Imprensa

Voltar ao passado para
entender o presente (5)

DANIEL LIMA - 21/03/2017

A edição de março de 1997, que comemorava o sétimo aniversário de circulação da revista LivreMercado, tornou-se histórica. Nada menos que 46 das 96 páginas foram compartimentadas na Reportagem de Capa. Raramente uma publicação dedica tanto espaço de uma edição à âncora da Reportagem de Capa. Vale a pena resgatar o “Editorial” de LivreMercado, espaço que revela a linha da publicação, para que, duas décadas depois, os leitores compreendam aquela iniciativa. Eis alguns dos trechos selecionados sob o título “Sociedade é a bola de cristal da capa”: 

 A sociedade é a bola de cristal que vai dar as respostas de que o Grande ABC prescinde para navegar em mares menos agitados nos próximos anos e, assim, substituir a grande interrogação da capa desta edição por um gigantesco ponto de exclamação, o que hoje poucos teriam a ousadia de perpetrar. É simples coincidência o fato de esta publicação estar completando, com esta edição, sete anos de circulação e a elaboração da reportagem especial de 46 páginas que trata do futuro do Grande ABC. A motivação desse material (...) é a formação da Câmara Regional do Grande ABC, proposta inovadora de compartilhar planejamento, projetos e ações com participação do governo do Estado, Executivos e Legislativos locais, Fórum da Cidadania, além de Sindicatos e, espera-se, representações de grandes empresas. A Câmara Regional pretende configurar-se como instância especial de sociedade negociada. Seus líderes evitam dizer o estigmatizado termo que mais facilidade teria de entendimento pelo grande público, mas se trata mesmo é de um pacto, naturalmente com múltiplos protagonistas. É provável que dificuldades de gestão desse novo organismo institucional ocorrerão, tal a diversidade de atores que lhe darão sustentação. O prevalecimento hierárquico do governo do Estado, contrariamente ao que algumas lideranças da região entendem como desequilíbrio de forças, deve ser interpretado pelo lado positivo de que obrigará o secretário estadual Emerson Kapaz a desdobrar-se pelo sucesso da iniciativa. (...) Mas isso não importa. Certo mesmo é que Emerson Kapaz, cujas pretensões políticas não se esgotam como secretário de Estado, de Desenvolvimento Econômico, fará tudo para essa peteca não cair, o que, em última instância, favorecerá sua atuação como ponta-de-lança da regional junto ao governador. A convivência de membros do Fórum da Cidadania e do Consórcio Intermunicipal, provavelmente com o agregado legislativo, também se reveste de oportunidade especial para o amadurecimento institucional da região. Desbravador da revolução institucional que se apresenta, o Fórum da Cidadania não é companhia das mais agradáveis a parcela do Poder Público, foco maior de sua artilharia. (...) O Fórum está atento, autocrítico quanto às necessidades de reformular-se estruturalmente e, acreditem, vai ser de fato o regulador da voltagem da efetiva cooperação entre os Poderes Públicos regional e estadual, provavelmente com a capacidade mediadora de evitar curtos-circuitos e também de impedir que venham a impor ao novo organismo possível ritmo eleitoral. A bola de cristal da capa desta edição, tratada por mãos suaves, não é exercício de esoterismo. É a simbologia de que o Grande ABC precisa prospectar o futuro sem perda de tempo, porque o passado de glórias e omissões e o presente de interrogações oferecem-lhe a inescapável alternativa de renovar ou perecer.

Decadência expressa 

Entenderam os leitores que acompanharam cada linha do “Editorial” de 20 anos atrás o quanto o Grande ABC estava potencialmente distante de vir um dia a ser chamado de Província do Grande ABC. Quanta diferença em relação ao desânimo generalizado destes dias. A matéria principal que abriu a Reportagem de Capa, sob o título “O futuro à sociedade pertence”, é densa e faz um apanhado histórico da região. Leiam alguns parágrafos: 

