Vou engatar uma quinta marcha de novo – e será nesta semana -- para resgatar verdades geralmente escamoteadas pela chamada grande imprensa sobre o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Estou me contrapondo declaradamente e sem rodeios ao livro do jornalista Silvio Navarro. Sem o menor pudor ou porque instigado pela cronologia da Operação Lava Jato, Navarro procurou mascarar os fatos que não combinaram com os desejos de criminalização do PT a qualquer custo. Algo que os federais estão realizando sem maiores dificuldades.
O editor do site UOL, autor do livro, não resistiria a um debate sério. No local que escolher. E pode chamar os promotores criminais do caso como reforços. Quem construiu um castelo de areia de bobagens que arque com as consequências. Tenho pena é dos consumidores de informações que caíram na enrascada de comprar gato por lebre.
Já escrevi oito capítulos sobre a narrativa de Silvio Navarro. Vou me dedicar esta semana ao nono, após quatro meses de intervalo. Os leitores devem me desculpar por tanto tempo de ausência. Fui forçado a tanto por conta de pautas emergenciais. Além disso, entendo que o livro apenas reproduz colagens industrializadas pela mídia imprecisa, quando não descuidada. Por isso mesmo -- embora o contraditório que produzo seja importante para colocar ordem no galinheiro de informações equivocados – entendi que a série poderia esperar.
O assassinato de Celso Daniel é uma barbada de enredo. Só encontrou respaldo na construção de um caminho paralelo de interpretação por causa de invencionices ditadas por interesses político-partidários, refugados por forças policiais. Afinal, se pretendia pegar o PT de qualquer maneira como agremiação delituosa na gestão de recursos públicos.
Importância do contexto
Não esqueçam os leitores que 2002, quando Celso Daniel foi assassinado, vivia-se ano de eleições presidenciais. Lula da Silva concorria pela terceira vez seguida. Celso Daniel fora chamado para coordenar o programa de governo.
O tempo provou com farta documentação e testemunhos que a administração petista em Santo André era tão delituosa quanto o foram antecessores de Celso Daniel de múltiplos partidos. A área de transporte público sempre foi a farra do boi. A diferença é que os tempos começaram a ser outros com o fim da algazarra inflacionária e o desembarque da Lei de Responsabilidade Fiscal. E também porque o PT, diferentemente das demais agremiações, contava com unidade doutrinária sólida, coletiva, para sistematizar as ações.
Ou alguém acredita sinceramente que foi o PT de Celso Daniel quem inaugurou o festival de propinas entre o setor público e o transporte coletivo nos municípios brasileiros? Ou alguém acredita sinceramente que a versão da força-tarefa do Ministério Público em Santo André, de que Celso Daniel não sabia de nada (foi essa a primeira versão para tentar dar solidez de morte supostamente em nome de limpeza ética) e que, portanto, fora traído pelos colaboradores mais próximos?
Convém sempre lembrar que o assassinato de Celso Daniel foi investigado detalhadamente por força-tarefa de mais de 30 delegados da elite da Polícia do governo Geraldo Alckmin. Foram precisamente três investigações – além de uma da Polícia Federal.
Fez-se de tudo, mas não se conseguiu juntar as irregularidades administrativas da gestão do petista e o sequestro seguido de morte. Sabem por quê? Porque uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, conforme me disse literalmente, exatamente assim, o delegado federal escalado para investigar o caso. E também todos os delegados estaduais que ouvi, os quais ridicularizaram a atuação do MP. Eram tempos de hostilidades entre as duas instituições. A Polícia Judiciária defendia exclusividade nas investigações criminais. O Ministério Público se opunha. Até que tudo se resolveu mais à frente. A Lava Jato é resultado do somatório de forças.
Mais um requentamento
Decidi dar prosseguimento nesta semana à análise do livro de Silvio Navarro porque uma nova notícia sobre o caso Celso Daniel (na verdade, requentada) dá conta de que o condenadíssimo publicitário Marcos Valério teria dito à deputada federal Mara Gabrilli que o empresário Ronan Maria Pinto chantageava o então presidente Lula da Silva em troca da não revelação da suposta operação que liquidou com o petista de Santo André. Pura bobagem.
Se havia algum motivo para Lula e Ronan eventualmente negligenciarem critérios republicanos, tenham a certeza de que caso criminal que vitimou o prefeito não constava do cardápio.
Mara Gabrilli, herdeira de um dos então magnatas do transporte coletivo de Santo André, é uma moça brilhante, atuante, mas do caso Celso Daniel só conhece a versão que lhe interessa. A versão que mais lhe interessa é a massa de informações daqueles que a abastecem.
Vive a deputada a mesma situação da maioria da Imprensa que, nos quatro primeiros anos pós-assassinato, limitou-se às informações compulsoriamente exclusivas do Ministério Público. Afinal, os policiais foram oficialmente proibidos de prestar declarações à Imprensa. A decisão fora tomada pelo governo do Estado. Prevaleceu a massificação unilateral da versão que deu estrutura de morte encomendada.
