Economia

Quem desativa essa bomba?

DANIEL LIMA - 05/08/1998

Uma bomba-relógio ameaça agravar o declinante poderio econômico e a ascendente ruptura social do Grande ABC. Representantes de empresas que sustentam a principal atividade microeconômica da região — a indústria automobilística e as autopeças que a rodeiam — acabam de preparar espécie de dossiê que aponta quadro de gradual trombose em suas atividades. A anomalia atinge quatro áreas que respondem diretamente pela capacidade de competir num mercado que se torna cada vez mais concorrido internamente, com novas montadoras que se instalam no País, e internacionalmente, com a globalização em ritmo frenético.

Num trabalho inédito da Câmara Regional do Grande ABC, liderado pelo prefeito Maurício Soares, de São Bernardo, coordenador do Grupo de Competitividade do Setor Automotivo, os subgrupos de Relações Trabalhistas, Infra-Estrutura, Impostos e Desenvolvimento Tecnológico praticamente esmiuçaram os pontos principais de algo que pode ser resumido e simplificado como Custo ABC, embutido em algo igualmente desestimulante para a atividade empresarial, o Custo Brasil.

O subgrupo de Relações Trabalhistas é o mais explosivo. O relatório é contundente. Coloca a nocaute velhos mitos regionais. Desmistifica, por exemplo, a qualidade da mão-de-obra. Estudo mais atento do relatório, que está sendo detalhado a cada reunião dos grupos de trabalho, coloca sob suspeição os eventuais e propalados efeitos econômicos positivos do surgimento do Novo Sindicalismo, como é chamado o movimento liderado 20 anos atrás pelo então ferramenteiro Lula, pela terceira vez candidato à presidência da República.

O que nos tempos de mercado fechado poderia ser considerado Benefício ABC, como alardeiam os sindicalistas, cada vez mais ganha corpo de Custo ABC. Se antes montadoras e autopeças mantinham-se a salvo da competição, a partir do início dos anos 90 a situação começou a se alterar. Quem mais sofreu foram as autopeças, sem proteção alfandegária. As montadoras conseguiram erguer barricadas tributárias respaldadas pelo Regime Automotivo, mas os competidores avançaram e se estão instalando no País.

Taffarel redivivo

Sem pretender tapar o sol com a peneira, qualquer analista que se debruce sobre o estudo chegará à conclusão de que o Grande ABC está na mesma situação dos brasileiros depois de Taffarel sofrer dois gols de cabeça do carrasco francês Zidane na decisão da Copa do Mundo e que só mesmo muito esforço conjunto possibilitará reavaliação séria e desapaixonada que garanta sustentação no ranking.

Diferente do que falam candidatos a postos eletivos, sempre com palavras sob medida para agradar a platéia, ou do que anunciam lideranças sociais, sindicais e empresariais, dispostas a tudo para tentar esconder a sujeira debaixo do tapete por mais algum tempo, a crise ainda não está instalada e ainda não é grave, mas as relações entre capital e trabalho na principal atividade econômica da região precisam de reparos, muitos reparos. A cada dia que passa, com a inauguração de novas e mais competitivas plantas de montadoras e autopeças em emergentes pólos industriais, mais se projeta a ameaça de explosão socioeconômica do Grande ABC.

O prefeito Maurício Soares e o secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo de São Bernardo, Fernando Longo, conseguiram o ineditismo de reunir num mesmo grupo de estudo representantes do capital e do trabalho do setor automotivo no Grande ABC. Por intermédio deles e de colaboradores próximos, foi possível produzir essa espécie de retrato falado do Grande ABC. Bastante sucinto, sem dar margem a manobras mais ousadas, o material não chega a ser um quadro de horrores como Guernica, de Picasso, que retrata a guerra civil espanhola, mas também está longe da singeleza de uma Monalisa, de Leonardo Da Vinci.

O que se vê é um Grande ABC contraditório e negligente com a própria sorte. O que antes poderia ser chamado de conquistas sociais de um setor econômico que ajudou a resgatar a democracia nos tempos da ditadura, tornou-se obra de corporativismo explícito, digno de um País que mantém a velha estrutura de interesses segmentados, enquanto a população sofre à espera de soluções que dependem de ações sistêmicas que vejam o todo, não apenas parte do problema.

Como se trata do início de esperado processo de transformações que coloca em situações distintas capital e trabalho, a cautela tem recomendado aos protagonistas do relatório que se mantenham distantes de análises mais profundas.

Relatório bombástico

Só quem desconhece a temperatura abrasiva no chão de fábrica, muito acima do que se encontra nos gabinetes das lideranças sindicais, minimiza a discrição dos executivos das empresas envolvidas. Eles preferem não se manifestar sobre o relatório. Talvez nem seja preciso diante das evidências expostas em cada frase do estudo e um mínimo de conhecimento sobre as atividades sindicais na região.

Uma explicação que se faz necessária é o poder limitado das lideranças sindicais, especificamente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, presidido por Luiz Marinho. Ele e seu secretário-geral, Carlos Alberto Grana, além de outros diretores, formam um novo perfil de sindicalistas. Substituem o irrefreável dogmatismo anticapital que marcou os anos de ativismo sindical de seus antecessores — Lula, Meneguelli e Vicentinho, principalmente — pelo esboçar de um pragmatismo de quem acompanha os resultados da abertura comercial e da globalização nos últimos anos.

O problema é que eles não têm o controle da base de militantes. Nesse caso, o peso da CUT (Central Única dos Trabalhadores) prevalece.