 Como temer o futuro uma região geograficamente metropolitana que reúne sete prefeitos igualmente decididos a empreender gestões integracionistas? Como temer o futuro uma região que tem uma entidade chamada Fórum da Cidadania que, em quase três anos de atividades, só coleciona sucessos como agente mobilizador da sociedade? Como temer o futuro uma região que tem em seus respectivos Municípios secretários de Desenvolvimento Econômico decididos a implementar ações conjugadas, tal qual seus chefes, os prefeitos? Como temer o futuro uma região eleita pelo governo do Estado para sediar o lançamento da Câmara Regional, primeira e inusitada experiência de gestão compartilhada de uma numerosa agenda de intervenções, da qual farão parte, além do próprio Estado, os prefeitos, através do Consórcio Intermunicipal, os vereadores, que também arregaçaram as mangas, a sociedade civil, através do Fórum da Cidadania, lideranças sindicais e empresariais diversas? Como temer o futuro uma região com 2,3 milhões de habitantes que representam o quarto maior potencial de consumo do País? Como temer o futuro uma região que conta com retumbantes investimentos nas áreas comercial e de serviços, que tem como sede grandes indústrias, que reúne operariado de qualificação superior à média nacional, que tem gama imensa de executivos que disputam novo filão de negócios na área de consultoria? Como temer o futuro uma região em que uma de suas principais empresas, a Ford, anuncia para o próximo dia 14, com a esperada presença do presidente Fernando Henrique Cardoso, o lançamento da produção de um avançado modelo de veículo, o KA? O KA é um automóvel revolucionário que incorpora estilo ousado e criativo e ganhou o título de Carro do Ano e oito outros importantes prêmios na Europa. É um popular que chega ao Brasil cinco meses depois do lançamento oficial no Primeiro Mundo. O Grande ABC tem esses e outros motivos para acreditar no futuro. E deve insistir nessa perspectiva, até porque o contrário seria catastrófico. Mas o bom senso não pode escamotear uma dura e inquietante realidade: toda essa movimentação praticamente sem paralelo no País, pelo menos no volume e intensidade com que vem sendo concebida, são fantasmas exorcizados dos armários do comodismo, da dispersão, da insensatez, e do descaso coletivo protagonizados durante quatro longas décadas. Exatamente a partir do momento em que o Grande ABC começou a ganhar a configuração de poderosa região econômica, com a implantação da indústria automotiva.

Confiança comedida

Repararam os leitores que LivreMercado, antecessora de CapitalSocial, porque sob a mesma direção editorial, destilava otimismo em relação ao futuro da região sem, entretanto, deixar a cautela de lado ante as sombras do passado de desencantamentos? A reportagem seguinte editada naquele março de 1997 abordava as montadoras de veículos. Alguns trechos sob o título “Montadoras já não são a garantia”: 

 A adaptação de um estribilho de música sertaneja que já fez sucesso no Brasil — aonde a vaca vai, o boi vai atrás — serve de suporte para o que se descortina no horizonte da economia do Grande ABC. Basta leve enxerto para que o bordão deixe o mundo musical e se transforme numa inquietante frase socioeconômica. Ficaria assim: aonde a vaca das montadoras de veículos do Grande ABC vai, o boi da economia regional vai atrás. Pode ser uma frase de mau-gosto, dessas que poucos teriam coragem de repetir, mas é rigorosamente uma constatação. Se voltasse no tempo, o efeito dessa metáfora seria gratificante no final dos anos 50, quando a indústria automobilística deitava raízes fortes na região. Também no final dos anos 60 seria bem-vinda, porque o parque automotivo e de empresas satélites esbanjava vitalidade. Já no final dos anos 70, a situação começaria a se alterar, com a abertura da temporada de deserções ainda não detectadas pelos ufanistas. No final dos anos 80, já sob os efeitos da saturação da Região Metropolitana de São Paulo, do explícito incentivo do governo estadual à interiorização e dos constantes entreveros sindicais, não era mais despropósito a paródia musical. Agora, no final dos anos 90, com globalização, abertura econômica e descentralização em massa de investimentos no setor, o que se tem é muita, mas muita preocupação.

