Economia

Região precisa ajustar
o ritmo à onda de mudança

DANIEL LIMA - 10/08/1999

Como o Grande ABC está reagindo à globalização econômica que atinge o Brasil? A resposta requer cuidados especiais. Resumidamente, depois de muitos anos de falta de juízo completo e de consolidar-se como periferia urbana e cultural de São Paulo, há fortes sinais de que estamos vivos e fazendo o possível para evitar que as contrações sejam mais doídas ainda. O grande problema é que as respostas aos desafios que se antepõem à recuperação regional não têm a mesma velocidade das transformações ditadas pela trajetória de investimentos em todo o mundo. Exibimos um corpo balzaquiano, que acusa os efeitos de involuntária dieta de emagrecimento industrial, quando se exigem elasticidade, ambição e musculatura próprias da juventude.


Embora se propague aos quatro ventos que o Grande ABC é um primor de participação social e de formulação de novas investidas institucionais, a realidade é menos esfuziante do que o discurso. Está certo que não existe outro Fórum da Cidadania a dar sopa no País, que a Câmara Regional é modelito diferente de entendimento entre Poder Público e sociedade e que o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos constrói relações cooperativas desprezadas ao longo de décadas. Mas tudo isso ainda está em fase de avanços e recuos. Quase uma espécie de tango institucional, de dois passos para lá, dois para cá. Um ritmo aquém da movimentação frenética da globalização econômica que reduz empregos, que torna as empresas mais competitivas, que acrescenta maiores faixas de exclusão social, que corta sonhos tanto da classe média-baixa operária como da classe média-média de profissionais liberais e executivos emergentes.


A grande questão que se coloca não é nem mais sobre o Grande ABC do presente, que vive fase de profundas transformações. A indagação é sobre o que será da região dentro de 10, 15 anos. Será que vai ser um exemplo prático daquilo que Joseph Schumpeter diagnosticou como destruição criativa que sacudiu Detroit e a fez renascer das cinzas, ou entrará para o catálogo de regiões fantasmas?


A resposta vai depender em boa parte do pragmatismo das ações que se desenvolvem nesse território de 840 quilômetros quadrados, 2,3 milhões de habitantes e 3% do PIB (Produto Interno Bruto) do País. O perigo é o Grande ABC incorrer na histórica encenação do Estado brasileiro de produzir mais manchetes que obras, mais acessórios que prioridades. Principalmente quando se sabe que o calendário eleitoral é fonte inesgotável de projetos sem sustentação prática, os cofres públicos estão à míngua, a comunidade vive o drama do desemprego e já está entalada de tantos impostos, enquanto os empreendedores sofrem com a concorrência internacional e os custos genuinamente brasileiros e regionais.


Acéfala durante quatro décadas no âmbito governamental interno, com a quase totalidade de prefeitos e vereadores aperfeiçoando acrobacias individuais de carreiristas, a expressão Grande ABC não passava de metáfora, um lance de marketing pressupostamente de conteúdo geoeconômico.


À falta de uma instituição capaz de promover a interação dos agentes econômicos e sociais, agora temos três — Consórcio de Prefeitos, Câmara Regional e Fórum da Cidadania. Sem contar que no bojo da Câmara Regional surgiu a Agência de Desenvolvimento Econômico. É da capacidade de mobilização dessas organizações que depende fortemente a sorte do Grande ABC. Exatamente por isso não se pode desperdiçar munição. A globalização é implacável.


O Fórum da Cidadania, desde abril sob o comando de Carlos Augusto César Cafu, diretor do Sindicato dos Químicos, já está ganhando nova configuração. Tem vez a densidade representativa, depois de sofrer o diabo com o isolamento vivido por Sílvio Tadeu Pina. Cafu chegou no momento certo. O Fórum da Cidadania estava à deriva, sem foco e em esclerose acentuada como consequência de equívocos que se acumularam principalmente depois do inchaço das plenárias. Inédito encontro de forças díspares e muitas vezes antagônicas, casos de organizações empresariais e sindicatos de trabalhadores, o Fórum da Cidadania é arranjo diferenciado no espectro institucional do País. Foi lançado às vésperas das eleições de 1994, sob o mote Vote no Grande ABC. Simboliza, acima de tudo, sentimento de boa-vizinhança entre direita e esquerda sob a ótica de soluções consensuais. Descarta-se tudo que tenha potencialidade polêmica.


