Imprensa

Instituições fracassam;
bandidos sociais agem

DANIEL LIMA - 19/04/2017

Sabe a que conclusão chegará o leitor mais ajuizado quando ler na próxima semana o resumo do que houve na Província do Grande ABC em março de 1997 (portanto há 20 anos), retratado na edição de abril daquele mesmo ano pela revista LivreMercado? Exatamente o que estou cansado de afirmar: estamos fritos e maus pagos. Se quiserem traduzir para uma frase mais popular, fiquem à vontade. Não tenho coragem. Cultivo bons modos para não avançar o sinal da intimidade com os leitores.

Sem que pretenda parecer dramático ou catastrófico, mesmo já sendo, o que separa a realidade institucional da região nessas duas décadas (é  desnecessário falar em realidade econômica e social) é chocante. Estamos entregues à própria sorte. Não cansamos de piorar. Sempre que achamos que já chegamos ao fundo do poço, eis que o poço se aprofunda ainda mais. Até parece a recessão de Dilma Rousseff.

Não vou antecipar neste artigo nada que possa representar a quebra da curiosidade de leitura do material da próxima semana. Mas não resisto à ladainha de sempre: até quando vamos aperfeiçoar a pasmaceira em que nos metemos? Até quando o Poder Público Municipal e as instituições econômicas e sociais vão seguir em ritmo de funeral? Até quando os bandidos sociais vão dar as cartas? 

Posso parecer cansativo na abordagem desse tema, mas é impossível deixar no acostamento da insensibilidade a indignação de acompanhar essa batida enfadonha de um noticiário que se pauta de mesmices e de mediocridades que nascem e morrem principalmente nas administrações públicas municipais com artimanhas marquetológicas que não enganam quem ousa fazer reflexões.

Pior a cada dia

Estamos a assistir um filme envelhecido e caricato de medidas supostamente profiláticas dos chefes de executivos que, na maioria dos casos, por serem jovens e não terem vivido para valer aquele período dos anos 1990, acreditam que estão a abalar os alicerces da modernidade ao projetarem iniciativas que não passam de penduricalhos.

A edição de abril de 1997 da revista LivreMercado será esmiuçada no que apresentou de mais importante quando a próxima semana chegar, assim como já o fizemos em relação a janeiro, fevereiro e março daquela temporada. Esse é um resgate que, aos olhos despreparados, poderá até parecer desnecessário, quando não inútil.

Pobres coitados que se fecham ao aprendizado que o passado sempre proporciona, sobretudo quando a realidade já vivida foi, como no caso da região daquele período, um grande salto a um futuro que não surgiu no horizonte. Os anos 1990 embalaram frustrações. Os anos 2000 não sedimentaram nem mesmo perspectivas concretas de que poderiam ser diferentes da derrocada que se viu.

Ora, se nem com os alicerces de programas e ações que mobilizaram tanta gente o Grande ABC do passado foi capaz de abortar a Província do presente, o que esperar do futuro quando o agora vivido não passa de farsa de regionalismo e da sacramentação de máfias?

O pior de tudo quando se traça uma linha crítica entre o Grande ABC dos anos 1990, sobretudo a partir do Plano Real, e a Província do Grande ABC de hoje, sobretudo após 13 anos de mandatos petistas na presidência da República, é que não é possível encontrar um ponto sequer de apoio a eventual reconfiguração do mapa de desencanto.

Futuro comprometido

Vou insistir em convidar os leitores a acompanhar na semana que vem o texto que traduzirá aquelas páginas de LivreMercado da edição de abril de 1997. É preciso mesmo imersão no passado para compreender o grau de desencanto destes dias. O que viria na sequência dos anos 2000 deixou muito a desejar.  Todos quebramos a cara com aquele ensaio de regionalidade resolutiva. O que prevalece mesmo é a imagem que já utilizei anteriormente, neste mesmo artigo: se com tudo aquilo de aproximação entre lideranças de várias atividades a Província do Grande ABC destes tempos é um lamentável case de derrota sobre derrota, o que restará aos nossos filhos e netos num horizonte nem tão distante que já se apresenta?

Sei que a mensagem poderá parecer rigorosa e exagerada, mas é tão sólida quanto comprovável: caminhos celeremente para aquilo que há quase  20 anos um economista da Associação Comercial de Ribeirão Preto – Antonio Vicente Golfeto – disse informalmente ao jornalista Rafael Guelta, recentemente falecido, numa entrevista à revista LivreMercado. Indagado pelo brilhante Guelta, um dos profissionais mais competentes com os quais já trabalhei, disse Golfeto que o futuro do então Grande ABC não passaria de uma espécie de acampamento.

