Economia

O que está por trás de especialidades

DANIEL LIMA - 10/03/2000

Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. Não, quem descobriu o Brasil foi Cristóvão Colombo. O professor Antonio Joaquim Andrietta, do Imes (Instituto Municipal de Ensino Superior) de São Caetano, é capaz de defender com o mesmo ímpeto as duas interpretações. Suposto analista da economia do Grande ABC, Andrietta trafega com o mesmo desembaraço entre a obviedade e a contrariedade. A mais recente peripécia do professor que inventou clusters onde só há concorrência predatória e crescimento onde há evasão industrial é ter alardeado no mês passado ao Diário do Grande ABC, como se fosse versão original, uma constatação que há muitos anos apontei: os sete municípios da região concentram alguns setores produtivos vitais ao desempenho econômico, mesmo depois de fortemente atingidos pela globalização a partir do início da década. Como todos estão carecas de saber, esses setores são umbilicalmente ligados à elástica atividade automotiva, que responde por mais de 70% do PIB industrial da região.


Quem recorrer aos arquivos comprovará facilmente que o quadro anunciado pelo professor do Imes nada tem de novidade. Em abril de 1990, portanto há praticamente 10 anos, a edição número dois do então tablóide LivreMercado de oito páginas produzido em offset propagava o seguinte título de primeira página: “Região Pode Sofrer Recessão Mais Dura Que Resto do País”. Nas páginas internas, alguns trechos pinçados da Reportagem de Capa: “Uma temporada de vacas magras está atingindo o Grande ABC desde a implantação do Plano Collor. Forjada economicamente com o advento da indústria automobilística e empresas satélites, a região do ABC será certamente a área geográfica do País a ser mais atingida pelos estilhaços do que a maioria dos economistas chama de brutal enxugamento monetário que a ministra Zélia Cardoso de Mello e seus assessores anunciaram na tarde de 16 de março (…). A realidade é que o ABC Paulista vai ser penosamente castigado (…). Das quase seis mil indústrias formais do ABC, perto de 80% enquadram-se nos modelos de pequenas e médias. Boa parte vive a reboque das montadoras de veículos”. A previsão se confirmou: o Grande ABC jamais sofreu tantos efeitos de recessão econômica como em 1990 e 1991.


A abordagem mais recente sobre o que Joaquim Andrietta dá tratos de grande novidade e identifica como especialidades constou da entrevista com João Batista Pamplona, professor do Departamento de Economia da PUC (Pontifícia Universidade Católica) em São Paulo, na edição de novembro do ano passado. “Números que Recomendam Muita Cautela” foi o título do trabalho jornalístico que abordou sobretudo os primeiros dados da Paep (Pesquisa da Atividade Econômica Paulista) para o Grande ABC, divulgados no mês anterior pela Agência de Desenvolvimento Econômico, braço estratégico do Consórcio Intermunicipal de Prefeitos.


Qual é a melhor explicação para Joaquim Andrietta divulgar com deslumbramento, de viés incorrigivelmente ufanista, conceitos e dados fartamente conhecidos? Provavelmente a busca por holofotes. As interpretações que tem dado a estatísticas que freneticamente coleciona já o desgastaram no Imes, escola que conta com núcleo de pesquisas que, cautelosamente, não se tem metido em frias.


Como se até então se tratasse de segredo de Estado, e não de evidência à mostra a qualquer desconhecido que resolva fazer vôo de helicóptero pela região, o acadêmico apresentou como dado espetacular a lista de setores que dominam a atividade industrial no Grande ABC: material de transporte (montadoras e autopeças), metalúrgica (fundição, siderurgia e metalurgia), mecânica (máquinas e equipamentos), material elétrico, químico e de borracha.


Para dar roupagem científica à obviedade tratada como novidade, o professor ainda deitou cátedra sobre o conceito de especialidades desses setores para o desenvolvimento da região. Recorreu, inclusive, ao QL (Quociente de Localização), uma equação obtida pela divisão do número de empregos que um ramo tem dentro do total da indústria da cidade ou região pela mesma relação obtida em nível regional, estadual ou nacional. Se o resultado for superior a 1, a cidade é considerada especializada no setor. Se o QL for inferior, a cidade não é especializada.