Entrevista com Luiz Marinho 

A reboque das montadoras de veículos também foi ouvido o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luiz Marinho, mais tarde ministro do governo federal de Lula da Silva e também prefeito de São Bernardo. Vale a pena ler os primeiros parágrafos da abertura da entrevista: 

 Luiz Marinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema e que luta na Justiça pela base de Santo André, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, entende que os trabalhadores da região são importantes protagonistas de qualquer gestão político-institucional para corrigir a rota socioeconômica do Grande ABC. Por isso, desde já garantiu postos na Câmara Regional do Grande ABC, uma inédita composição de forças entre o governo do Estado, os Poderes Executivo e Legislativo e o Fórum da Cidadania, representante da sociedade civil organizada. Luiz Marinho não esconde preocupação com o futuro da região, mas não se entrega às dificuldades. Mais que isso: considera os problemas regionais contornáveis e superáveis. O novo quadro político-administrativo do Grande ABC o agrada. Ele acredita que os novos prefeitos têm muito maior disposição de colocar a mão na massa do que os que deixaram recentemente os respectivos Paços Municipais. Tanto que tem esperanças de transformar em campanha regional o programa que sensibilizou apenas o ex-prefeito de Diadema, José de Filippi Júnior. Trata-se de espalhar para os sete Municípios a campanha de alfabetização de adultos. (...) Ele também defende o regime de concorrência aberta, de livre-mercado, entre os Sindicatos na luta pelo apoio dos trabalhadores da indústria regional, eliminando-se a unicidade sindical e substituindo-a pela pluralidade. Assim, o Sindicato que dirige tanto poderia ter associados em São Caetano, onde quem está à frente dos trabalhadores é a Força Sindical, como a Força Sindical poderia atuar nos Municípios em que a Central Única dos Trabalhadores, à qual seu Sindicato está vinculado, tem absoluto domínio. “Isso daria mais eficiência ao sindicalismo” — garante.

Entrevista com Butori 

Talvez seja desnecessário lembrar que a unicidade sindical virou tema-morto na agenda das lideranças do setor. Na Reportagem de Capa de março de 1997 também foi reservado espaço a entrevista com Paulo Butori, presidente do Sindipeças. Leiam os parágrafos iniciais, cujo título era um chute na canela do sindicalismo: “Dirigente de autopeças afirma que estigma sindical é forte”: 

 Só um pacto dos Sindicatos com as empresas no sentido de frear a intensidade das reivindicações salariais pode atenuar as dificuldades por que passa o setor de autopeças no Grande ABC, um dos que encabeçam a lista de migrações para outras regiões e Estados. O presidente do Sindipeças, Paulo Butori, aponta o estigma do forte sindicalismo como ponto cardeal de resistência a novos investimentos na região e como item básico nos custos das autopeças, que em Minas Gerais pagam até 60% menos e crescem quase o dobro do resto do País. A isso, soma a conjuntura desfavorável da baixa alíquota de importação que está nocauteando o setor diante da competição externa e das pressões das montadoras. O resultado é um furacão de compras atingindo as cerca de 1,3 mil autopeças brasileiras, um terço das quais na região, e o desemprego de quase 100 mil trabalhadores desde 1990.

Fórum da Cidadania 

A reportagem seguinte fazia balanço sobre a atuação do Fórum da Cidadania do Grande ABC, organização coletiva que vivia os melhores momentos desde que foi criada três anos antes. Alguns dos parágrafos escolhidos: 