Reportagem histórica 

Aliás, na medida em que escrevia esses parágrafos dei-me conta de que poderia resgatar trechos daquela matéria no acervo desta revista digital, herdeira editorial de LivreMercado. A reportagem de Rafael Guelta foi publicada na edição de agosto de 2000 sob o título “Vagões na frente da locomotiva”. Eis alguns trechos daquela reportagem, num trabalho que simboliza a qualidade editorial do melhor produto regionais que o País já conheceu: 

 Um paulista que tivesse entrado em coma profundo na segunda metade dos anos 70 e só despertasse em 2000 demoraria para entender a complexa transformação econômica que ocorreu no Estado de São Paulo nos últimos 25 anos. Perplexo com a rapidez com que se disseminaram novas tecnologias, massificação da Internet, robotização na indústria, abertura do mercado e elevado grau de desnacionalização do parque industrial, nosso personagem teria motivos de sobra para, num primeiro instante, desejar entrar em sono profundo outra vez. Depois do susto, levaria ainda bom tempo imaginando-se num cenário de ficção científica até cair na real. O choque da mudança econômica tem intensidade idêntica ao impacto da transformação cultural. No mesmo período em que guitarras, sintetizadores e romances ambientados em quartos de motéis urbanizaram a música caipira, a Região Metropolitana concentrada em 38 cidades em torno da Capital foi superada na geração de riqueza pelos demais 608 municípios do Interior. (...) A mesma riqueza que entre as décadas de 60 e 80 atraiu gente de todos os cantos do País para a Região Metropolitana acabou por promover o caos. Cidades vizinhas de São Paulo, mesmo as de grande porte como Guarulhos e Osasco, ou Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema e Mauá, que constituem o Grande ABC, mais se parecem com bairros-satélites da Capital. (...) Outra questão relevante é que a debandada para o Interior de São Paulo pouco teve a ver com a guerra fiscal que eclodiu no País na metade dos anos 90 e foi peça fundamental para o desenvolvimento de novos pólos industriais nos Estados do Sul e Sudeste.  (...) O Interior predominantemente agropecuário foi locomotiva da riqueza do Estado de São Paulo até a metade deste século. Tanto que universidades e centros de pesquisas avançadas, que hoje fazem a diferença na atração do capital produtivo, foram concebidos com dinheiro dos velhos barões da terra. (...) O fato de a riqueza ter voltado ao Interior na forma de industrialização não significa que a roda da fortuna irá girar novamente no futuro a favor da Grande São Paulo. O ciclo dinâmico dos negócios não se manifesta necessariamente em círculos. Os principais competidores do Interior paulista na atração de investimentos são atualmente os Estados vizinhos do Sul e Sudeste. (...) O que chama a atenção no Interior de São Paulo, sob o ponto de vista da qualidade de vida, é justamente o fato de as populações rurais terem se transferido para áreas urbanas e, mesmo assim, as cidades terem melhorado de padrão. Ribeirão Preto é mais uma vez exemplo: 100% da população conta com água tratada e 98% das residências estão inseridas na rede de esgoto. Circula na cidade um veículo para cada dois habitantes, um padrão de Primeiro Mundo. Há um telefone por 2,5 habitantes, outro número exemplar. Pesquisa realizada recentemente pela PriceWaterhouseCoopers, com filiais em Campinas, Ribeirão Preto e Sorocaba, destaca e confirma dois fatores como os mais atrativos para investimentos no Interior de São Paulo: qualidade de vida e infra-estrutura. (...) Economista com visão holística do desenvolvimento econômico de São Paulo, Antonio Vicente Golfeto tem frase curta e objetiva para definir a mudança na divisão do PIB estadual. “Tecnologia é o zap do jogo” — dispara, ao utilizar a imagem da carta mais poderosa do truco, o mais popular dos jogos de baralho. Diretor do Instituto de Economia Maurílio Biagi, da Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto, além de professor universitário, Golfeto enfatiza que economia deixou de ser ideologia — conceito sobre o qual foi constituída a força econômica da Grande São Paulo — para tornar-se tecnologia, conceito sobre o qual o Interior constrói sua força. (...) Antonio Vicente Golfeto faz exercício de etimologia para analisar a ascensão econômica do Interior pela via do conhecimento. A análise é no mínimo curiosa. “A palavra capitalismo vem de capita, que significa cabeça. Talento foi nome de moeda, conforme está na Bíblia. Podemos concluir então que cabeça, ou talento no sentido da inteligência, faz talento, ou dinheiro no sentido de gerar riqueza. Por trás de tudo está o capital humano, que brota nas universidades e centros de pesquisas do Interior. É o capital humano que decide o jogo” — aposta o diretor do Instituto Maurílio Biagi. Antonio Golfeto atribui o inferno astral da Região Metropolitana de São Paulo ao fato de mais ter importado do que produzido know-how. “Até bem pouco tempo a razão costumava estar do lado de quem tinha dinheiro. Agora a razão está do lado de quem tem idéias” — acredita o economista de Ribeirão Preto, que não põe suas fichas no futuro da Região Metropolitana de São Paulo. Recorre ao exemplo do Grande ABC, ainda hoje maior pólo da indústria automobilística do País, que busca novas vocações para tentar reerguer sua economia. “Que universidade gerou ciência no Grande ABC?” — pergunta. “O ABC descuidou seriamente da educação e do desenvolvimento de tecnologias. Acomodou-se com a riqueza proporcionada pela indústria. Só que o modelo industrial do ABC envelheceu, foi superado. A região atraiu muita gente e está hoje cheia de problemas de difícil solução, como o elevado índice de criminalidade” — analisa, escreveu Rafael Guelta.



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