Depois de viver fases distintas, nas quais sucederam-se o entusiasmo pelo lançamento da novidade, a robustez de representatividade seletiva, o inchaço de uma densidade artificial e o esvaziamento das plenárias, a nova direção do Fórum começa a inocular conceitos de cidadania em diversos segmentos da comunidade até então alheios ao movimento, casos específicos de movimentos populares e bolsões acadêmicos. Resta saber se o temário estará em sincronia com as necessidades socioeconômicas da região, sob a perspectiva não de um passado que já saiu de moda, mas de um formato de futuro em que prevalecerá o conceito de capital social, isto é, a aproximação dos detentores do poder econômico, sindical e político com o conjunto da sociedade que se esfarela em poder de consumo por força das perdas industriais.


O Fórum da Cidadania é trunfo estratégico para a harmonia integrativa da região. Tanto que a história recente de costura institucional encontra no surgimento da entidade um instrumento decisivo. Quando o Fórum emergiu, em 1994, o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos afogava-se em desinteresse. Os prefeitos de então mal se conversavam. Pior do que isso: presos em seus mundinhos, alguns enxergavam a região com lentes cor de rosa, numa imitação mal-ajambrada dos músicos do Titanic. O Fórum bateu forte nos prefeitos, mexeu com seus brios, mas não os retirou da imobilidade. Foi preciso que novos chefes de executivos assumissem em 1996 para recuperar o Consórcio Intermunicipal de modo a lhe dar abrangência mais ampla, sobretudo voltada a operações socioeconômicas.


Falta muito, entretanto, para o Consórcio sobrepor-se ou igualar-se às preocupações municipais. Gilson Menezes e Luiz Tortorello não são exatamente exemplos de dedicação regional. Menos mau que mobilizam assessores diretos para acompanhar o empenho dos demais. Nem se pode dizer também que a maioria dos prefeitos se dê as mãos para o que der e vier. Além de diferenças partidárias, há evidentes disputas pelo estrelato regional. Um caso emblemático foi o lançamento do projeto Eixo Tamanduatehy. A maioria dos prefeitos não deu as caras no Palácio de Mármore, onde Celso Daniel era disputadíssimo anfitrião.


Completando o triângulo da esperança regional, a Câmara do Grande ABC é uma mistura de Fórum da Cidadania e de Consórcio de Prefeitos, adicionando-se a participação do governo estadual. Criada há dois anos, a Câmara Regional é a ponte que liga os problemas da região com as tentativas de solução ao alcance do Palácio dos Bandeirantes. A doença do governador Mário Covas parecia comprometer o diálogo, mas a indicação do professor Sílvio Minciotti para fazer tabelinha com Armando Laganá como representantes do Estado lança luzes de entusiasmo.


Convém, porém, não exagerar no otimismo. Os cofres estaduais estão comprometidos com a queda de arrecadação provocada pela retração econômica. Organismo informal, a Câmara Regional exige constante monitoramento de relações entre a região e o governo estadual.


Houve espécie de vácuo nas relações entre a região e o governo do Estado quando Emerson Kapaz, um dos mentores e executores da instituição, deixou a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico para cuidar de candidatura a deputado federal. O ideal seria a aprovação pela Assembléia Legislativa da Região Metropolitana do Grande ABC, tal como a RM da Baixada Santista. Entretanto, autoridades públicas da região não investem nessa proposta entre outros motivos porque temem pela distribuição paritária de membros deliberativos entre o Grande ABC e o Palácio dos Bandeirantes.


A Agência de Desenvolvimento Econômico é o braço estratégico do Consórcio e da Câmara. Ainda em fase de estruturação, sua função inicial está conectada à avaliação de um banco de dados preparado em convênio com a Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados). A Agência é uma das provas de que os dirigentes políticos da região que comandam o Consórcio e a Câmara estão dando de lavada nos antecessores, cujo desprezo por estudos socioeconômicos locais — e consequentes decisões práticas — ajuda a explicar o esfacelamento da base industrial.