O critério utilizado por Andrietta não só redescobre a pólvora como dá margem a distorções inimagináveis. Caso exemplar é o do setor de móveis. Pelo QL do professor — e ele sustenta a tese — Ribeirão Pires é a nova Capital dos Móveis no Grande ABC, tirando a liderança histórica de São Bernardo. Tudo porque Ribeirão Pires apresentou em 1998 QL de 7,410, contra QL de 1,082 de São Bernardo. Seguindo a mesma linha de raciocínio do professor, São Bernardo também foi desbancada do título de Capital do Automóvel por Betim, já que o QL do Município do Grande ABC apontado pelo estudo é de 8,138, contra 11,938 da cidade da Grande Belo Horizonte. Comparativamente ao conjunto dos municípios do Grande ABC, montadoras e autopeças de Betim são duas vezes mais importantes, segundo Andrietta, porque o índice de especialização da região é de 5,200, contra 11,938 dos mineiros.


Essa esquisitice interpretativa não resiste a incursão mais profunda nos próprios estudos de Andrietta, que ele escondeu dos leitores do Diário do Grande ABC. Afinal, como Ribeirão Pires pode ser Capital dos Móveis se detém (dados de 1997) apenas 5,1% das indústrias e 21,2% da mão-de-obra do setor no Grande ABC, contra uma São Bernardo que conta com 46,5% dos estabelecimentos e 38,9% dos trabalhadores? Embora lutem contra a decadência, os moveleiros de São Bernardo têm peso agregado tremendamente superior à importância das indústrias de móveis para Ribeirão Pires, onde prevalecem duas megafábricas de produtos populares, ligadas a grupos varejistas que abastecem as mais diversas regiões do País. São Bernardo tem corredores próprios de varejistas. Está no mapa dos consumidores diretos. Andrietta também omite outro dado estatístico, porque não lhe convinha abrir a brecha do esvaziamento industrial da região: o setor moveleiro do Grande ABC era responsável por 9.736 empregos formais em 1988, contra apenas 5.785 em 1997, ou seja, queda superior a 40,7% em apenas uma década.


No caso de Betim, a liderança no ranking de especialidade se deve à fábrica da Fiat e seus fornecedores, mas nem de longe a concentração industrial daquele Município pode ser comparada à dinâmica econômica das montadoras de São Bernardo (Volks, Ford, Scania e Mercedes-Benz, sobretudo).


A raiz da interpretação é que o conceito de especialidades no qual o professor do Imes fundamenta toda a dissertação serve, mesmo assim com ressalvas, para aferir matrizes produtivas relevantes de um Município, principalmente quanto à mão-de-obra com carteira assinada, não para o conjunto de uma região. E muito menos para estabelecer comparativo de potencialidades econômicas, como sugere o acadêmico. Os casos dos moveleiros de Ribeirão Pires e do setor automotivo de Betim são emblemáticos. Tanto um Município quanto outro são extremamente dependentes dos respectivos setores e é natural que tenham QL mais ressaltado que outras localidades de maior diversidade de mão-de-obra.


A tese do professor tem outros equívocos e interpretações mal-ajambradas que podem levar a avaliações insustentáveis. Afirma o trabalho: “Mesmo com a perda de muitos postos de trabalho na indústria local entre 1988 e 1997, o Grande ABC manteve praticamente inalterados os níveis de emprego em 87% das áreas analisadas junto aos 11 setores industriais mais dinâmicos (automotivo, metalúrgico, mecânico, elétrico, químico, borracha, papel, têxtil, mobiliário, minerais não-metálicos, alimentos e bebidas)”.


O que se deduz desse texto? Que o Grande ABC continua um maravilha, como se nada tivesse atingido a região nos 10 anos de maiores transformações na economia nacional. Para reforçar esse conceito, disse o acadêmico: “O que a tese mostra é que não houve alterações substanciais no quadro do emprego no Grande ABC nestes 10 anos analisados. Quem já estava acima ou abaixo de 1 ficou na mesma situação, mostrando que quem era especializado continuou a sê-lo, e quem não era não se tornou especialista. Apesar da turbulência, a região manteve a sua força”.