Vicentinho, dirigente máximo da CUT, está mais à esquerda de Luiz Marinho e Grana. Traduzindo: eventuais negociações para reduzir o Custo ABC na área trabalhista provavelmente não passariam pelo crivo cutista dominante entre militantes que formam uma minoria aguerrida no chão de fábrica. Suficientemente aguerrida para dominar as situações e estabelecer vontades de acordo com conceitos que não cabem no modelo de relações trabalhistas que a abertura econômica e a mundialização dos negócios costuraram. É uma escola sindical que não passaria pelo vestibular da modernização das relações trabalhistas.

O desmanche do Custo ABC do setor metalúrgico passaria necessariamente pelo fim de uma contradição que nenhum sindicalista ligado à CUT consegue explicar. Trata-se do repasse para os preços dos veículos de quesitos tipicamente de responsabilidade do Estado — casos de transporte, educação, saúde e plano de aposentadoria. Já viraram conquistas históricas, como costumam alardear as lideranças sindicais, essas velhas e surradas obrigações do Estado que a CUT, braço sindical do PT, tanto defende.

Incoerência sindical

Não deixaria de ser engraçado, se não fosse trágico, que o mesmo sindicalista que engrossa ou já engrossou grupos de manifestantes contrários à privatização dos transportes, da saúde, dos planos de aposentadoria e também do sistema educacional — todos de mal a pior sob os desarranjos administrativos do setor público — defenda com unhas e dentes acordos trabalhistas que garantam aos liderados tudo isso ofertado não pelo Estado, mas pela livre-iniciativa.

O Estado provedor, do qual os trabalhadores fogem como o diabo da cruz, parece só interessar mesmo às lideranças estatizantes. Desde que o ônus do depauperado serviço público não recaia sobre seus liderados.

Virou tradição para as montadoras de veículos e as autopeças que as rodeiam no Grande ABC a incorporação desses custos à folha de pagamentos dos trabalhadores. Tudo era absorvido sem traumas em outros tempos. Tempos de mercado fechado, de custos integralmente repassados aos preços, de inflação que possibilitava ganhos financeiros suficientemente graúdos para corrigir eventuais desequilíbrios de produção e radicalismo nas negociações trabalhistas.

Mas tanto montadoras quanto autopeças já se cansaram, porque a competição chegou para valer. Tudo isso, e mais alimentação e outros custos, agrava a margem de rentabilidade e compromete um jogo que já se iniciou contra as montadoras e autopeças que se estão instalando no Paraná, ou já produzem e se preparam para produzir em outros pontos.

Pelos cálculos da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), entre plano de saúde, Participação nos Lucros e Resultados, transporte, plano de aposentadoria, alimentação e outras despesas como educação, as montadoras do Grande ABC têm acréscimo de 16,6% na composição dos custos salariais. Os salários propriamente ditos e os encargos ocupam 82,4% dos valores.

Pequenos sofrem

O sacrifício que se impõe às pequenas, médias e grandes do setor metalúrgico da região no atendimento a atividades inerentes do Estado revela a face perversa do corporativismo e do paternalismo metalúrgicos. Não seria mais lógico que a CUT e os sindicatos sob seu guarda-chuva de representação lutassem pela capacitação do Estado em suas três esferas — o governo central, os governadores e os prefeitos — no atendimento dessa cesta básica de serviços, em vez de esfolar empresas cujos impostos, elevadíssimos, pressupostamente deveriam ser administrados de forma eficiente?

É claro que sim. Até porque supostamente têm massa crítica para isso, como provam os históricos das greves.

Mas o que se pode fazer se também aí prevalece a viseira corporativa? É mais fácil, rápido e interessante cuidar da própria tropa, em vez de arranjar encrencas com diversas dimensões de governos para melhorar o sistema de transporte, a rede de hospitais e pronto-socorros públicos, a Previdência Social e também o ensino profissionalizante. As empresas que se explodam. Ou melhor: os usuários dos veículos que se danem, porque são eles, em última instância, que vão pagar por mais essas incompetências governamentais e por esses desvios sindicais.

Essa equação até que seria interessante, algo como uma política robinwoodiana de tirar dos ricos e da classe média para dar aos trabalhadores remediados e pobres, se não fosse equivocada.

Primeiro, porque beneficia apenas parte ínfima da população — os metalúrgicos empregados. Segundo, porque prejudica parte ampla da população — os trabalhadores que perderam o emprego e sabem que o enxugamento industrial no Grande ABC, além de não ter retorno, deverá agravar-se à medida que outros pólos comecem a despejar novos veículos no mercado. Terceiro, porque despreza olimpicamente a competitividade global, que não perdoa favorecimentos e protecionismos. E quarto, porque ajuda a perpetuar o quadro de descalabro dos serviços públicos, cujos usuários são majoritariamente da população excluída, em nome da qual muitos sindicalistas costumam proferir discursos de solidariedade.

Benefícios  sedutores

Com todos esses benefícios extra CLT (Consolidação da Lei Trabalhista), é natural que os metalúrgicos da região não queiram nem ouvir falar em deixar as empresas. Até porque, não há no mercado salários mais interessantes. A argumentação de que a classe tem poder de compra que reflete num Grande ABC com o terceiro potencial de consumo do País é apenas meia-verdade. Cada vez mais se reduz o contingente de metalúrgicos na região, em contraposição à enxurrada de deserdados que engrossam os números de exclusão social e de criminalidade.

Com 2,3 milhões de habitantes, população duas vezes e meia menor que a de Nova York, o Grande ABC tem quase 40% mais homicídios — 900 contra 650 nos últimos 12 meses.