Fórum, Consórcio e Câmara Regional seriam a Santíssima Trindade do Grande ABC contra o furacão da globalização? Nem oito nem 80. Os poderes dessas organizações são limitados diante da complexidade do xadrez macroeconômico. As duas principais matrizes econômicas da região — o setor automotivo e o setor químico/petroquímico — ainda respiram reestruturação. Os efeitos do capital mundializado só não fizeram estragos sociais ainda maiores porque as montadoras e também os sindicatos de trabalhadores contam com força-tarefa nas esferas de decisão estadual e federal. Além disso, a desvalorização do real frente ao dólar realocou a origem dos fornecedores das automobilísticas, substituindo parceiros internacionais por nacionais.


As montadoras de veículos contam com alíquotas protecionistas que garantem margem de manobra contra a invasão de importados e fôlego para programar investimentos de atualização tecnológica e de gestão. Também pesou para amenizar os custos sociais a redução de impostos estaduais e federais, em acordos precários, além de se ter a expectativa de que a política para renovação da frota seja um amortecedor adicional do choque entre oferta excessiva e demanda retraída de veículos.


O drama para a região é que a produção nacional de veículos está descentralizada com novas fábricas. Serão 17 até o ano 2002. A participação do Grande ABC no bolo de produção de veículos já foi superior a 90%, mas cairá para 30% da projetada capacidade instalada de três milhões de unidades dentro de dois ou três anos. Se demanda e capacidade instalada não se encaixarem, a ociosidade assumirá sinônimo de mais conflitos entre capital e trabalho, além de mais desemprego. Aliás, independente disso, a Volkswagen/Anchieta já programou cinco mil dispensas nos próximos cinco anos por conta da completa reorganização da unidade, a última das montadoras da região a dobrar-se à modernidade produtiva no setor.


Já as autopeças, cujas impressões digitais se confundem com as pegadas das montadoras, sofreram e ainda sofrem um bocado. A globalização não dá trégua. Pelo contrário: as autopeças foram atiradas às feras da competição mais cruel. Tiveram de adaptar-se ao jogo da competitividade exasperante, em que se exigem custos asiáticos num regime tributário, fiscal e — durante muito tempo — cambial implacavelmente desfavorável. Gorduras funcionais foram queimadas, ossos estruturais foram quebrados. Muitas empresas não resistiram. Desapareceram, foram incorporadas e fundiram-se a grupos internacionais. Segundo o Sindipeças, o capital estrangeiro domina hoje 60% do setor.


O quadro de desemprego industrial na região está conectado a essas mudanças. Num cálculo otimista, a base de empregos nas autopeças foi reduzida em dois terços desde a abertura econômica, em 1990. Isso quer dizer que uma empresa que contava com 450 funcionários não registra mais que 150 cartões de ponto. Dá para imaginar o rombo do impacto social quando se sabe que de 60% a 70% do PIB do Grande ABC está atrelado ao setor automotivo. Basta observar os índices de criminalidade — entre 94 e 98 cresceu em 47% o número de homicídios na região. Foram 1.159 homicídios no ano passado e as projeções para este ano, com base nos cinco primeiros meses, indicam que podemos chegar a 1,2 mil vítimas fatais da violência. O dobro dos homicídios registrados no ano passado em Nova York, que tem população quase três vezes superior a da região.


A indústria químico-petroquímica, baseada no Pólo de Capuava, também está interligada ao setor automotivo. Boa parte da produção da empresa-mãe, a Petroquímica União, e das unidades de segunda geração que a cercam está relacionada à atividade automotiva. É um equívoco correlacionar autopeças exclusivamente ao setor metalmecânico. Desde que foi descoberto como material economicamente mais vantajoso, cada vez mais a engenharia veicular incorpora o plástico em peças e acessórios. Para se ter um exemplo regional bem próximo, a Arteb, autopeças de São Bernardo, acaba de investir US$ 60 milhões para introduzir mais plástico em sua linha de faróis que antes eram sinônimo de alumínio.


