Estou respondendo a processo criminal surreal. Estou ameaçado de prisão, determinada de forma igualmente estranha. Tudo porque ao longo dos tempos fiz análises críticas ao Clube dos Construtores do Grande ABC. Nada diferente de avaliações de muitas outras organizações coletivas, além de protagonistas individuais de interesse público. Meus julgadores não parecem conhecer as especificidades do jornalismo. Mas não é exatamente esse o ponto central desse texto, mas o núcleo que embasou a decisão judicial. O que pergunto é o seguinte: quem de fato difamou o Clube dos Construtores (essa é a queixa-crime) senão o próprio presidente de então daquela entidade, o empresário Milton Bigucci, metido em corrupção e irregularidades, segundo denúncias do Ministério Público Estadual? Bigucci está na relação oficial do MP e da Corregedoria-Geral da Prefeitura de São Paulo como integrante da Máfia do ISS.
Não se passaram mais de três meses entre a impetração da queixa-crime contra este jornalista em meados de 2013 e a explosão da Máfia do ISS. Antes desse caso, Milton Bigucci também se envolvera em outras situações constrangedoras como empresário, com repercussão direta na entidade que dirigia havia mais de 20 anos. O Ministério Público Estadual de São Bernardo o instalou como campeão regional de abusos contra a clientela. E este jornalista denunciou o escândalo do Marco Zero da Vergonha, área pública leiloada com imensidão de irregulares. As investigações do MP de São Bernardo foram fragilíssimas, apesar do manancial de provas e documentos.
Milton Bigucci também foi identificado pelo delator Calixto Antônio Júnior como membro efetivo dos empresários que lesaram os cofres da Prefeitura de Santo André no caso do Semasa. Mais tarde, milagrosamente (ou teria havido poção de convencimento), Milton Bigucci foi retirado da lista de Calixto. Como todos os demais empresários. Uma relação de criminosos sem a participação do outro lado do balcão dos servidores é inverossímil, conforme afirmou há pouco tempo o juiz Sérgio Moro, referindo-se ao escândalo da Petrobras. O escândalo do Semasa reúne várias das tipologias do Petrolão, com a distinção de que o empresariado foi transformado em vítima. Bem diferente, também, da Máfia do ISS em São Paulo que, entretanto, também diferente da Operação Lava Jato, corre em segredo de Justiça. A transparência não faz parte do dicionário dos investigadores paulistanos.
Queda ignorada
Esse breve resumo sobre as atividades paralelas de Milton Bigucci bastaria para colocar o empresário como o maior e provavelmente o único agente difamador do Clube dos Construtores do Grande ABC. Um ano e meio após a deflagração do escândalo da Máfia do ISS, Milton Bigucci foi retirado da presidência daquela entidade. Uma ação diplomática reduziu a carga de estragos que o dirigente causou àquela organização.
A sucessão no Clube dos Construtores em dezembro de 2015 foi diplomática também porque não falta quem tema represálias do empresário, dono de um das três maiores empresas do setor na região. Foram muitas as fontes de informações que instalam Milton Bigucci, sempre na condição de empresário, longe do que poderia ser chamado de alguém a ser contestado sem sofrer complicações colaterais. Ele teria o poder de mover pauzinhos insuspeitos para obter os resultados desejados. Os sucessivos mandatos presidenciais no Clube dos Construtores são a narrativa de uma derrocada sistemática. A entidade chegou ao osso de representatividade. Foi exatamente isso que retratei nos 11 artigos selecionados pelos criminalistas do empresário, emprestados à entidade para consumar a queixa-crime.
Funcionários demitidos
Tenho apresentado nesta revisita digital – e vou continuar a fazê-lo – série de artigos que reproduzem críticas e análises de diferentes articulistas e colunistas da chamada grande imprensa. O que explicito aos leitores é um convite a compararem os artigos que escrevi e foram criminalizados pelo então presidente do Clube dos Construtores do Grande ABC com os textos publicados na Folha de S. Paulo, no Estadão, no O Globo, na Exame e também em outras revistas que tratam de temas nacionais.
Os dois funcionários que Milton Bigucci mandou a campo como testemunhos para incriminar este jornalista por conta dos textos produzidos no primeiro semestre de 2013 se esforçaram para dourar a pílula de uma entidade de baixíssima representatividade não só junto à classe que supostamente representaria como, sobretudo, à sociedade da Província do Grande ABC. O presidente atual, Marcus Santaguita, há 16 meses no cargo e com novos colaboradores, come o pão que o diabo amassou para eliminar parte dos destroços operacionais, técnicos e de imagem da entidade. Os estragos causados pela péssima gestão do presidente Milton Bigucci e as lambanças do empresário Milton Bigucci são ônus que demorarão a desaparecer. Qualquer auditoria naquela entidade comprovaria materialmente todos os artigos de redigi.
O meritíssimo que me julgou em Santo André, após audiência em que fui massacrado psicologicamente, acreditou piamente nos empregados-testemunhas de Milton Bigucci no Clube dos Construtores. O jornalista de agora 52 anos de carreira, que escreveu com base em informações de fontes mais que confiáveis, e também por conta de observações próprias, foi transformado em bandido. Os funcionários que serviam ao Clube dos Construtores no período presidencial de Milton Bigucci – e que produziam estatísticas fajutas para ludibriar a sociedade com informações que inflavam os números – foram demitidos pela nova diretoria da entidade. Mais que isso: o Clube dos Construtores praticamente aboliu a geração de informações estatísticas, porque o presidente Marcus Santaguita reconheceu as deformidades técnicas que as embalavam.
