Esta é a primeira síntese de um total de 11 artigos escritos pelo jornalista Daniel Lima, condenado à prisão pelo juiz da 3ª Vara Criminal de Santo André por suposta difamação ao Clube dos Construtores do Grande ABC. Os advogados do então presidente daquela entidade, Milton Bigucci, encaminharam queixa-crime ao Judiciário de Santo André. O resultado não se limita a um ataque à liberdade de expressão e à liberdade de opinião.
Antes disso, e de forma muito mais alarmante, trata-se de completo desrespeito ao direito de defesa protegido pela Constituição Federal. Daniel Lima foi massacrado no tribunal de Santo André. Tanto que o advogado Alexandre Marques Frias insiste na nulidade do processo. Afinal, o jornalista não teve a possibilidade de rebater ponto por ponto as acusações contidas na queixa-crime.
Acredite quem quiser: o que se segue – e nas próximas 10 edições também -- está no processo julgado parcialmente no Tribunal de Justiça de São Paulo. Daniel Lima, que está em liberdade por conta de liminar do Superior Tribunal de Justiça. O jornalista é, entre outras vertentes analíticas e críticas à frente de CapitalSocial, um oponente às artimanhas do mercado imobiliário no Grande ABC, onde Milton Bigucci atua e é considerado campeão regional de abusos contra a clientela, de acordo com denúncia do Ministério Público do Consumidor de São Bernardo.
Na sequência, o que o leitor vai ler são trechos dos artigos de Daniel Lima destacados pelos criminalistas de Milton Bigucci, empresário denunciado na Máfia do ISS e que dirigiu o Clube dos Construtores durante 25 anos. Daniel Lima apresenta em seguida a defesa que 3ª Vara Criminal de Santo André ignorou. As matérias incorporadas à queixa-crime foram publicadas na revista CapitalSocial no primeiro semestre de 2013.
Acredite quem quiser -- o que segue é a peça-chave de uma inacreditável sentença condenatória lastreada essencialmente no cerceamento de defesa completa e detalhada do jornalista durante a audiência no Fórum de Santo André:
O trecho do primeiro artigo destacado pelos criminalistas
Pulverizados e desorganizados, mais de meia centena de pequenos empreendedores do setor imobiliário estão à deriva, segundo afirmações de vários de seus representantes. A quase totalidade dessas organizações já integrou a Associação dos Construtores, mas se afastou quando se constataram privilégios e exclusivismos sempre com o protagonismo de Milton Bigucci. Há demandas que simplesmente não passam pelos corredores das prefeituras. Quem não tem padrinho está morrendo pagão. (...) Ou seja, a Associação dos Construtores não passa de um ramal da MBigucci. A privatização da entidade causa revolta (...).
A defesa que Daniel Lima não pôde apresentar
Fosse inquerido pelo meritíssimo, teria explicado em detalhes por que surgiu em Santo André uma associação dos pequenos construtores. Nada mais do que consequência do descaso da organização então chefiada por Milton Bigucci. Ao me referir à privatização da entidade, as explicações constam de matérias antecedentes à queixa-crime. Bastava o meritíssimo de Santo André perguntar sobre o assunto, ao invés de cercear sistematicamente minhas declarações num sentido claramente intimidatório e desqualificador.
Milton Bigucci transformou o Clube dos Construtores em ramal da MBigucci não só com a inserção de vários membros da família no quadro de diretores e conselheiros, formais e informais, mas também ao se apresentar nos corredores dos poderes públicos em nome da própria construtora e da entidade que dirigia.
Alguém que fica no comando de uma entidade durante um quarto de século não o faz sem vícios e privilégios a ponto de afugentar a quase totalidade dos representantes da categoria. Para um conjunto de mais de cinco mil empreendedores do setor na região, não mais que 30 constituíam o quadro de associados – e mesmo assim sem efetuarem com frequência os pagamentos de mensalidades.
Não só o quadro de criminalistas que atuava em nome do Clube dos Construtores consta da folha de obrigações financeiras da MBigucci. Também a assessoria de imprensa do conglomerado fora compartilhada, com a condição de que seguisse orientação do empresário.
As portas de gestores públicos municipais se abriam para a MBigucci muito em função, também, da formalidade do Clube dos Construtores. Há uma velharia cultural no País, entre os mandachuvas públicos, de que entidades de classe, mesmo inexpressivas como era o Clube dos Construtores de Milton Bigucci, não podem ser contrariadas.
Os desinformados administradores públicos julgam-se espertos. Mal sabem que a maioria dessas organizações não tem representatividade, apenas representação. A diferença entre representatividade e representação é algo como um time de futebol forte, que disputa competições importantes, e um clube de futebol que vive de 11 camisas e alguns gatos pingados de torcedores.
O Clube dos Construtores sob o controle de Milton Bigucci não passava mesmo disso – de um time de 11 camisas que atuava principalmente como agente lobista no Poder Público. Portanto, sem representatividade institucional e, principalmente, social. Essa constatação não pode ser criminalizada, sob pena de o jornalismo de interesse público virar atividade de Relações Públicas. Uma entidade que vivia de mesada do Secovi -- o Sindicato da Habitação, com sede em São Paulo -- para sustentar a maioria das despesas orçamentárias não poderia mesmo ser levada a sério. Sob nova direção, do engenheiro Marcus Santaguita, o Clube dos Construtores melhora a grade orçamentária sem depender exageradamente do Secovi.
Os balanços financeiros detalhados do Clube dos Construtores poderiam ter sido requisitados pelo Ministério Público Estadual para comprovar as afirmações deste jornalista. Aquele arremedo de organização coletiva não passava, de fato e no dia a dia de ações pífias, de, literalmente, meia dúzia de empresários que se autoproclamam representantes de uma classe que, cansada do centralismo do então presidente, preferiu se afastar do quadro associativo e de cargos de direção. A individualização da corporação de Milton Bigucci nos poderes públicos, quando muito a parceria com alguns empresários mais próximos, minava permanentemente o pressuposto de coletivismo daquela associação. Daí à fragilização e baixa representatividade foi um passo. Não existe crime quando se revelam mazelas de qualquer entidade de interesse público. Existe crime quando, por conveniência ou safadeza, se omitem as verdades indesejáveis aos mandachuvas.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)