 Só mais recentemente, nos dois últimos anos, com o surgimento do Fórum da Cidadania, a expressão Grande ABC começou a justificar existência e a deixar o terreno da metáfora. Até então, não passava de abstração. Os sete Municípios que compõem a região — Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra — mereciam mais que a ortodoxa e complicada expressão ABCDMRPRGS com que alguns políticos à moda antiga ainda a identificam, desprezando o eloquente marketing da denominação Grande ABC. Mas levará ainda muito tempo para que esse conglomerado de mais de 2,3 milhões de pessoas tenha mesmo espírito consolidado de regionalismo que valorize a cidadania. Primeiro, será preciso, ainda, vencer as barreiras de municipalismo individualista e provinciano que se manifesta nos setores públicos, em entidades de classes empresariais, de profissionais liberais, de trabalhadores, de estudantes e de tudo que deva ser catalogado como sociedade. O Grande ABC de fronteiras salientes, de políticas públicas anacrônicas para a realidade da metropolização da Grande São Paulo que o envolve, ainda é uma grande obra a ser construído. A identidade municipal sofreu e sofre os abalos do fluxo de correntes migratórias, da proximidade com a Capital e do limitado número de veículos de comunicação, na quase totalidade representados por jornais que atingem classes sociais mais elevadas. Somem-se a isso os efeitos devastadores da Aldeia Global patrocinada pela televisão e se tem um coquetel de baixa sensibilidade comunitária regional e de inter-relacionamentos fraccionados. Por isso, o Fórum da Cidadania é avaliado como instrumento aglutinador, o elo que se necessitava para dar conceitualmente um mínimo de harmonia regional a um debilitado grupo de sete províncias próximas. 

Complicações estruturais

Mais uma vez se deve chamar a atenção para a linha editorial crítica de LivreMercado. Não havia condescendência com o erro e com as falhas individuais e coletivas. O modelo de jornalismo interpretativo que a Província do Grande ABC jamais contou era a expressão de uma modernidade que chocava. A matéria seguinte da Reportagem de Capa daquela edição histórica tratava de problemas de infraestrutura. Leiam: 

 A proximidade com São Paulo, notável centro de negócios e consumo, e também com o Porto de Santos, caminho mais curto para o comércio internacional, favoreceu a inserção do Grande ABC no mapa dos principais polos econômicos da América Latina. Mas isso já faz parte do passado, embora ainda tenha grau de importância. Ao longo de quatro décadas, da implantação à recente modernização da indústria automotiva, a região viu sua infraestrutura física deteriorar-se e também foi impiedosamente abatida pela complexidade legislativa que, além de desestimular a manutenção de investimentos, motivou deserções. A partir do momento em que várias regiões do Estado de São Paulo e de outras unidades da Federação, principalmente a vizinha Minas Gerais, decidiram disputar investimentos industriais com a volúpia de Casanova, o Grande ABC passou a sofrer sangrias. Embora tenha razoável disponibilidade de áreas físicas para novas fábricas, sobretudo de pequeno porte, a região não consegue reunir atratividade para investimentos.

Entrevista com Cândido Malta 

Uma nova entrevista estava reservada àquela edição histórica. Desta feita com Cândido Malta Filho, urbanista de renome. Os primeiros parágrafos: 

 Os empresários podem dar importante contribuição à melhoria da qualidade de vida nas grandes cidades, participando da elaboração de unidades de vizinhança. É como o professor e arquiteto Cândido Malta Campos Filho chama o planejamento dos bairros, a solução mais fácil à mão para tentar reverter o caos dos centros urbanos e o crescimento desordenado da periferia, com a explosão das favelas. Cândido Malta acha possível ao Grande ABC estimular e atrair novas empresas – sobretudo as satélites de grandes corporações -, exemplificando com o espaço disponível no Polo de Sertãozinho, em Mauá, Município para o qual desenvolveu o Plano Diretor que está em debate. O urbanista também atribui a periferização do Grande ABC ao problema macroeconômico do desemprego que atinge todas as regiões industrializadas do mundo, como efeito da globalização. A solução, neste caso, estaria em rever o modelo neoliberal, que ele critica. Ex-secretário de Planejamento do Estado de 1976 a 1981 e professor de Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Malta acha possível conciliar ocupação com preservação ambiental dos mananciais. Ele sugere condomínios com número máximo de famílias em sub-bacias da Billings.