Os salários mais elevados dos metalúrgicos do Grande ABC representaram vantagens comparativas para a região durante o período no qual os reajustes dos vencimentos eram absorvidos sem convulsão pelas empresas, que os integralizavam nos preços dos veículos. Eram tempos em que a base de proprietários de veículos não conseguia se alargar e a obsolescência de gestão, de recursos humanos e de tecnologia nas fábricas colocava o País como produtor de carroças, como bem definiu o ex-presidente Fernando Collor de Mello.

Com a abertura econômica, as empresas reagiram e investiram para valer. Mas ainda é pouco para o que vem por aí em forma de concorrência.

Um exemplo que consta do relatório das montadoras e das autopeças é o turnover baixíssimo. Para quem não está enfronhado na linguagem de administração, turnover significa índice de rotatividade da mão-de-obra empregada, isto é, de admissões e demissões. Empresa tecnicamente sadia, dessas que fazem e acontecem, consegue média que nem vai às alturas e nem fica ao rés do chão. Um ambiente que espanta os melhores talentos é tão pernicioso para a eficiência empresarial quanto um que gera acomodação.

Empresa privada com jeito de empresa pública, onde o verbete demissão é pura fantasia, está fadada a derrapar e deslocar-se para o acostamento do mercado. O desencorajamento do turnover nas empresas metalúrgicas do Grande ABC é uma realidade. A proteção sindical é a melhor explicação — além dos salários e dos benefícios diversos.

Custos extravagantes

Baixa rotatividade de mão-de-obra combinada com taxas elevadas de absenteísmo formam mecanismo corrosivo a qualquer empresa. Pois é exatamente isso que consta do relatório. O índice de absenteísmo do trabalhador metalúrgico da região, de 4,5%, é mais que o dobro da média nacional. Falta-se demais ao trabalho entre outras razões, e aí constam do relatório os estudos dos outros grupos, porque a infra-estrutura da Região Metropolitana de São Paulo é um convite à improdutividade. Mas esse é outro item. O aspecto trabalhista é mais complexo ainda.

O sonho de aposentadoria numa grande montadora é mais forte que qualquer alternativa profissional. Só mesmo quando a situação aperta, como tem ocorrido de forma cíclica por força de recuos da demanda, praticam-se demissões. E mesmo assim os custos são elevados, porque os pacotes são recheados de bonificações negociadas em encontros que muitas vezes lembram, pela dramaticidade de argumentos, as desgastantes e exaustivas decisões de xadrez pelo título mundial.

Quem não se lembra das reuniões entre Fernando Tadeu Perez, executivo de Recursos Humanos da Volkswagen, e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luiz Marinho, para sacramentar a demissão de quatro mil trabalhadores no início do ano? Batalhões de repórteres e cinegrafistas fizeram maratonísticos plantões na sede da montadora, em São Bernardo.

Além de assumirem custos de serviços tradicionalmente de responsabilidade do Estado, as empresas observam parte desses recursos fugir pelo ralo do desperdício. Como todos os serviços são praticamente gratuitos, já que a contribuição financeira dos trabalhadores é absolutamente residual, não há empenho por racionalidade.

A rede de atendimento dos planos de saúde é ampla demais, por causa da exigência dos trabalhadores de praticamente ter uma clínica ou hospital na esquina de casa. Com isso, torna-se difícil qualquer negociação mais vantajosa de preços, porque a engenharia de controle dos custos burocráticos é mais complexa. O que seria possível ganhar com economia de escala se perde proporcionalmente com a deseconomia da pulverização.

As coberturas dos planos de saúde são uma louvação ao vale-tudo. Não contemplam apenas o trabalhador e familiares diretos, mas também agregados diversos. Em tom sarcástico, executivos de empresas dizem que só falta incluir o papagaio.

Transporte de exageros

O transporte também é um festival de exageros. Em horários atípicos, fora dos picos de entrada e saída do grande contingente de trabalhadores, há casos de ônibus com apenas meia dúzia de usuários que desembarcam ou embarcam na porta das fábricas. Seria mais lógico negociar outro tipo de transporte — as vans, por exemplo –, mas a alternativa geralmente se torna um campo de batalha, com exigências de conforto e segurança que avançam os limites da paciência. A solução, como se sabe, seria o mercado de transporte, seja do setor público ou do setor privado, tratar do atendimento.

No campo da remuneração, mais lamentos das indústrias metalúrgicas para a Câmara Regional tentar resolver. A remuneração direta está muito acima do mercado automotivo nacional, inclusive para novas contratações. Quadro comparativo preparado pelo Sindipeças (o sindicato de autopeças) é elucidativo quando decompõe o custo anual médio de uma empresa instalada em São Bernardo, de outra localizada no Interior do Estado e uma terceira, que preferiu os ares mais limpos e o sindicalismo menos ostensivo do Sul de Minas Gerais.

No quesito relativo a verbas salariais, subdividido entre salário nominal, um-terço de férias e 13º salário, São Bernardo acusa total de R$ 10.666,67, contra R$ 6.000 do Interior de São Paulo e R$ 4.933 do Sul de Minas. Quanto aos encargos sociais, que abrangem Fundo de Assistência Previdenciária, Sesi/Senai/Incra, Sebrae/Salário Educação/Seguro de Acidente de Trabalho, além de FGTS e rescisão, que correspondem a 38% dos custos salariais, São Bernardo alcança R$ 4.160, contra R$ 2.340 do Interior de São Paulo e R$ 1.924 do Sul de Minas.

