Cultivar e preservar fontes foi sempre uma questão muito delicada no exercício do jornalismo. Com o tempo, isso tende a virar promiscuidade, sem o distanciamento crítico que preserve a independência do jornalista. É mais comum do que se pensa.
Lula, por exemplo, nos tempos do sindicalismo, gostava de separar jornalistas “confiáveis” dos não confiáveis. Os confiáveis eram aqueles que não faziam perguntas incômodas. Cheguei a ver, numa saída de audiência de dissídio coletivo, que eu cobria pelo Estadão, ele puxar colega pelo braço, para um canto, para falar algo que sonegava aos demais.
Na indústria automobilística, que cobri por cerca de dez anos, para o Estadão e revista Motor 3, lembro-me da dificuldade de lidar com críticas aos produtos e ao mesmo tempo preservar fontes, sem as quais nosso trabalho ficava muito difícil. A retaliação era o executivo passar ao jornal concorrente alguma informação exclusiva, o que nos deixava mal na fita com nossas chefias, que nos cobravam explicações sobre o furo levado.
Quando fui trabalhar do outro lado do balcão, na assessoria de imprensa da Ford, sabia separar, pela experiência, a obrigação de informar do jornalista do nosso relacionamento pessoal, sempre muito cordial. Entendia que a crítica faz parte da obrigação do repórter, porque seu compromisso final e principal não era com a fábrica e sim com os consumidores, ou seja, o público. À fábrica cabia explicar-se da melhor maneira possível, e para isso eu buscava internamente os engenheiros, como fontes. Mas tentar calar a imprensa, jamais, seria um erro grave.
Colisão de interesses
Quando lançamos a primeira edição da revista Motor3 – José Luiz Viera, Paulo Facin e eu – em julho de 1980, na mesma edição que ostentava duas páginas de anúncio do Alfa Romeu, havia uma matéria de avaliação do carro, mostrando algumas das suas qualidades, mas desancando o pau nos seus defeitos, que predominavam. Na hora de avaliar o carro e escrever nenhum de nós foi consultar o departamento comercial sobre o teor que deveria ter a matéria. Apenas cumprimos nosso dever com isenção e com a honestidade que devíamos ao leitor. Isso, no nosso entendimento, é jornalismo. Mas apesar do episódio, a Fiat, que comercializava o modelo, jamais cortou seus anúncios da revista. Ou seja, a fábrica também se comportou com a ética que tem que prevalecer em qualquer circunstância.
No mundo político não pode ser diferente. O jornalista, como pessoa física e cidadão, pode ter a preferência que bem entender, seguindo sua consciência. Mas não cobertura dos fatos, investido na função de informar, não pode levar isso junto. Sua obrigação é buscar a isenção e distanciamento crítico da fonte, inclusive para questioná-la.
Estou falando de noticia, com autoria que pode ou não ser identificada. No artigo é diferente, aí se trata de um espaço de opinião, onde se assume um lado, com a responsabilidade de expor-se como autor. O leitor precisa entender essa diferença.
Máscara da imparcialidade
Mas o que muitas vezes ocorre é a notícia com enfoque claramente parcial, vestindo a máscara da imparcialidade. Essa é a pior de todas, porque retira do leitor a indução a fazer sua própria avaliação crítica, pesando todos os lados de uma questão.
Alguns jornais mascaram isso com o chamado “outro lado”, uma resposta que já colocou o criticado na posição defensiva, e portanto em desvantagem. Inclusive ocupando um espaço inferior no contexto geral da matéria. Esse é um debate que o jornalismo precisa fazer.
Quando comecei na profissão, em 1963, num semanário declaradamente de esquerda, a gente não fingia ser isento. Essa palavra nem existia no nosso vocabulário. Tínhamos, declaradamente, um lado. Mas a imprensa de direita não agia assim. Fingia-se de imparcial, publicando canalhices, principalmente matérias vendidas.
Passivo vem de longe
Samuel Wainer contou, no livro das suas memórias, o “Minha razão de viver”, que Adhemar de Barros, então governador paulista, pagou a Assis Chateaubrian por uma entrevista em O Cruzeiro, nos anos 1950, feita por ele, Samuel, durante um vôo na ponte aérea. Depois de receber a grana, Chatô chamou o repórter e disse que ele merecia receber uma comissão. Com ela, só a comissão, Samuel comprou uma cobertura na Vieira Souto, o metro quadrado mais caro do Brasil.
E depois tem gente que acha que a corrupção começou ontem.
Vale a pena lembrar que Adhemar foi o criador do mais cretino dos slogans, o rouba mas faz, copiado depois por Paulo Maluf.
O jornalista tem amplo direito ao sigilo da fonte. A lei assegura isso. Contudo, uma vez flagrado em criminoso conluio com a fonte, não pode reclamar das conseqüências. Porque nesse caso não está praticando jornalismo. O nome é outro, e fica por conta de cada leitor a escolha.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)