Vez dos empreendedores 

Outra matéria que ganhou destaque na edição de março de 1997 de LivreMercado abordava o empreendedorismo na região. Eis alguns trechos: 

 A tradição empreendedora do Grande ABC, que remonta à chegada de caudais de imigrantes europeus, notadamente italianos, armênios e espanhóis, entre outros, é a pedra de toque que tem abrandado a pressão social resultante da contínua quebra de postos de trabalho industrial e da já quase exaurida absorção de mão-de-obra nas áreas comercial e de serviços. Com o mercado de trabalho estrangulado no setor privado e com perspectivas de cortes profundos na área pública, quase toda representada por Prefeituras às voltas com déficits orçamentários e excesso de pessoal, desempregados da região estão virando pequenos empreendedores. Ex-executivos e ex-técnicos especializados tornam-se franqueados de marcas famosas ou mesmo abrem negócios para atender diretamente e muitas vezes com exclusividade sua antiga empregadora, no que se convencionou chamar de terceirização. Eles investem recursos indenizatórios geralmente substanciosos. Ex-operários abrem, de acordo com o montante do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, mercearias, bares, videolocadoras, lava-rápidos, coisas assim. Com isso, inflam o número de estabelecimentos comerciais e de serviços que estatísticos e desastrados relacionam com desenvolvimento econômico. Trata-se, como se observa, de redistribuição da massa de recursos destinados ao consumo de bens e serviços cada vez menos volumosa, porque a indústria em declínio é o carro-chefe da economia regional. Nos últimos anos, a transformação econômica do Grande ABC é flagrante. Nem seria preciso recorrer a números estatísticos sobre a ocupação da mão-de-obra para verificar que explodiram os setores comercial e de serviços. Essa mudança tem o lado positivo, de provocar aumento da oferta de bens e serviços, mas também o negativo, de desencadear sistema concorrencial em que se mescla o despreparo técnico-administrativo e uma visão pouco acurada das necessidades de demanda.

Estatísticas devassadoras 

É claro que numa Reportagem de Capa de tamanha importância histórica não poderiam faltar estatísticas às quais LivreMercado – assim como CapitalSocial na sequência – sempre lançou mão. Leiam alguns trechos da matéria que tratou do assunto: 

 A densidade empresarial do Grande ABC, se assim pode ser chamada a realidade físico-geográfica de milhares de organizações industriais, comerciais e de serviços, é um convite à máquina arrecadatória. Afinal, a proximidade entre as empresas favorece a produtividade dos fiscais municipais, estaduais e federais. Bem diferente da quase totalidade do Interior do Estado, por exemplo, onde a distância entre as empresas, sobretudo as industriais, encarece a equação de custo-benefício de operações fiscalizatórias. O consultor tributário Edson Lopes dos Santos, especialista em pequenas e médias empresas, denunciou recentemente o ataque do Fisco em suas várias ramificações, principalmente para a elevação do ICMS. Por isso, o crescimento registrado em 1995 em todo o Estado, de 16%, e no Grande ABC, 16,6%, não foi mera coincidência. Já no ano passado, o nível não foi tão elevado, pois atingiu 7,5% no Estado e 5% no Grande ABC, mesmo assim acima do PIB, como no ano anterior. Entretanto, mesmo sob intensa artilharia fiscal que reduz o nível de evasão de tributos, o Grande ABC sofre perdas comparativas com os principais pólos econômicos do Estado. Como isso ocorre persistentemente, inclusive nos últimos três anos em que a indústria automotiva deu pinotes de vendas, e a se considerar, por exemplo, o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), como razoável instrumento de aferição, o esvaziamento econômico da região deixa de ser tese contestável que alguns agentes políticos tentaram esboçar em outros tempos. Estudos comparativos desta publicação, divulgados em maio do ano passado, oferecem subsídios sólidos sobre o enfraquecimento relativo do Grande ABC no Estado de São Paulo, tendo como base números da Secretaria Estadual da Fazenda. (...) Na ânsia de provar o incontestável, isto é, que o Grande ABC sofre perdas econômicas, um executivo público de Santo André chegou a anunciar, com base no salto do ICMS, que a economia do Grande ABC dobrara de tamanho em 12 meses, algo surrealista que os Tigres Asiáticos conseguiram num período bem mais longo, ou seja, quase 10 anos. Evidentemente, o executivo público descartou a divulgação dos índices registrados por Ribeirão Preto e outros Municípios, de números mais reluzentes mas igualmente insustentáveis. A introdução do Plano Real, precedido pela URV no segundo trimestre de 1994, é a melhor explicação para o doping arrecadatório do ICMS no Estado naquele período. 

