O jornal digital ABCD Maior vai deixar de existir. Ainda não há anúncio oficial da retirada do campo economicamente mais minado da geografia mundial, ou seja, o jornalismo velho de guerra dizimado pelas novas tecnologias. A notícia oficial só vai confirmar o que os 20 jornalistas com um pé na rua já distribuíram nas redes sociais. Mantido em larga escala com recursos financeiros do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o ABCD Maior vai fazer falta.
O jornal assumidamente de centro-esquerda e que jamais negou apoio aos governos petistas vai abrir uma cratera no mercado de informação na região. Deixaremos de saber de fonte qualificada o que se passa com os centroesquerdistas da região. O que se passa com os conservadores de direita já sabemos de cor e salteado. Vai faltar o outro lado para calibrar observações.
O ABCD Maior era espécie de delator involuntário do que se passava nos bastidores das administrações petistas – e também o que se exaltava publicamente das administrações petistas – além de mostrar bem a cara dos sindicalistas cutistas.
Para entender a utilidade jornalística e também pública do ABCD Maior era necessário decifrar as entrelinhas. Poucos estão habilitados a isso. O que para a maioria dos leitores o noticiário diário e os artigos dos articulistas não passavam de informações jornalísticas no sentido convencional da expressão, para quem estava atento ambiente regional cada edição do ABCD Maior tinha significado especial. Ali se desnudavam movimentos de peças importantes, sobretudo na economia e na política.
Orfandade informativa
Vou me sentir órfão da esquerda organizada na região. Uma esquerda tão conservadora que demora a entender que o mundo mudou ou que o mundo está mudando e reformas como a trabalhista são indispensáveis, por mais doloridas que se apresentem ao distinto público.
O ABCD Maior era espécie de instrumento de divulgação subliminar de articulações politicas e econômicas de bastidores. Por mais que pretendesse escamotear o DNA com que foi concebido, para quem entende de jornalismo não havia charada a decifrar. O ABCD Maior veio ao mercado para contrapor-se aos conservadores da Imprensa. O atraso da direita, portanto, passou a ter a companhia do congelamento da esquerda.
Como tenho a mania de vasculhar as páginas digitais e impressas dos veículos de comunicação da região e, dentro do possível, organizá-las materialmente na base de impressões físicas, a tarefa de escarafunchar o passado de promessas não é tão insondável assim.
Guardo, por exemplo, muito do que se divulgou nas páginas digitais do ABCD Maior sobre o fracassadíssimo projeto do Polo da Indústria de Defesa em São Bernardo. E do Polo de Gás e Petróleo, também, com figuras carimbadíssimas do escândalo da Petrobras a desfilarem garbosamente pelo território regional, acompanhadas de embevecidos gestores municipais petistas.
Espionagem à direita
Pena que o ABCD Maior bateu as botas. Agora vou ter de me concentrar apenas na espionagem, por assim dizer, dos veículos de comunicação locais, impressos e digitais, que adoram bajular centrodireitistas.
De repente, como num passe de mágica pós-eleitoral, trocamos os sinais e resolvemos todos os problemas da região graças aos abençoados adoradores do azul e branco. O vermelho foi banido do noticiário adocicado. E ficamos sem o contraponto de acertos, exageros acomodações editoriais do ABCD Maior.
Estou consternado com o falecimento do projeto de Celso Horta. Sei que na base de tudo está o desmonte da estrutura de arrecadação do Partido dos Trabalhadores e também os sinais de tempestade da reforma trabalhista que vai fazer um rapa na arrecadação do imposto sindical.
Não retiro a legitimidade editorial do ABCD Maior numa região que reinaugurou e potencializou o adensamento da esquerda nacional. Por mais que a esquerda nacional não me agrade – idem em relação à direita nacional – sempre é uma perda enorme não poder desfrutar de uma publicação que tornava o jogo democrático mais perceptível, porque, como disse, expunha muitas das intenções e práticas. Lidar com a escuridão é uma porcaria.
Pior profissão do mundo
Não poderia deixar também de lamentar pelos empregos perdidos. Jornalismo é cada vez mais uma atividade de alto risco para quem quer formar família, assumir compromissos financeiros e lutar pela equidade social, seja qual for a ideologia dos praticantes.
Uma recente pesquisa internacional detectou que a atividade é a mais vulnerável e sem futuro do planeta. Nenhuma novidade. Elevem essa constatação à quinta potência ao concentrarem atenções na Província do Grande ABC. Aqui é o fim do mundo. Vivemos à sombra da Capital. Borralheirescamente como sempre. E curtimos passivamente uma decadência econômica, ética e moral descomunal.
Quando tive de passar adiante a revista LivreMercado, em dezembro de 2008, me senti aliviado. Quando o motoqueiro me entregou o contrato de venda (que na verdade foi de troca pelas dívidas) passado em cartório tive vontade de chorar de alegria. Havia um passivo de merrecas ante a qualidade, a imagem e o prestígio daquela população. Maldito detalhe era a geoeconomia em que estava instalada. A depreciação de produtos e serviços na Província do Grande ABC é frenética. Poucos a enxergam com a devida preocupação. Triunfalismo e ignorância compõem uma serenata macabra.
O ABCD Maior morreu de morte matada porque o PT foi esfacelado na região e no País. Morreria de morte morrida porque o petismo e o sindicalismo jamais voltarão a contar com ventos favoráveis dos anos dourados de Lula da Silva no governo federal.
Contrapondo importante
O projeto do ABCD Maior era democrático não no sentido específico com que foi concebido, de preferência total e indiscutível por pressupostos esquerdistas, mas ao estabelecer contraponto importante a parcelas da sociedade mais inquietas com o futuro. Foi possível entender que existe outro lado da moeda de informações que deve ser tão valorizado quanto questionado.
A diferença entre o ABCD Maior que se foi agora e a LivreMercado que dirigi durante 20 anos é que o projeto editorial petistas/cutista só enxergava um lado do processo de informar a sociedade, enquanto LivreMercado sempre esteve sintonizada na defesa da liberdade econômica e, principalmente, da livre iniciativa de pequeno e de médio porte. Sem contar que, ao longo dos anos, mobilizou páginas muito além da economia. As Madres Terezas que o digam.
Mas não seria a contraposição de LivreMercado que se foi ao ABCD Maior que se vai uma sugestão de escolha do bem contra o mal, do bem feito contra o mal feito, do competente com o incompetente, dependendo do espectro ideológico dos leitores. Muito pelo contrário: as duas publicações -- e não cabe aqui medir o tamanho da importância histórica de cada uma para a região – cumpriram os respectivos papeis a que se propuseram seus idealizadores.
Resta saber qual será o futuro dos jornais impressos e digitais da região. Principalmente o mais tradicional, Diário do Grande ABC, de trajetória nitidamente preocupante. E nem poderia ser diferente. Novas plataformas de comunicação multiplicam as mensagens mas, contraditoriamente, reduzem a pó a massa de novos frequentadores do ambiente de informações preparados para estabelecer conexões com o processo mais valioso que o jornalismo induz: produzir análises e reflexões que trafeguem a quilômetros de distância do quiproquó rasteiro da maioria dos embates de amadores legitimamente expresso nas redes sociais.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)