Não é à toa que o Grande ABC disputa uma guerra de guerrilhas para ter o que chama de pólo de moldes. Seria a maneira de compor uma rede mais atualizada tecnologicamente de abastecimento às montadoras. O que se tem hoje nos setores de autopeças e de plásticos é uma balbúrdia, com excesso de empresas do mesmo segmento, o que estimula concorrência predatória, num caso típico de autofagismo, de falta de sistematização da ocupação industrial. Modelo diverso do que os asiáticos tão bem souberam planejar e executar tanto no setor automotivo quanto no eletroeletrônico e que acabou inspirando os pólos da Grande Belo Horizonte (Fiat) e da Grande Curitiba. Falta à região o que os técnicos chamam de rede competitiva de fornecedores mundiais.


A modernidade que chega às linhas de produção das montadoras e das autopeças e a eficiência das indústrias químico-petroquímicas não sustentam, por si só, um Grande ABC metabolizado para ocupar sem traumas o tabuleiro do futuro econômico. Afinal, além da descentralização da produção automotiva, o setor químico-petroquímico debate-se para aumentar a capacidade de produção do nafta, instrumento político da Petrobras.


Além disso tudo, o maior problema do Grande ABC está no padrão de industrialização. A liderança mundial dos setores químico e metal-mecânico prevaleceu nos anos 70 e na década de 80, mas está subordinada já há vários anos às novas tecnologias da informática, da microeletrônica e das telecomunicações, pela busca de novos materiais e de energias renováveis pela biotecnologia. Essa corrida o Grande ABC já perdeu para outros pólos industriais, como a Grande Campinas, São Carlos e o Vale do Paraíba no Estado de São Paulo.


A tradução dessa equação é que a modernização das plantas automotivas e químico-petroquímicas não é suficiente para dar suporte ao desenvolvimento econômico do Grande ABC. Quando muito, assegurará a tendência de privilegiar número cada vez mais seletivo de trabalhadores e executivos especializados em automação, marketing e consultoria, entre outras atividades de apoio, enquanto numerosas hordas de excluídos continuarão a se aglomerar na periferia.


O setor moveleiro, decantado pelos incautos que o posicionaram como parceiro econômico do automóvel, há muito deixou de ser produtivo e se transformou em pólo comercial. Estudos e ações estão em desenvolvimento para resgatar as origens e incrementar a produção. O trabalho deverá dar frutos, mas não se deve esperar muito porque a recuperação implica em revolução tecnológica que por sua vez é restritiva ao emprego de mão-de-obra, cujos efeitos serão semelhantes aos investimentos em automação no setor automotivo. Além disso, o peso econômico da atividade na geração de riquezas também é acanhado se comparado ao oferecido pelas indústrias de ponta de regiões com melhor qualidade de vida e campi universitários voltados para o mercado de trabalho das novas estrelas da produção.


Dessa forma, está claro que não basta à região recuperar o tempo perdido pela indústria químico-petroquímica e pelo setor automotivo. É preciso muito mais. Há milhões de metros quadrados de galpões industriais abandonados que poderiam ser convertidos em novas vocações produtivas, alinhadas com a modernidade. Mas até agora nem de longe se anunciou qualquer iniciativa nessa direção. Talvez devido à síndrome do Custo ABC — um coquetel que envolve a imagem de um sindicalismo bravio de outros tempos, custo elevado do metro quadrado de terreno, caótico sistema viário, mão-de-obra cara e indicadores cariocas de criminalidade. Sem contar, é claro, os estilhaços da guerra fiscal.


Num contraponto compulsório ao esvaziamento industrial, o Grande ABC ainda está se adaptando ao redirecionamento para os setores de comércio e serviços. Há uma década, desde que o Mappin construiu shopping center na Avenida Pereira Barreto, entre Santo André e São Bernardo, iniciou-se a reconfiguração econômica da região. Atracaram num suposto porto seguro redes de fast-food, supermercados, hipermercados, videolocadoras, novos shoppings e franquias as mais diversas, entre outros negócios reluzentes.