Num terceiro bloco do quadro comparativo, referente a benefícios com transporte, assistência médica, restaurante e cesta básica, os valores também são expressivamente diferenciados por trabalhador: em São Bernardo custa R$ 3.304,80, no Interior de São Paulo R$ 2.260,80 e no Sul de Minas Gerais R$ 2.200,80.

O total dos custos anuais por trabalhador nas autopeças, relativos a verbas salariais, encargos sociais e benefícios, é flagrantemente desvantajoso para São Bernardo. A cidade da região atinge R$ 18.131,47, contra R$ 10.600,80 no Interior do Estado e R$ 9.058,13 no Sul de Minas. O Índice Comparativo utilizado pelo Sindipeças define a discrepância: São Bernardo atinge 200,17%, contra 117,03% do Interior do Estado e 100% do Sul de Minas. Isto quer dizer que cada dois trabalhadores do Sul de Minas têm o mesmo custo de um trabalhador de São Bernardo. E que proporção semelhante favorece a interiorização paulista.

A PLR, Participação nos Lucros e Resultados, também está entre os gargalos dos metalúrgicos. O princípio de isonomia e não de meritocracia, comum na ideologia socialista que move a CUT, não contempla metas setorizadas nem contribuições individuais. É uma diferença brutal em relação a outros setores industriais da região, como o petroquímico.

Cadê a meritocracia?

Empresas de grande porte e menos suscetíveis a tentativas de igualar os desiguais adotam política de PLR fundamentadas no cumprimento de objetivos individuais agregados a um conjunto de variáveis da companhia. Proposta semelhante aos metalúrgicos seria simplesmente bombardeada porque quebraria o conceito de igualdade que favorece mobilizações mas fragiliza planos de competitividade.

Também pesa nos custos das indústrias metalúrgicas da região a administração de atividades non core, ou seja, que não fazem parte da atividade vital da empresa. Casos de restaurantes, segurança, bombeiro e serviços em geral, inclusive administrativos, logística, manutenção e outros. Naturalmente envolvidos pela atividade principal da empresa, e pela histórica força de negociação dos sindicatos, os salários dos profissionais dessas áreas estão acima do mercado regional. Ganham pela força da inércia, embora não saibam, em muitos casos, distinguir área de ferramentaria de uma de pintura. São metalúrgicos por tabela.

Há, conforme o relatório, grande resistência sindical à terceirização de atividades para o aumento da produtividade. Muito diferente dos concorrentes que estão chegando em forma de montadoras e autopeças e que têm como princípios plantas enxutas, terceirizadas e tecnologicamente preparadas para o rala-e-rola do mercado. Cada nova planta automotiva que entrar em atividade no País e mesmo no Mercosul provocará novas contrações às empresas sediadas na região, com aumento das dores do parto da competitividade.

O mito da qualificação da mão-de-obra metalúrgica do Grande ABC não passa mesmo disso — mito. Cada vez mais não tem sentido o discurso de louvação demagógica à mão-de-obra regional como fator de atratividade de investimentos. Uma verdade que há alguns anos é comentada como segredo, porque a propagação poderia gerar contratempos, agora integra o relatório da Câmara Regional.

Desinteresse funcional

Boa parte da mão-de-obra regional não dispõe de escolaridade mínima para o desempenho de funções mais qualificadas, que se exigem à medida que se incorporam novos aparatos tecnológicos. Pior do que isso é a constatação de que muitos dos trabalhadores não se interessam pela melhoria de capacitação. Não só não se interessam como opõem resistência ao exercício da versatilidade, isto é, ao trabalho multifuncional que a concorrência também incorpora a seus contratados.

Também há resistência à implantação de novas tecnologias em ferramentas de produtividade e qualidade, entre outras finalidades. Especialmente as lideranças de chão de fábrica, com vínculos sindicais, não consideram ajuizado tudo que cheire à modernidade, porque poderia significar corte de mão-de-obra.

Os problemas no chão de fábrica não param por aí. Há resistência ao uso de equipamentos de proteção e segurança, com denúncia de deliberada disposição de trabalhadores comprometerem as empresas durante inspeções para elaboração de laudos periciais. Mascaram-se os resultados — denuncia o relatório –, por meio de simulações de exposição ao risco. O método é tão simples quanto aparentemente inacreditável: trabalhadores retiram luvas, óculos e outros apetrechos de segurança, ligam máquinas e se colocam em situação de insalubridade e insegurança diante da presença de inspetores.

Também fora dos limites das fábricas há manifestação de hostilidade entre capital e trabalho no Grande ABC — registrado pelo documento dos representantes da indústria automotiva. Na verdade, não está tão distante das empresas. Os chamados advogados de porta de fábrica, réplica dos profissionais que atuam na porta de delegacias de Polícia e cadeias, tornaram-se instituição tão enraizada no dia-a-dia das relações trabalhistas na região que seria imprudência desconsiderá-la. Eles são especialistas em tipificar vácuos de insalubridade e falta de segurança que acabam entupindo a Justiça do Trabalho e rendendo polpudas indenizações, das quais também se locupletam.

Há descompassos profundos também entre empregado e empregador no setor metalúrgico quando o assunto é jornada de trabalho — expressa o relatório. São vários os pontos de queixas das empresas. Há pausa no trabalho sem fundamentação técnico-ocupacional, com desconsideração dos avanços tecnológicos. O exercício da redução de jornada sem correspondente redução no salário mantém custos que só o banco de horas ameniza, quando utilizado.