Empobrecimento medido 

Também não poderiam faltar indicadores sobre o empobrecimento da região no período anterior àquela Reportagem de Capa. Os primeiros trechos da matéria publicada naquela edição memorável: 

 O processo de esvaziamento econômico agrava sobremaneira o quadro social de uma região limítrofe à Capital e inserida na Região Metropolitana de São Paulo, igualmente golpeadas pela desindustrialização. Tentar jogar para debaixo do tapete as evidências do empobrecimento de grande parte das comunidades tem o mesmo significado que procurar ensinar um elefante a pilotar jet-ski. No ano passado, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo concluiu pesquisas sobre os níveis de violência na Grande São Paulo, a região mais complexa do Estado, e constatou que três Municípios do Grande ABC estavam entre os 10 piores do ranking. O estudo, que se baseou em número de homicídios, concluiu que dobrou na Grande São Paulo o volume de assassinatos nos últimos cinco anos, ou cinco vezes mais que o aumento da população. Isto quer dizer que o Grande ABC não tem o monopólio da violência metropolitana, mas vem avançando celeremente em direção aos primeiros postos. Tanto que só perde para Embu, miserável Município que se confunde com desmanche humano. Diadema, com 8,63 homicídios por 10 mil habitantes, e São Bernardo, com 6,25, aparecem em segundo e terceiro lugares na classificação. Mauá está em sexto com 4,85.(...) A periferização do Grande ABC foi confirmada recentemente pelo censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), relativo ao período de 1992 a 1996. A taxa acumulada de crescimento demográfico da região no período, de 8,09%, foi levemente superior à média nacional de 7%. Mas São Bernardo (16,25%), Mauá (16,23%), Ribeirão Pires (17,16%) e Rio Grande da Serra (16,29%) ultrapassaram em muito a média nacional e regional.

Marcas domésticas

A Reportagem de Capa de LivreMercado de março de 1997 também contemplou empreendedores de sucesso na região, à parte das logomarcas reluzentes de companhias mais tradicionais. Vejam alguns trechos: 

 As montadoras de veículos são o pedaço mais visível e mais esmiuçado da economia do Grande ABC, além de as principais responsáveis pelas receitas tributárias diretas e indiretas, mas não são as únicas manifestações concretas de progresso só abalado nos últimos 15, 20 anos. Se as perdas econômicas da região já não são contestadas sem que se coloque em dúvida a sanidade mental do interlocutor, isto não significa dizer que a região está definitivamente entregue à sorte e não possa reagir. Há exemplos de sobra que comprovam a capacidade de inspiração, transpiração e adaptação dos empreendedores, cujos negócios se multiplicam e cujas iniciativas tornam-se paradigmas. Identidades jurídicas pouco ou nada conhecidas no cenário estadual e nacional ajudam a erguer barricadas de resistência e de competitividade econômica do Grande ABC. O sucesso da Casas Bahia, a mais poderosa rede varejista do País, ultrapassou as fronteiras da região. Da mesma forma a Cofap, que se tornou multinacional, e o Uemura, que alargou os muros para a Capital e Interior. O Grande ABC tem dezenas de nomes reluzentes, casos de Alcan, Kolynos, TRW, Tintas Coral, Panex, Glasurit, Nakata, Philips e tantos outros. Mas o Estado de São Paulo e o Brasil praticamente desconhecem as empresas domésticas do Grande ABC. Aliás, o próprio Grande ABC conhece muito pouco suas organizações. Há exemplos em profusão que comprovam haver vida empresarial na região, além das colossais montadoras e da constelação de organizações reconhecidas muitas vezes pelo simples exibir do logotipo. A Cooperhodia, maior cooperativa de consumo da América Latina, dona de 10 lojas, nove das quais no Grande ABC, é um bom exemplo. 