Informações descartadas
Um meritíssimo preocupado com a saúde financeira da população, diante da denúncia que formulei em alguns daqueles 11 artigos, deveria dar mais crédito a um jornalista com mais de 50 anos de atividades, ao invés de considerar intocável a versão de testemunhas suspeitas, porque dependentes da entidade a qual serviam.
Toda a massa crítica de um profissional de comunicação cujo passado e o presente são provas de responsabilidade social (quem tem dúvidas sobre isso? Nem mesmo meus críticos, também objetos de avaliações que se fazem necessárias inclusive como explicação lógica à função jornalística, que não é de Relações Públicas) foi simplesmente jogada às traças pelo meritíssimo de Santo André (e também pelo colegiado de São Paulo), em favor de cartas mais que marcadas de testemunhas que atribuíram a gestão de Milton Bigucci feitos extraordinários. Se isso pode ser chamado de julgamento justo, democrático, atento a preceitos constitucionais, então o que temos de fazer como profissional de comunicação é assinar um atestado de inservível.
Não tive a menor preocupação em juntar testemunhas (assim o fizera anteriormente, em outros dois processos movidos pelo famigerado empresário) porque, como nas vezes anteriores, acreditava que o Judiciário daria conta do recado e saberia distinguir lantejoulas de realidade.
Convite para sair
Poderia, por exemplo, ter requisitado declarações do então vice-presidente do Clube dos Construtores, Armando Luporini Júnior, amigo de muito tempo de Milton Bigucci. O proprietário de uma pequena construtora em São Bernardo foi ouvido pelo Diário do Grande ABC em 12 de dezembro de 2013, logo após o estouro do escândalo da Máfia do ISS em São Paulo. Vejam os trechos principais da matéria sob o título “Vice da Acigabc reconhece que lista cria um desconforto”:
O vice-presidente da Acigabc (Associação dos Construtores, Imobiliárias e Administradores do Grande ABC), Armando Luporini Júnior, alegou que, caso seja comprovado o envolvimento da empresa MBigucci na Máfia do ISS (Imposto Sobre Serviços) instalada na Prefeitura de São Paulo, o clima ficaria insustentável para a permanência de Milton Bigucci, proprietário da construtora, à frente da entidade. “Realmente é uma situação desconfortável, não só aos empresários. Isso é complicado”. Luporini avaliou que “seria decepção” se confirmada a ligação da MBigucci na lista de propina apurada pelo Ministério Público Estadual, que colocou a incorporadora no rol de empresas investigadas. Conforme a planilha encontrada em computador apreendido com o auditor fiscal que delatou o esquema, a companhia do Grande ABC pagou R$ 95,4 mil à quadrilha. Na relação, ela devia R$ 238,6 mil em tributo para o Paço e depositou apenas R$ 13,3 mil. (...) Com a investigação do MP, empresários do setor imobiliário demonstram descontentamento com o fato de a suposta relação da MBigucci com a fraude fiscal manchar e denegrir a imagem de atuação da classe na região. Também presidente do conselho deliberativo da Acigabc, Luporini afirmou ao mencionar o estatuto que “ninguém teria condições de intempestivamente convocar nova eleição”. Segundo ele, é questão de bom-senso deixar o cargo se ficarem evidenciadas as provas de crime levantadas pela Promotoria. “Não dá para conviver com um problema desse (acusação de propina). É impossível. Aqui é como no Interior (de São Paulo). Todo mundo aponta o dedo na cara. Perde-se representatividade, acaba e tem de trocar”. (...) Para Luporini, o cenário de troca precisaria ser discutido internamente. O vice frisou que os associados triam de se posicionar oficialmente a respeito. “Hoje vejo com surpresa essas informações, mas acho que alguma coisa possa acontecer de fato (se comprovado), pois isso demonstraria que não conheço o Bigucci”.
Relação de delinquentes
Um ano depois dessa entrevista do vice-presidente do Clube dos Construtores, Milton Bigucci estava fora da presidência, embora ainda conseguisse negociar com os sucessores a escalação do filho como vice-presidente e dele próprio para a presidência do Conselho Deliberativo. O Ministério Público Estadual manteve o conglomerado de Milton Bigucci na relação dos delinquentes que assaltaram os cofres da Prefeitura de São Paulo. Fosse o MP e a Polícia de São Paulo análogas à força-tarefa da Lava Jato, os envolvidos nas falcatruas dos dois lados do balcão, servidores públicos e empresários, já estariam atrás das grades. Não este jornalista, como pretendem aqueles que ignoraram o devido processo legal e o histórico das relações críticas com as organizações coletivas da região.
A essas entidades dedico a maior das contribuições possíveis que o jornalismo pode oferecer: uma avaliação justa, mesmo que às vezes contundente, e, em muitos casos, propostas a executarem desempenho muito mais representativo ao conjunto da sociedade. Aliás, sobre isso, muito antes de Milton Bigucci liderar a reunião de diretoria para encaminhar a queixa-crime contra este jornalista, ofereci um elenco de medidas que, se tomadas, iriam dar o que a entidade jamais teve perante a sociedade regional: representatividade efetiva, que não tem nada a ver com representação formal. Quem confunde representação com representativa não entende nada de compromisso social. Uma entidade pode ser importante no papel, como sempre o fora o Clube dos Construtores, mas, se pouco faz, não capitaliza representatividade social.
A decretação de prisão de oito meses a este jornalista pelo juiz da primeira instância de Santo André, corroborada parcialmente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que, simplesmente, reproduziu os termos iniciais, é um ataque à liberdade de opinião com fundamentação. É uma violência que não pode ser sacramentada ao sabor do provincianismo de uma região infestada de bandidos sociais. O Brasil será um simulacro de novos tempos se a faxina dos poderosos de plantão não começar pelos municípios. Escrevi num passado não distante e repito agora: somos a Brasília de amanhã. Nada é por acaso.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)