O choque sofrido pelo comércio e pelos serviços já instalados na região foi intenso. Se, antes do refluxo industrial, serviços e comércio do Grande ABC eram provincianos e a mais nobre Capital era opção de compras de grande parte da classe média, depois do advento dos novos investimentos o que se tem é um quadro de excesso de ofertas e escassez de demanda. Saudar empreendimentos do comércio e de serviços com o foguetório de que o futuro está garantido não passa de inocente deslumbramento. Os grandes empreendimentos canibalizam-se entre si e asfixiam os pequenos, porque o Grande ABC ainda não encontrou novas alternativas industriais às matrizes de produção.


A ocupação territorial dos setores de comércio e serviços deu-se sob a mesma lógica oportunista da indústria. Com a diferença de que, contrariamente ao setor industrial, não reúnem a mesma capacidade de agregar valores desenvolvimentistas. Entenda-se por valores desenvolvimentistas não o crescimento de arrecadação de tributos, sempre medido como evolução da massa de consumo em empresas mais facilmente fiscalizáveis, mas o conjunto dos empreendedores e suas implicações sociais.


A expectativa de que a indústria de entretenimento amenize a situação de empobrecimento do Grande ABC ainda não passa exatamente disso, de expectativa. As atividades noturnas na região ganharam novos impulsos com o boom de danceterias e choperias, mas ainda é pouco. Faltam parques temáticos, cujos investimentos são extremamente elevados. O corredor da Via Anchieta, que já reúne restaurantes, motéis e o Parque Estoril, ainda é subestimado pelos empreendedores e sofre com a falta de critérios de prioridade de planejamento e também com a falta de recursos financeiros da administração pública de São Bernardo. O corredor da Avenida dos Estados, em Santo André, acalenta o projeto do Eixo Tamanduatehy, mas a proposta é para um futuro ainda distante. A Cidade da Criança, outrora disputadíssima, vive sequelas do tempo que não pára de atualizar tecnologias. O obsoletismo dos brinquedos transformou-a em Cidade da Vovozinha.


Até mesmo a proposta de potencializar o turismo regional, sobretudo nas áreas mais próximas pelos mananciais, não alcança unanimidade. A Vila de Paranapiacaba, marco da industrialização regional pela via férrea, poderia deflagrar o processo, mas é um patrimônio histórico que se deteriora na exata proporção do excesso de ego de muitos que se julgam preservacionistas. Tentativa de Beto Carrero de obter autorização para montar um parque temático na Vila foi rechaçada de pronto. Nem lhe deram oportunidade de dialogar. A impressão que se transmite é de que o marketing salvacionista, escorado no pretexto de manutenção das raízes históricas da vila, vale mais que soluções efetivas que também não colocariam o acervo em risco.


De fato, apenas Ribeirão Pires, integralmente tomada pela Lei de Proteção aos Mananciais, finalmente movimenta-se para traduzir em recursos financeiros o que sobra de recursos naturais. Organiza-se para incrementar o turismo, mas o ritmo das transformações é quase artesanal, dada a falta de dinheiro. É também de dinheiro que depende São Bernardo para recuperar o glamour intelectual sufocado pela imagem de operariado vanguardista. O símbolo a ser resgatado tem a marca da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Um consórcio entre a própria Prefeitura, governo do Estado e livre iniciativa foi anunciado há mais de um ano como resposta à recuperação desse espaço cultural. O problema é que os recursos financeiros têm entrado a contagotas.


Embora diretamente não tenha peso expressivo na economia do Grande ABC, o chamado Projeto Nova Vera Cruz muito contribuiria para recuperar parte da imagem de atratividade regional. Uma tarefa nada simples. Apesar dos aspectos positivos na conquista da auto-estima e de bens materiais da classe operária, além de ter acelerado a distensão política nacional, o movimento sindical da região consolidou uma imagem de truculência que só o peso de cérebros criativos poderia arrefecer. À Vera Cruz estaria reservada grande parte dessa ação.


O descompasso entre o poderio econômico e a representatividade política é um transtorno para o Grande ABC encurtar a distância rumo a futuro menos intrigante. Embora se faça muito marketing sobre as bancadas da região na Assembléia Legislativa e na Câmara Federal, a realidade nua e crua é torturante. Entre os 94 deputados estaduais, a região conta com apenas sete. E dos 513 deputados federais, inscrevemos apenas três em Brasília.