Banco de proteção

Não consta do relatório, mas há informações de que banco de horas é invenção que protege exageradamente o trabalhador, muitas vezes refratário à compensação ou descompromissado com os níveis de produtividade quando tem de cumprir o acordado. Em muitas empresas prevalece pura e simplesmente a redução da carga horária com a manutenção do salário, já que compensar horas já recebidas não desperta o empenho exigido. Resumo: agrava-se o custo.

Até mesmo prefeituras administradas pelo Partido dos Trabalhadores aplicam o conceito de redução dupla e simétrica — de jornada de trabalho e de salários. É o caso de Santo André. O prefeito Celso Daniel não teve dúvidas, ano passado, em não só reduzir salários proporcionalmente à jornada de trabalho como em promover demissões em larga escala. Ele sofreu pressão do Sindicato dos Servidores Públicos, ligado à CUT, mas optou por perder os anéis para salvar os dedos.

A prefeita igualmente petista de Ribeirão Pires, Maria Inês Soares, acaba de criar um banco de horas para amortizar com concessão de folgas metade dos custos com horas extras do funcionalismo. Em ambos os casos, em Santo André e em Ribeirão Pires, falou mais alto e espírito comunitário, o interesse coletivo. Não é exatamente isso que se encontra nas montadoras e autopeças, onde as pressões são exclusivamente pela preservação da corporação.

Também há indisponibilidade às empresas para utilização do que os executivos chamam de contratação atípica. Casos de contratos para trabalhos especiais, práticas de turnover, dispensa após contratação por prazo determinado. Tudo que já é permitido pela legislação federal, minimamente flexibilizada nos últimos tempos. A CUT defende até as raízes do cabelo o modelo ortodoxo da social-democracia européia, cujas taxas de desemprego alcançaram dois dígitos desde que se aprofundou o processo de globalização, e abomina qualquer coisa que mesmo de longe tenha ligação com o conceito de flexibilidade dos norte-americanos, donos da economia mais desenvolvida e que mais cresce no planeta.

A explicação oficial é que flexibilidade rima com precarização das relações trabalhistas. Como se o quadro de informalidade do mercado de trabalho não fosse dominante e se não tivesse robustecido a partir da promulgação da ilusionista Constituição Federal em 1988. O Estado Velho de Getúlio Vargas, uma caricatura tupiniquim do Estado do Bem-Estar Social europeu, cujo modelo a própria CUT critica em muitos aspectos da legislação trabalhista e sindical, torna-se intocável quando se trata de flexibilizar.

Em vários pontos a convenção coletiva dos metalúrgicos chega a ser extravagante, além de contraditória. É o caso, por exemplo, do artigo que estabelece garantia de emprego ao funcionário acidentado até adquirir direito à aposentadoria no prazo máximo. Mais uma vez, manifesta-se no seio cutista a desconfiança ao sistema público de previdência, porque a manutenção do emprego de alguém parcial ou integralmente incapacitado para produzir é uma saída encontrada para que a corporação escape dos humilhantes proventos reservados pela Previdência Social aos aposentados e pensionistas de trabalhadores da livre iniciativa.

Ações contraditórias

Ao mesmo tempo em que, com esse tipo de protecionismo corporativista, provoca a elevação dos custos de produção, cujo repasse ao preço do produto se torna cada vez mais inviável, a CUT luta para manter praticamente intocável o sistema de pensões e aposentadorias que privilegia funcionários públicos federais, estaduais e municipais. Com apenas 14,7% do contingente total num confronto com a livre-iniciativa, os servidores consomem 50,3% do orçamento da Previdência.

Ainda não terminou a fuzilaria das montadoras de veículos e do Sindipeças ao que foi gerado em forma de fortuna regional a partir da greve na Scania de São Bernardo, há exatos 20 anos, e que se tornou, com a globalização econômica, um autêntico entulho sindical que compromete sistematicamente o Grande ABC. O relatório que há um mês está nas mãos do prefeito Maurício Soares e do secretário Fernando Longo, entre outros integrantes do Grupo de Competitividade do Setor Automotivo, também destaca questões ligadas à empregabilidade.

Relata que falta política de aproveitamento da mão-de-obra excedente regional quando da contratação de terceiros e no desenvolvimento de fornecedores. Afirma também — e isso é um chute abaixo da linha da cintura de quem insiste em dizer o contrário, num ufanismo típico de locutor esportivo em transmissão de jogos da Seleção Brasileira — que empresas têm demonstrado receio e desinteresse em se instalar na região. Também afirma que os trabalhadores locais sentem-se amparados pelos seus representantes e praticam desobediência administrativa, desrespeitando o que já foi negociado com suas representações, sempre em proveito próprio.

As intervenções dos representantes dos sindicatos dos trabalhadores (Metalúrgicos do ABC, ligados à CUT, e Metalúrgicos de São Caetano, ligados à Força Sindical) foram tão escassas quanto preocupantes. A impressão é de que há de um lado argumentações de um boxeador peso-pesado e de outro esboços de um peso-pena.

Sobre os benefícios, os sindicalistas afirmam: falta discussão nacional com o setor, visando negociação que regule as condições de trabalho na indústria automobilística, pisos salariais por função e benefícios mínimos. Para quem não entendeu, a explicação é simples: pretende-se que o Brasil inteiro adote o Custo ABC. É uma repetição da conclusão do recém-encerrado Congresso Nacional dos Metalúrgicos, presidido por Heguiberto Guiba Navarro, antecessor de Luiz Marinho na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Custo anacrônico

Como se observa, há uma dose de romantismo que não resiste ao simples fato de que entre vários motivos da evasão industrial e do desinteresse em novas empresas instalarem-se na região está justamente o peso do anacronismo sindical.