Opinião de quem sabe 

Publicar uma Reportagem de Capa grandiosa sem ouvir nomes então expressivos da sociedade regional – e mesmo de fora – seria um erro de pauta indesculpável. LivreMercado os ouviu. Leiam alguns trechos: 

 Sugestões para o Grande ABC voltar a crescer não faltam. Especialistas em diversas atividades, a maior parte com atuação na região, desenvolvem raciocínios que em muitos casos se complementam. A importância histórica da região, berço da indústria automotiva brasileira e do então novo sindicalismo, é sempre prato cheio para quem pretende exercitar futurologia. O economista Luciano Coutinho, professor da Unicamp, afirma que a falta de espaços para crescer, o congestionamento das linhas telefônicas e o sindicalismo trabalhista muito atuante ao longo dos tempos reduziram o brilho do Grande ABC. “A região precisa agora enfatizar seus pontos positivos para desonerar essa imagem e voltar a atrair investimentos” — afirma. (...) Emerson Kapaz, secretário de Ciências, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado, tem-se transformado numa espécie de garoto-propaganda da região. Um dos principais articuladores da Câmara Regional do Grande ABC, entidade informal formada pelo governo do Estado, Prefeituras da região e Fórum da Cidadania, Kapaz espera dar neste mês o pontapé inicial dessa gestão combinada. Outras câmaras regionais vão ser ativadas em todo Estado, mas o secretário afirma que, ao privilegiar o Grande ABC como deflagrador desse inusitado processo de desenvolvimento econômico e social, está de olho na repercussão nacional. “A região é referência para o Brasil, pelas peculiaridades históricas e pelo momento por que passa, por isso tínhamos de começar por aqui” — afirma. (...) Abraham Kasinski, presidente da Cofap, a maior empresa de autopeças da América Latina, prevê no futuro do Grande ABC o domínio dos setores de prestação de serviços e de comércio. Por ter certeza disso, garante que as atividades cerebrais da Cofap permanecerão na região, casos das áreas de pesquisa e desenvolvimento de produto, mas que as unidades de produção eventualmente expandidas continuarão distanciando-se do Grande ABC. A Cofap já teve mais de 12 mil trabalhadores na região, contra quatro mil de agora. A diferença está nas fábricas instaladas em Minas Gerais e na efetiva redução do contingente. 

Vez das consultorias

Completando a Reportagem de Capa de março de 1997 da revista LivreMercado, foram ouvidos antigos executivos de grandes empresas que passaram a dar suporte a organização de vários setores econômicos que buscam adequar-se à globalização: 

 Um dos mais promissores filões do Grande ABC cada vez menos industrial e mais prestador de serviços é a área de consultoria empresarial. Há 10 anos essa atividade era praticamente ignorada na região. Há cinco anos ainda era incipiente. Agora vive momentos de efervescência. A disseminação da terceirização combinada com o caráter emergencial de atualização das estruturas administrativas e operacionais estimula o surgimento de especialistas. Há pequenas e médias consultorias e mercado para quem tem recado a dar. A Gobbi & Gaiarsa Consultores Associados provavelmente é de perfil único na região, voltada para introdução de Plano Diretor de Informática e Desenvolvimento Organizacional. A Gobbi & Gaiarsa está atuando no mercado desde 1985. Ajuda os clientes na busca de soluções abrangentes de desenvolvimento organizacional e de tecnologia de informação ao oferecer serviços de consultoria embasada no conhecimento conceitual e metodológico de seus sócios e consultores associados. Há em comum entre os dois sócios da empresa e os quatro consultores associados o que o diretor Ângelo Gaiarsa Neto chama de senioridade, pelo fato de todos serem oriundos de bem-sucedidas carreiras executivas em empresas nacionais e internacionais. 

Mais três matérias 

A edição de março de vinte anos atrás de LivreMercado reunia ainda outras três matérias que não constaram da Reportagem de Capa, além de outras que não entram nesta seleção. “Peregrinação capitalista” mostrou que o brasileiro Fernando Lohmann, cônsul honorário de Cingapura no Brasil, iniciara no mês anterior peregrinação capitalista no Grande ABC como representante daquela cidade-estado do Sudeste Asiático, atuando em conjunto com a Câmara do Comércio Brasil-Cingapura. 