Senador, ministro de Estado ou uma eminência parda de bastidores, mesmo que não tão parda quanto outras que todos conhecem, é ilusão. Sonhar com um ACM é exigir demais, porque o senador baiano é, independente de juízo de valor, resultado de estrutura político-institucional que despreza o princípio democrático de um-eleitor-um-voto.


A distribuição de cadeiras na Câmara Federal é um quasímodo institucional que penaliza sobremaneira o Estado de São Paulo, detentor de 40% do PIB nacional, mas que se resume a apenas 70 deputados. Se os paulistas já não têm lá peso político, o que dizer do Grande ABC com três míseras vagas? Qualquer Estado do Norte/Nordeste vale muito mais que a região, detentora de colégio eleitoral de 1,5 milhão de votantes.


Sacrificado politicamente no altar da demagogia do regime militar, que contrabalançou a força econômica do Sul/Sudeste com a proteção política do Norte/Nordeste, construindo-se um Frankenstein de repercussões econômicas avassaladoras, o Grande ABC depende de ações pontuais de empreendedores e sindicalistas para mudanças tópicas na esfera federal. Sem exagero, vale muito mais um executivo de montadora de veículos ou um sindicalista local do que um deputado federal eleito na região. Mas isso é muito pouco ao considerar que os problemas do Grande ABC são imensos e exigem políticas públicas intercomplementares de influência estadual e federal.


Sem tônus político, o Grande ABC notabiliza-se mesmo pelo poder corporativo absolutamente inserido no contexto histórico do País desde a colonização dos portugueses. Daí o sucesso do sindicalismo incrustado nas montadoras de veículos e nas principais indústrias de autopeças. O significado de cidadania passa longe da região, mas isso não decorre exclusivamente do sentimento de corporação dos trabalhadores que em quatro décadas ocuparam o principal parque industrial da América Latina. A ocupação demográfica do Grande ABC é uma explicação mais justa. Depois da chegada de levas de imigrantes portugueses, espanhóis e italianos, principalmente, nas primeiras décadas deste século, desembarcaram os migrantes do Norte/Nordeste para ocupar vagas na indústria automotiva que se instalou a partir de meados dos anos 50.


Entre os imigrantes europeus e os migrantes nortistas e nordestinos existiu a sintonia fina de superar o passado de dificuldades e garantir um futuro mais digno. Nesse ponto a região foi pródiga, porque não faltaram oportunidades para a conquista de bens materiais. Cada trabalhador ou pequeno empreendedor que chegou, viu e apostou no Grande ABC tratou de concretizar o sonho de construir o futuro familiar. As relações comunitárias, por isso mesmo, foram relegadas a segundo plano.


Os anos mais recentes de esvaziamento econômico transformaram o Grande ABC num barril de pólvora social. A periferia incha e invade as águas supostamente sagradas dos mananciais em proporções só semelhantes à explosão da criminalidade que torna Diadema recordista nacional, com 108 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. A síndrome de Gata Borralheira permanece e se exibe no complexo de periferia urbana e cultural da Capital tão próxima. Esse bloqueio psicológico se explica pela origem da ocupação industrial. Os trabalhadores fincaram raízes e moradia na região, enquanto os executivos preferiram a vida cosmopolita de São Paulo, onde também centralizaram a administração dos empreendimentos. Recentemente iniciou-se tendência de reversão dessa mão de direção diante da evidência de que administração e operação são atividades compulsoriamente próximas num mundo de alta competitividade.


A costura do tecido esgarçado da cidadania do Grande ABC não é obra para poucos anos, sobretudo porque a região vive momentos de espanto. Tem-se a impressão de que o furacão da globalização ainda não foi corretamente interpretado e de que há uma comunidade atônita, paralisada, esperando por espécie de passe de mágica capaz de subverter a ordem natural dos acontecimentos e retroceder no tempo, recolocando a região no patamar de tranquilidade econômica e social de que, queiram ou não, foi apeada pela mundialização dos negócios. Como ilusionismo está em baixa, depois que inventaram um Mister M para estilhaçar a credibilidade dos homens de cartola e bengala, o melhor que o Grande ABC tem a fazer é botar a mão na massa. Os tempos de fastígio passaram mesmo. Agora é dureza, muita dureza.


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