina, a Engenharia, o Direito e tantas outras atividades humanas, o jornalismo também conta com especificidades. Repórteres apenas reportam o que terceiros dizem. Editores de alguma forma ajustam os ponteiros das informações produzidas pelos repórteres. E os articulistas emitem juízo de valor. Emitir opinião é um direito constitucional. Expressar pontos de vista está para o jornalismo assim como uma sentença para um meritíssimo. Dar conotação de beligerância à função social do jornalismo de opinião, como o meritíssimo assim se pronunciou na sentença condenatória, é um exercício que flerta com conceitos de censura.
Direito de opinião
O direito de opinião não pode ser lançado inadvertidamente ao calabouço da condenação única e exclusivamente porque foi exercido com conhecimento de causa. O mundo seria um festival de tolices contínuas e incuráveis não fosse o filtro crítico do jornalismo de opinião.
No caso do site CapitalSocial, de minha propriedade e atuação, o jornalismo é autoral, opinativo, reflexivo. Não somos massa de manobras de terceiros que, invariavelmente, dominam a pauta e as páginas dos jornais. Depois de 52 anos de jornalismo, seria uma insuperável tolice restringir-me à transmissão ingênua, quando não estúpida, de declarações de agentes políticos, econômicos e sociais decididos a manter poderes intocáveis.
O jornalismo independente sofre duras consequências por abalar os alicerces de autoritarismo dos poderosos de plantão. Os donos dos poderes detestam contrariedades na interlocução de mão única que pretendem estabelecer com a sociedade.
Os artigos que produzi e que maliciosamente a defesa de Milton Bigucci utilizou em nome do Clube dos Construtores para fabricar idiossincrasias são uma coleção de verdades indesejáveis e inconvenientes que o meritíssimo, ao interpretá-las como ofensivas, consagrou a incompetência, quando não a delinquência, do então presidente daquela entidade.
Manipulando informações
Não estou a exagerar quando afirmo que consagrou a delinquência. Milton Bigucci usou e abusou da divulgação de estatísticas manipuladas para enganar o distinto público. O desastre imobiliário que vivemos na região e no Brasil como um todo não é resultado tão somente de políticas macroeconômicas do governo que passou. São também expressões de usos e abusos contra a sociedade incauta em forma de declarações de representantes do setor. Tenho pastas e pastas de arquivos como provas materiais dessa empreitada que ininterruptamente dribla os frágeis cuidados da Imprensa em separar verdades de especulações.
Veja, meritíssimo, o noticiário destes dias sobre a crise imobiliária. Milhares de famílias brasileiras foram enganadas sistematicamente por agentes políticos e empresariais sem escrúpulos. Perdem-se patrimônios que imaginavam seus. Tudo isso, meritíssimo, e muito mais, consta de CapitalSocial ao longo dos últimos anos. Antecipamos a realidade dos fatos. Daí a perseguição covarde do então presidente do Clube dos Construtores do Grande ABC, entidade que também rotulamos durante longo período de Clube dos Especuladores Imobiliários.
Escrevi muito sobre estratégias de industrialização de mentiras do mercado imobiliário. Se não fosse tão hostil durante a audiência em que me impediu de buscar nas origens das críticas fundamentadas a razão da manobra do empresário Milton Bigucci, certamente abasteceria o meritíssimo de resumos de análises que faço permanentemente.
Fundamentação é a base
Os 11 artigos juntados ao processo na queixa-crime que o meritíssimo julgou são inteiramente desprovidos de substância tóxica que infringiriam o Código de Processo Penal. Os trechos mais importantes, segundo a ótica dos defensores de Milton Bigucci, todos destacados na queixa-crime, são um conjunto de amenidades verbais e interpretativas deste jornalista, com profunda fundamentação de quem não só vai a campo para aferir o andar da carruagem regional, mas também de quem dispõe de fontes qualificadas para sustentar as análises.
Nas mãos de terceiros – como os que constam dos anexos mencionados – o que teríamos como ação jornalística no enquadramento de desempenho do Clube dos Construtores seria o abate implacável de uma gestão desastrosa. Uma gestão que durou 25 anos e que só se encerrou -- de forma cinicamente diplomática porque ninguém topa enfrentar Milton Bigucci – após série de escândalos envolvendo o titular de uma presidência caracterizada pelo mandonismo e pela incompetência.
Espertamente, Milton Bigucci buscou mais uma vez refúgio no Judiciário (ele e seu séquito de advogados usaram o mesmo artifício, em nome pessoal do queixoso, outras duas vezes) em busca de uma chancela oficial de qualificação. Que conceito seria mais apropriado para identificar a manobra que faz do Judiciário Cavalo de Tróia? Como a profissão permite e a sociedade exige, diria sem temores, meritíssimo, que a tática de Milton Bigucci então à frente do Clube dos Construtores se encaixaria em algo como estelionato.