Quanto à remuneração mais elevada no Grande ABC, os sindicalistas afirmam que falta política salarial planejada e negociada para curto, médio e longo prazos. Relatam no documento que não existe discussão setorial, também envolvendo as autopeças, para alcançar estrutura salarial baseada em critérios profissionais para a evolução horizontal e vertical da tabela. Não há no documento qualquer sinalização específica que demonstre interesse em ir mais a fundo na questão.

A cultura de processos trabalhistas, que fabrica advogados de porta de fábrica, é relacionada pelos sindicatos à permanência de atividades insalubres, ou seja, dá-se inteira razão aos trabalhadores e aos advogados contratados ou que se fazem contratar. Quanto à terceirização, dizem que há ausência de acordos que sinalizem novos tempos e que o processo normalmente está associado à redução do nível de emprego e à precarização do trabalho, além da perda de qualidade do fornecimento.

Dos três pontos citados, o que surpreendeu foi o último, porque a questão da qualidade de fornecimento é preocupação normalmente da empresa, não do sindicato. A baixa qualidade da mão-de-obra é atribuída à falta de políticas tripartites para qualificação profissional. Uma resposta que, pelo menos, admite que o culto à qualificação não passou de um grande blefe engolido por gente graduado, intelectuais de primeira que sempre aparecem para fazer média com o Grande ABC. Os sindicalistas metalúrgicos sugerem, portanto, que a questão deve ser resolvida entre empresa, sindicato e governo.

Sobre as contratações atípicas, o relatório dos sindicalistas afirma que a ação normalmente joga o ônus das perdas sobre os trabalhadores, deixando o Estado e os empresários livres de darem parcela de contribuição, citando como exemplo a atual legislação do Contrato por Prazo Determinado. Uma resposta que não surpreende dado o posicionamento pró-inflexibilidade da CUT.

A jornada de trabalho é tratada pelos sindicalistas sob a ótica de que é preciso negociação setorial, incluindo fornecedores (autopeças). Com isso, seriam possíveis modularizações flexíveis da organização do tempo de trabalho, ao mesmo tempo em que se viabilizaria a progressiva redução da jornada para as 40 horas semanais em média. O relatório sindical não faz qualquer menção à contrapartida da redução salarial e muito menos recolhe exemplos de prefeituras administradas por partidos ditos progressistas.

Representações no trabalho

Um item final do relatório, voltado à Organização do Local de Trabalho, ficou em branco do lado dos representantes das empresas, porque acabou analisado anteriormente em outros tópicos, mas foi preenchido pelos sindicalistas. É sintomático da barreira que separa interesses das empresas e dos sindicalistas. Eles reclamam de dificuldade ainda existente em algumas montadoras e autopeças da região para instalar representações no local de trabalho.

Para a CUT, conforme o Congresso Nacional dos Metalúrgicos, é decisivo para os planos de ampliação do poder sindical a propagação das chamadas comissões de fábricas. Para as empresas — e isso não consta deliberadamente do relatório, mas apenas nas entrelinhas — são exatamente esses representantes sindicais que colocam mais fervura e menos competitividade nas relações entre capital e trabalho, porque estabelecem fronteiras que plantas industriais mais enxutas, mais modernas e mais qualificadas simplesmente desconhecem.

Nesse redemoinho de problemas, a General Motors de São Caetano sente-se privilegiada no Grande ABC. Longe imaginar que as relações entre trabalhadores e empresa sejam modelo que a Fiat de Betim gostaria de ter em seu chão de fábrica, ou que as montadoras que se instalam na Grande Curitiba adorariam recepcionar. Esse quadro num caldeirão sindical que é o Grande ABC seria tão inverossímil quanto acreditar em virgindade em zona do meretrício.

A diferença está na disposição para negociar. Filiados à Força Sindical de Luiz Antônio de Medeiros, os metalúrgicos da GM são mais compreensivos com as metas da empresa, desprezam o curto prazo e buscam a prática do que se convencionou chamar de sindicalismo de resultados, não de dogmatismo. Em termos de custos operacionais não há grandes diferenças, mas o clima é mais propício ao negócio como um todo. O empenho é mais agudo. Diferente do que acontece com a unidade da General Motors de São José dos Campos, cuja representação sindical é de uma CUT ainda muito mais ortodoxa que a de São Bernardo.

Apenas uma parte

Acreditar que agora em setembro a Câmara Regional do Grande ABC vá conseguir um acordo cujo teor seja decididamente representativo na recomposição de conceitos cimentados durante 20 anos é relacionar todos os participantes da Câmara Automotiva como cabeças coroadas. Essa instância informal de poder que reúne prefeituras, governo do Estado, representações empresariais, sindicais e sociais deu passo decisivo para aproximar porções tão díspares do mundo econômico regional, mas isso é apenas parte do roteiro de mudanças cuja duração deve se estender por muitos e muitos capítulos.

Ninguém aceita — no caso a massa corporativa de metalúrgicos — abrir mão de vantagens comparativas que o inquietante documento do Grupo de Relações Trabalhistas denuncia. Embora decadente, a indústria metalúrgica da região ainda não atingiu o fundo do poço que normalmente provoca catarse e medidas saneadoras.