Mas a história é outra. Quando afirma que 87% das atividades analisadas mantiveram praticamente inalterada a mão-de-obra (é disso que trata o estudo), o acadêmico deveria explicitar que, por mais que o Grande ABC tenha sofrido com o desemprego em massa, os setores industriais que lhe dão sustentação permaneceram inalterados na relação interna de postos de trabalho, mas sofreram revezes relativamente a outras regiões. Trocando em miúdos: as perdas de cada setor industrial mantiveram praticamente sem alteração o ranking de importância relativa dentro do Grande ABC. Ao contrário do que faz crer o professor, esse resultado é absolutamente esperado: a área automotiva carrega a economia do Grande ABC nas costas e, com isso, todas as baixas que sofreu no período da pesquisa foram acompanhadas pelos demais setores. Resultado: todos desceram de patamar, criando uma ilusória estatística de estabilidade. A novidade seria se tivesse havido mudança no padrão de ocupação.


O mandraquismo dos estudos do professor do Imes é que pode induzir os incautos a considerar que, em 87% dos principais setores industriais, o Grande ABC não foi abalado por nada. Não era conveniente para Andrietta divulgar outros detalhes de seus estudos. Apenas em um dos 11 setores aos quais se refere o Grande ABC teve acréscimo de mão-de-obra no período de 1988 a 1997 — o de alimentos e bebidas, com evolução de 18,5%. Todos os demais registraram variações negativas. O que menos perdeu foi o setor de papel, editorial e gráfico, com -5,6%. Os demais são um assombro: material de transporte (-35%), metalúrgica (-49,7%), mecânica (-59,7%), química (-22,7%), borracha (-38%), têxtil e vestuário (-27,2%), material elétrico (-48,2%), minerais não-metálicos (-50,2%), madeira e mobiliário (-40,7%). No total, desapareceram 125 mil postos de trabalho nesse conjunto de atividades industriais do Grande ABC no período estatisticamente registrado pelo professor do Imes. Se isso significa, como declarou, a manutenção da força produtiva do Grande ABC, o que seria então uma catástrofe?


Na ânsia de esconder realidades, o professor do Imes esqueceu que os números expostos ao Diário podem ser vasculhados em sua essência e causar constrangimentos a quem se aliou apressadamente à pregação. Andrietta afirma que não há no Brasil região ou cidade que rivalize com o Grande ABC no somatório das forças dos seis setores mais proeminentes de produção, casos de material de transporte (montadoras e autopeças), metalúrgica (fundição, siderurgia e metalurgia), material elétrico, química e borracha. O índice de especialização da região nesses seis setores alcançou 1,961 ponto em 1997, contra 1,586 do segundo colocado, que é a Grande São Paulo sem as cidades do Grande ABC.


O que o professor deixou de dizer, por conveniência explícita de não ver sua argumentação fragilizada, é que individualmente, por setor, o Grande ABC não lidera nenhum dos seis analisados. Em material de transporte fica atrás de Betim e Taubaté. Em metalurgia é superado por Contagem (MG), pela Capital de São Paulo e pelo conjunto de outras cidades da Grande São Paulo. Em química, chega atrás de São José dos Campos, de outras cidades da Grande São Paulo, menos a Capital, e também da Grande São Paulo incluindo a Capital. Em mecânica, come poeira da líder Limeira e vai atrás de Campinas, Caxias do Sul (RS), Sorocaba, da Capital, de outras cidades da Grande São Paulo, do Interior de São Paulo e também da média do Estado. Em material elétrico a situação se repete, com São José dos Campos na liderança, seguida de Osasco, Contagem, Campinas, Guarulhos, Capital, outras cidades da Grande São Paulo, Grande São Paulo, Interior de São Paulo e o próprio Estado de São Paulo. Em borracha, Campinas, Guarulhos e Limeira deixam o Grande ABC em quarto lugar, apesar de Santo André, com a força de Pirelli e Bridgestone Firestone, ocupar a liderança se for desgarrada da região. Uma solução meramente oportunística, porque a interpretação estatística é toda voltada para o aspecto regional do Grande ABC.