Com dinheiro dos outros
A entidade que ele presidiu durante um quarto de século, meritíssimo, era tão inexpressiva que nem recursos financeiros próprios dispunha para dar conta dos compromissos do dia a dia. Não fossem os repasses do Secovi, o Sindicato da Habitação com sede em São Paulo, o Clube dos Construtores fecharia as portas com Milton Bigucci. Os parceiros que o empresário arranjou para contar lorotas ao meritíssimo naquela audiência deveriam ser enquadrados nos rigores das leis por falsos testemunhos.
Gostaria de entregar pessoalmente esta Carta Aberta, mas, confesso, não tive a necessária coragem. Talvez coragem não seja o termo certo. Sobrou-me mesmo discernimento, porque o agendamento poderia ser recusado. Os Correios estão aí para isso, ou seja, para que este jornalista possa aproximar-se do meritíssimo sem receio de receber uma ordem para encerrar abruptamente uma frase que mal começara a organizar.
Gostaria muito que o meritíssimo lesse com atenção todo o material que se segue. Essa é uma Carta Aberta em nome da verdade dos fatos. Fosse este jornalista o que o senhor Milton Bigucci gostaria que fosse – porque muitos o são nesta praça – tenha certeza o meritíssimo de que jamais teríamos nos defrontado. Haveria a prática de pelo menos uma de duas decisões que a sociedade consumidora de informações com responsabilidade social abomina: a omissão descarada em nome de interesses corporativos estupidamente agressivos ao conceito de cidadania ou a adesão incontida para reforçar os laços de domínio total de versões fantasmagóricas da realidade econômica regional também no mercado imobiliário.
Ardil para acovardamento
Sei que o meritíssimo nada poderá fazer para desfazer o que foi feito, mas tenha certeza de que a sentença configura-se como algo que desestimula, quando não acovarda, novos potenciais polos de indignação do jornalismo de uma região tão absurdamente sob controle de bandidos sociais. Não seria, no fundo, no fundo, as reais intenções do queixoso em questão, reconhecidamente versátil na atividade empresarial pela capacidade de transformar adversários políticos em aliados?
Quer um exemplo, meritíssimo, do que distingue este jornalista dos poderosos de plantão? Até agora, mais de dois anos passados, a proposta de se criarem mecanismos à criação do que chamei de Reportagem Premiada, que consistiria em recompensa aos veículos de comunicação que comprovassem denúncias de uso indevido de recursos públicos, não foi cogitada em qualquer instância pública.
Mais que isso: nenhuma organização da chamada sociedade civil organizada sequer a levou a sério. Sabe por que, meritíssimo? Porque há uma engrenagem de cumplicidades sobrepostas que transformou a Província do Grande ABC em reserva de mercado aos detentores de poderes públicos e privados. Sociedade organizada é ficção na região, meritíssimo. Por isso Milton Bigucci reinou durante um quarto de século no Clube dos Construtores, transformando-o em apêndice do conglomerado empresarial que dirige, e, ante a vigilância deste jornalista, que não concentra atenção apenas sobre ele, iniciou longo processo de retaliação. Que o Judiciário avaliza.
Uma coleção imperdível
Com todo o respeito, reproduzo abaixo os títulos dos anexos sobre as quais sugiro que o meritíssimo debruce-se para constatar o quanto a sentença solapa completamente uma liberdade tão valiosa como o direito de opinião respaldo de fatos. Direito, aliás, do qual jamais abdicarei. Não faço nada senão honrar uma profissão que abracei há mais de 50 anos e contra a qual mandachuvas e mandachuvinhas desta Província querem interromper a qualquer custo.
Os 11 artigos e os convidados especiais:
Quatro críticas e um criminoso: adivinhe quem é o criminoso?
Mais três artigos críticos e o mesmo criminoso na praça
Um jornalista criminoso em novo artigo. Comparem
Um criminoso em liberdade e dois editoriais do Estadão
Papa e Lava Jato apanham; Milton Bigucci é intocável
Pau no PT, pau no Doria, e Bigucci se acha soberano
Haddad apanha, Meirelles apanha; e Bigucci apela
Imaginem Milton Bigucci no TSE ou na Casa Civil
O que escreveram sobre Trump; e o que Bigucci tanto abomina
Décimo capítulo de dossiê em defesa da liberdade de opinião
Última parte de um dossiê em defesa da liberdade de opinião
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)