Nas duas páginas seguintes LivreMercado publicou o texto que preparei para a coluna “Campo Aberto” sob o título “Patrimonialismo já não cabe no novo figurino de mundialização”. Alguns trechos: 

 A abertura econômica e a globalização, apimentadas internamente pela estabilização da moeda, atingem indistintamente todas as organizações, diretamente econômicas ou não. Por isso, o empresário que não estiver sintonizado atentamente com a movimentação das nuvens macroeconômicas, que conferem mutabilidade constante do mercado e tornam o que antes era definitivo em simples provisório ou passageiro, terá motivos de sobra para lamúrias. O exemplo mais emblemático de que a mundialização da economia é irreversível e avassaladora, que escala de produção e competitividade são irmãs siamesas, é a venda da Metal Leve, até então uma das ilhas de excelência mais badaladas do País. Se a Metal Leve do culto José Mindlin virou patrimônio do Bradesco, da Cofap de Abraham Kasinski e da alemã Mahle, qualquer excesso de prurido patrimonialista, comum no empresariado nacional, pode até não ter necessariamente o significado de sentença de morte, porque o mercado comporta a competente prospecção de nichos específicos, mas sem dúvida tolhe o aprofundamento de perspectivas. 

O então conselheiro editorial de LivreMercado, Cláudio Rubens Pereira, então diretor da Secretaria de Planejamento de Santo André, chamava mais uma vez a atenção para os críticos nós da indústria regional. Leiam alguns trechos do artigo “Finalmente o Grande ABC estará tomando juízo?”: 

 (...) Trinta anos se passam e ao iniciar os anos 80 o Grande ABC está à beira de sua mais profunda crise: um traiçoeiro conjunto de fatos se juntam e começa a ser cada vez mais interessante o investimento em outras regiões. Primeiro vêm os incentivos federais para outros Estados. Em breve começam também as ofertas de isenções, benefícios e benesses de alguns outros Estados que precisam viabilizar seu próprio crescimento econômico. Quase de imediato, Prefeituras também descobrem seus próprios meios para atração de investidores que irão empregar sua emergente e crescente mão-de-obra. Devido ao nosso próprio crescimento, nossos terrenos cada vez ficam mais caros; os custos de transporte, alimentação e saúde com a mão-de-obra também; a própria manutenção de prédios e serviços encarece; há perdas irrecuperáveis com o difícil trânsito que piora a cada dia. O transporte coletivo não atende às necessidades seletivas, dificultando o acesso de trabalhadores às centenas de pequenas empresas que não têm e ou não podem ter condução própria. No ABC ainda dormitamos. Por aqui as coisas ficam cada vez mais caras e as ofertas que vêm de outras regiões - até em visitas de caravanas - são cada vez mais atraentes. Associações e Sindicatos patronais fazem estardalhaço mostrando a vereadores e prefeitos da região a evidente evasão de empresas, mas não conseguem sensibilizá-los ou obter deles compreensão ou empenho que seriam necessários. Cresce o número de empresas que nos deixa. Sabemos que um bom projeto de mudança leva, por baixo, de seis a oito anos para tornar-se realidade, pelos custos que envolve. Se houver ação, ainda há tempo para reverter estas saídas.

As matérias completas:

Fórum mexe com classe política 

Futuro do Grande ABC pertence à sociedade

Planejamento regional deve começar em espaço periférico 

Trabalhador tem de participar da reação, diz sindicalista Luiz Marinho

Dirigente de autopeças afirma que estigma sindical é forte

Montadoras já não são a garantia

Patrimonialismo já não cabe no novo figurino de mundialização

Infra-estrutura sofre com descaso

Finalmente o Grande ABC estará tomando juízo? 

Tradição empreendedora prevalece

Números e fatos sustentam perdas

Empobrecimento invade periferia

Competência não se restringe às grandes

Como superar as dificuldades atuais

Cresce área de consultoria

Sociedade é a bola de cristal da capa

Peregrinação capitalista



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