Os outros três Grupos de Trabalho da Câmara Regional voltados ao setor automotivo também têm importância relevante para a competitividade regional. O GT de Infra-Estrutura detectou quatro macroproblemas nos primeiros diagnósticos. A malha viária é adicional de dificuldades da região. Uma das propostas é integrar os sistemas ferroviário e rodoviário e aperfeiçoar o ferroviário, que todos sabem convidativo à ineficiência. A Avenida dos Estados é mencionada sem explicações, porque desnecessárias. Apesar de melhorias no trecho sob a administração da Prefeitura de Santo André, continua entrecortada de obras e buracos.

O escoamento da produção dos fornecedores de autopeças do Pólo Industrial de Sertãozinho também é apontado como deficiência regional. A idéia de ligar aquele distrito industrial de Mauá com a Via Anchieta é velho sonho e antiga necessidade. Os trevos incompletos da Via Anchieta oferecem boas notícias, porque vários já estão em obras e pelo menos mais dois serão construídos. Consta também do documento a melhoria da interligação Anchieta/Imigrantes e a recuperação da mortal Índio Tibiriçá, Rodovia que liga Ribeirão Pires a São Bernardo.

O sistema de macrodrenagem, para eliminação de enchentes, igualmente deslancha. Os pontos mais críticos apontados pelo diagnóstico são o largo Piraporinha, o trevo da Vila Paulicéia e a Ponte Taboão, todos com ação direta no rebaixamento dos índices de agilidade do fluxo de tráfego. O prefeito Celso Daniel, de Santo André, quer incluir a Avenida dos Estados no roteiro de construção dos chamados piscinões. O estudo reclama ainda da saturação das vias de tráfego, inimigas preferenciais do just-in-time, sistema logístico de distribuição que evita custos de estoques.

Há também crítica de sete palavras (não representa alternativa eficaz definitiva — sistema paliativo) ao rodízio de veículos. Sugere-se, sucintamente, inspeção veicular e manutenção dos veículos. O meio ambiente, aliás, ganha enfoque no Grupo de Infra-Estrutura. Há preocupação das fábricas automotivas com os resíduos sólidos industriais das classes I, II e III e com a invasão das áreas de servidão da Eletropaulo, irregularidade que impede a ampliação da carga de energia necessária às empresas.

O porto de Santos entra nas preocupações por causa da composição dos custos, expressa na tarifa de marinha mercante de 25%. Sugere-se alternativa para o desembaraço alfandegário nas próprias empresas e infra-estrutura de armazenamento.

Há queixas também ao sistema de água e esgoto quanto à forma de tarifação, profundamente diferenciada entre residências e empresas. Critica-se — sempre de forma telegráfica — a qualidade de vida devido às deficiências na disponibilidade de habitação popular, rede hospitalar e transporte coletivo, além de segurança pública. Citam-se também a questão das invasões de áreas de proteção dos mananciais e a carência de energia alternativa, em forma de gás natural e unidades cogeradoras de energia.

O Grupo de Desenvolvimento Tecnológico constatou a necessidade de implantar um Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para sistematização do processo de manufatura, capacitação e qualificação profissional nos níveis técnico e universitário. O Grupo de Impostos ainda está em fase de avaliações. De imediato, a queda de alíquotas de IPI, elevadas em 5% em outubro do ano passado por causa da influência da crise asiática, tornou-se vital para o enfrentamento de um problema circunstancial, de recuo das vendas de veículos.

Concorrência já pesa

Não é difícil entender por que a atividade automotiva no Grande ABC corre mais riscos de esvaziamento. A principal explicação chama-se concorrência. Há 10 novas montadoras se instalando no País, com capacidade aproximada de 400 mil veículos por ano, ou 20% da produção alcançada no ano passado por todo o parque automotivo nacional. A competição também vem em forma de Mercosul, sobretudo da Argentina. Para agravar, a perspectiva é de que o quadro econômico vai reduzir a produção para 1,6 milhão de veículos este ano. O mercado está em marcha lenta, depois de forte frenagem. As montadoras dão férias coletivas, usam os bancos de horas, fazem tudo para não recorrer a demissões sempre onerosas. As autopeças, menos visíveis e mais vulneráveis nas relações comerciais, não têm o que fazer senão demitir.

Com seis montadoras, o Grande ABC já foi responsável por quase toda a produção do setor no País, mas hoje representa perto de 45%. A queda da participação relativa tende a se acentuar. Cada veículo de montadora que se instala no País significará dores de cabeça para a competitividade das empresas na região — automobilísticas e autopeças — pela simples razão de que seus custos serão menores. E não são apenas os salários e as chamadas conquistas sociais dos trabalhadores na região que desalinham a relatividade de preços. As novas empresas beneficiam-se da guerra fiscal, que reduz impostos municipais e estaduais, e contam com plantas menores, mais enxutas, com alto grau de terceirização. Sem contar que o fator qualidade de vida é intensamente desfavorável ao Grande ABC.

As montadoras e autopeças do Grande ABC têm investido em modernização tecnológica nos últimos anos, numa corrida contra o enferrujar das linhas de produção. Entretanto, os resultados nem de longe se comparam às novas empresas que se estão instalando no País. Enquanto a região observa o emagrecimento do quadro de trabalhadores no setor industrial, dentro da lógica da substituição da baixa produtividade de homens pela automaticidade das máquinas, na Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná, onde desde o início de 1996 três montadoras e 21 fábricas de autopeças iniciaram a construção de unidades, serão gerados 12,5 mil empregos diretos. A Chrysler já inaugurou fábrica, a Renault e a Volkswagen/Audi estão em obras. Só daquela região serão 300 mil veículos por ano que sairão da linha de montagem.