Uma análise comparativa do Grande ABC e demais cidades e regiões capturadas estatisticamente pelo professor do Imes nas atividades industriais que movem a economia da região revela que a importância relativa da mão-de-obra com carteira assinada sofreu evidentes mudanças. Mas isso não significa que os resultados sejam simplificadamente avaliados como positivos ou negativos. O caso da indústria de borracha em Santo André é emblemático. O índice de especialização era de 1,632 em 1988, contra 4,217 em 1997. O que ocorreu no período para esse aparente boom do setor? Uma grande fábrica de pneumáticos aportou para fazer frente à Pirelli e à Bridgestone Firestone? Nada disso. Pelo contrário: Santo André perdeu grande parte dos borracheiros do Grande ABC no período, mas como outros setores listados entre os principais do Município sofreram mais perdas de postos de trabalho, acabou acrescida a importância relativa de Bridgestone Firestone e Pirelli, além de pequenas indústrias da cadeia produtiva, para o conjunto industrial do Município.


É evidente que nem de longe isso pode ser chamado de tranquilizador, como sugere o estudo. Tanto que o prefeito Celso Daniel corre desesperado atrás de novos investimentos industriais, inclusive com liberalização geral da lei de uso do solo, escancarando todo o território. Valendo-se ainda do exemplo do setor de borracha, o fato de a Capital ter praticamente mantido o índice de especialização no período dos estudos, contra o salto quase triplo de Santo André, significa só aparente paradoxo. Pela lógica acadêmica, São Paulo teria passado muito mais maus-bocados que Santo André no setor, o que não corresponde à realidade.


Como se observa, o QL que identifica especializações tanto pode expor novo surto desenvolvimentista, como foi o caso de Betim no setor de material de transporte e correlatos, como também pode escamotear exagerada dependência de determinado setor produtivo por força de matrizes industriais que se definham ao redor. O professor do Imes cometeu o pecado de pretender analisar a economia do Grande ABC pelas lentes embaçadas de um aleijão estatístico. Tão comprometedor quanto enxergar a economia pelos riscos do achismo é imaginar que o cientificismo frio e soberbo resolve tudo.


A mudança de discurso de Joaquim Andrietta é surpreendente e leva a especulações sobre a raiz da febre regionalista. Uma cópia sem cortes de contraditórios estudos nos quais baseou as informações relatadas ao Diário do Grande ABC está disponível desde o ano passado na Editora Livre Mercado para comprovar imprecisões do autor. Ao afirmar na reportagem do Diário que a região se mantém estável nos setores mais dinâmicos da atividade industrial, Andrietta contesta a si próprio. Basta acompanhar um trecho do relatório, quando se refere à estrutura da indústria automotiva, sobre o crescimento de Betim, na Grande Belo Horizonte:


“Betim é uma exceção num mar de perdas e o fator Fiat é a explicação não apenas para a indústria como também para o comércio e os serviços, onde o crescimento é também o maior de todas as cidades analisadas. Partindo da última posição em participação no mercado de automóveis, a Fiat chegou à vice-liderança. É fora de dúvida que aquela montadora afetou a competitividade das mais antigas, sediadas na região do Grande ABC e no Vale do Paraíba. No ABC, a queda das montadoras foi ainda mais afetada que no Vale do Paraíba, por neste estarem as maiores plantas produtoras de carros populares, os quais representam cerca de 70% do mercado total” — escreveu o professor.


Por essa amostra, não é difícil chegar à conclusão de que todo o emaranhado por ele defendido não passa exatamente disso — um emaranhado. Dados mais consistentes e que conduzem à confirmação da supremacia de determinados setores industriais na matriz econômica da região estão disponíveis no boletim da Fundação Seade. É verdade que o material está condicionado a ressalvas, porque ainda forma pequena parcela de novos estudos que deverão ser divulgados nos próximos meses pela Agência Regional de Desenvolvimento. A vantagem da Fundação Seade é que os números conduzem a realidades sem mistificação. O que se pode fazer se Joaquim Andrietta está decididamente pronto para arrumar controvérsia ou expor obviedades? Pedro Álvares Cabral que se cuide.


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