Colagens apressadas
O livro de Silvio Navarro reservou três páginas para o médico-legista Carlos Delmonte Printes. Nos arquivos de CapitalSocial constam 28 matérias em que o legista é protagonista ou coadjuvante. A despeito de tudo em contrário, comprovadamente em contrário, o médico que cuidou do corpo sem vida de Celso Daniel e muito tempo depois se suicidou é tratado pelo jornalista como uma das supostas vítimas pós-assassinato. Seria cômico não fosse patético. Vou explicar tudo isso na próxima edição da série “Versão farsesca da morte do prefeito vira livro”.
O PT de Santo André era o embrião do PT desmascarado pela operação Lava Jato. A sacralização do petista Celso Daniel pelo Ministério Público Estadual instalado em Santo André com uma força-tarefa de três promotores que atuaram sempre em confronto com as forças policiais se comprovou um dos erros crassos de investigações direcionados a proteger o governo tucano em São Paulo.
No fundo, a criminalização de Sergio Gomes da Silva, bode expiatório do caso Celso Daniel, foi uma maneira de disputas entre tucanos e petistas preservarem seus interesses que, como se vê, a Lava Jato resolveu melar.
Absolutamente inocente
Ainda sobre a suposta participação de Ronan Maria Pinto no assassinato de Celso Daniel, quer como um dos autores (como o MP chegou a sugerir) quer como suposto chantageador (como agora se afirma no requentamento do caso) busco nos arquivos um texto que produzi em 28 de outubro de 2009 sob o título “Ronan, absolutamente inocente”. Reproduzo um conjunto de trechos:
É natural que internautas de todas as partes do Brasil e até mesmo do exterior participem como estão participando do blog do jornalista Juca Kfouri em forma de comentários ao texto que escrevi ainda outro dia sobre o empresário Ronan Maria Pinto à frente do Santo André. Entretanto, o silêncio covarde de ver o circo pegar fogo não faz parte de minha personalidade. Prefiro sempre e sempre a luz à penumbra. Tenho muitos motivos como profissional de jornalismo para criticar Ronan Maria Pinto na presidência do Diário do Grande ABC e na presidência do Santo André. Mas também tenho todos os motivos para retirá-lo da cena do crime ou da idealização do crime em que o colocaram e ainda o colocam no caso Celso Daniel.
(...) O ponto mais delicado daquele texto e que provocou leitura abrasiva trata do assassinato do prefeito Celso Daniel. Não faltaram comentários de internautas que relacionaram aquele acontecimento a Ronan Maria Pinto. Pura bobagem. Tenho dito e escrito ao longo dos anos que tanto Ronan Maria Pinto quanto Klinger Sousa e Sérgio Gomes da Silva, o triunvirato que o Ministério Público escolheu para pagar a conta, jamais tiveram qualquer participação naquele incidente. Tratou-se sim e comprovadamente de crime ocasional, como cansou de apurar a Polícia Civil de um governo estadual antipetista — e também a Polícia Federal sob o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Reafirmo categoricamente a inocência deles porque, inconformado com o noticiário reticente, quando não estreitamente próximo demais da força-tarefa do Ministério Público, avancei profundamente nas investigações. Peguei o touro a unha. Não fiquei na janela vendo a banda passar, nem tampouco selecionando fontes de informações para confirmar a versão de crime de encomenda.
(...) Longe de mim o monopólio da verdade, mas também não pratico a hipocrisia de juntar-me à maioria massacrante e conveniente de alinhamento automático à tese de crime administrativo envolvendo Celso Daniel. A manipulação do noticiário por interesses estranhos ou simplesmente porque o jornalismo investigativo já viveu melhores dias cobriu o caso com densa carga de interrogações que, sei bem, jamais serão eliminadas. Não há morte de gente famosa que não passe pelo corredor polonês de múltiplas versões. Vejam o que dizem de Michael Jackson, de princesa Diana, de Kennedy e de tantos outros.
(...) Retirar da esfera esportiva e empresarial a crítica que produzi no artigo “Ronan, o absolutista”, transplantando-a para a arena criminal especulativa é forçada de barra à qual os internautas, fustigados durante todo o tempo pela versão única do assassinato, têm todo o direito. Mas não seria justo que me calasse.
(...) Não tenho e jamais tive dúvidas sobre as consequências de meus textos investigativos sobre o caso Celso Daniel. Seria sempre lembrado como o jornalista que se opôs à realidade dos fatos, à realidade dos promotores públicos, instituição de goza de amplo prestígio na sociedade. Não carrego esse peso com desconforto. Minha consciência profissional está em paz. Só não posso me calar para entregar Ronan Maria Pinto à sanha pontual de rescaldos de um artigo que era e sempre se pretendeu esportivo-empresarial.
Jamais teria aceitado trabalhar como diretor de Redação do Diário do Grande ABC entre julho de 2004 e abril de 2005 se não tivesse absoluta certeza da inocência de Ronan Maria Pinto, de Sérgio Gomes da Silva e de Klinger Sousa. (...) Ronan Maria Pinto é sim absolutista no futebol, com amplo direito de defesa que este site lhe dará, numa entrevista exclusiva, mas é absolutamente inocente no caso Celso Daniel.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)