Ford quebra o protocolo

O presidente da Ford do Brasil, Ivan Fonseca da Silva, não foi convenientemente agradável para boa parte da platéia que, em maio do ano passado, praticamente lotou o Teatro Municipal de Santo André durante o 1º Seminário Internacional de Desenvolvimento Econômico e Social do Grande ABC, promovido pela Câmara do Grande ABC. O evento reuniu especialistas de vários centros econômicos que viveram o fenômeno da desindustrialização. Ivan Fonseca foi de uma sinceridade dilacerante: alertou sem meias palavras sobre o Custo ABC. Disse o dirigente da Ford que os custos de operação da empresa são enormes, ameaçando a permanência da indústria automobilística na região. “Um trabalhador custa US$ 14 por hora para a Ford. Grande parte dessa quantia vai para os impostos”. Segundo Fonseca, em Betim, a Fiat pagava US$ 7,30 por hora/empregado, enquanto em São Carlos a Volkswagen desembolsava US$ 6,80.

O pronunciamento de Ivan Fonseca não desceu aos detalhes do relatório apresentado agora pelo Grupo de Trabalho da Câmara Automotiva. Ele preferiu não estabelecer de forma explícita as diferenças entre capital e trabalho. Optou por ater-se às consequências que não deixam margens a dúvidas: a competitividade das montadoras sediadas no Grande ABC tem a consistência de gelatina.

Sindicalismo em baixa

O sindicalismo brasileiro vai enfrentar taxas ainda mais declinantes de filiação nos próximos anos. A avaliação foi feita recentemente na Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) pelo sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, titular de Ciência Política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). As causas do emagrecimento sindical são um coquetel formado por razões econômicas, como a desconcentração industrial, e outras ligadas à estrutura das relações de trabalho diante do avanço tecnológico e da automação.

Leôncio Martins Rodrigues fez análise da evolução do sindicalismo mundial, em que mostrou que a redução da taxa de filiação é fenômeno universal. Os sindicatos europeus viveram seu auge na década de 80, com 44% dos trabalhadores filiados. Entre 1985 e 1988, contudo, em nenhum país da Europa a sindicalização cresceu. A desfiliação nos sindicatos de trabalhadores começou antes do universo global: na França e no Japão o processo começou em 1975, embora até 1990 as perdas no país asiático tenham sido pequenas; na Holanda e no Reino Unido, em 1979; na Suíça, em 1978.

Nos Estados Unidos, onde 80% dos trabalhadores estão fora dos acordos coletivos, o pico da sindicalização ocorreu por volta de 1953, segundo o sociólogo da Unicamp. Um em cada quatro trabalhadores norte-americanos estava sindicalizado.

O esvaziamento sindical é inexorável à medida que desaparece a classe operária tradicional das chamadas fábricas de chaminés, como explica Leôncio Rodrigues. O aumento do trabalho terceirizado, a globalização, a redução das encomendas militares ao setor metalmecânico, a presença maciça da mulher no mercado de trabalho e o crescimento do segmento de serviços, lazer e comunicação, atividades nas quais os trabalhadores são pouco propensos à sindicalização, formam uma artilharia que incomoda as lideranças sindicais. Leôncio Rodrigues sugere antídoto que ele próprio avalia como apenas relativamente passível de sucesso: a organização de trabalhadores em novos grupos profissionais, que surgem de economias globalizadas. “O problema é que esses novos segmentos não parecem propensos a aderir aos sindicatos” — comentou.

Prefeito espera 

A expectativa do coordenador do Grupo do Setor Automotivo da Câmara Regional, prefeito Maurício Soares, e do secretário de Desenvolvimento Econômico de São Bernardo, Fernando Longo, é de que o acordo seja anunciado em 16 de setembro. Novo encontro está marcado para o próximo dia 18, na tentativa de começar a formatar as linhas básicas do eventual acerto. A iniciativa do prefeito de São Bernardo tem apoio dos participantes, mas há ceticismo quanto à abrangência dos quesitos que teriam a concordância expressa das partes envolvidas. Um acúmulo das chamadas conquistas sindicais de 20 anos não seria fundamentalmente modificado em alguns meses.

É mais provável que haja unanimidade em pontos tópicos, como a redução de impostos que incidem na planilha de custos dos veículos e gestões político-administrativas que denunciem o caráter predatório da guerra fiscal, como se prenunciou no mês passado. A primeira medida não teria impacto exclusivamente sobre as fábricas de veículos e autopeças sediadas na região, mas em todo o território nacional. A segunda depende basicamente de capítulo específico na pretendida reforma de Estado. Situação inverossímil diante de dois obstáculos: nem o governo federal quer desestimular a chamada desconcentração econômica do País, nem os governadores e prefeitos de Estados que exercitam redução de custos de infra-estrutura e tributários aceitam mexer nos times que estão ganhando de goleada de São Paulo.

Sete montadoras de veículos da região estão representadas no grupo de trabalho: Ford (Valter Trigo), Volkswagen (Marcos Carnielli), General Motors (Antônio Alcântara), Mercedes-Benz (Sérgio Kacas), Scania (Luiz Antonio Secol e Celso Costa), Toyota (Jorge Mulhall) e a parceria estabelecida entre a Karmann Ghia e a Land Rover/BMW (Traugott Gehring). O Sindipeças e os Sindicatos dos Metalúrgicos do ABC e de São Caetano completam a lista, além do governo do Estado, por meio de seu principal executivo regional, o engenheiro Armando Laganá.



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