Sempre me perguntam se gravei alguma das muitas conversas ao longo de mais de meio século de jornalismo. Respondo que lamento tê-lo feito uma vez, 30 anos atrás, e não ter feito nada durante a audiência com o juiz Jarbas Luiz dos Santos da 3ª Vara Criminal de Santo André.
O meritíssimo agiu com a sensibilidade e a precisão de quem sabia o que queria e me condenou a oito meses de prisão. Tudo porque revelei a verdade dos fatos sobre a mequetrefe atuação do Clube dos Construtores do Grande ABC então subjugada pelo autoritarismo de mais de duas décadas do famigerado empresário Milton Bigucci.
O interesse público foi jogado no lixo. Sim, interesse público, porque uma entidade de classe que estabelece valores sobre o mercado imobiliário não pode ter carta branca para enganar o distinto público. Estão aí os distratos contratuais como prova viva.
Até hoje me recrimino por ter gravado sem o consentimento do entrevistado uma conversa com um despachante de São Caetano durante a preparação de uma reportagem especial de denúncia que escrevi para o Grupo Estado, dos jornais O Estado de São Paulo e do Jornal da Tarde, naquele começo de 1986, quando atuava na sucursal instalada em Santo André.
Tudo devidamente descartado
Era necessário me proteger, claro, porque se tratava de uma reportagem investigativa de um rombo nos cofres públicos de mais de US$ 3 bilhões em uma década. Por sorte, o procedimento não causou contratempo ao comerciante, boi de piranha de um milionário esquema de corrupção que sangrou a República. A matéria de que cuidava, o escândalo do Proálcool, não deu em nada a partir do momento que um determinado delegado federal abraçou a causa e decidiu que não deveria dar em nada.
Um delegado federal que virou senador da República. E ainda tem gente, inclusive no jornalismo, como Reinaldo Azevedo, que se opõe à Lava Jato e mantém silêncio sobre aquele fim de noite no Jaburu.
Incivilidade e parcialidade
Lamento mesmo é não ter colhido em flagrante delito de incivilidade e parcialidade o meritíssimo de Santo André que me reservou hostilidade durante toda a audiência. Mais que hostilidade: protegido pela toga ele me mês de gato e sapato.
Outro dia uma fonte forense me garantiu que o que se pretendia durante o interrogatório, por sugestão de gente ligada a Milton Bigucci, é que eu reagisse ao tratamento do magistrado. Ele teria encontrado o pretexto que tanto procuravam para me dar voz de prisão.
Disseram, assim me garantiu a fonte muito próxima a um promotor público, que eu não resistiria à pressão psicológica do magistrado. Que bastavam duas ou três intervenções mais agudas para eu reagir e entregar a rapadura. O sangue quente de descendente de espanhol me trairia, garantiam eles.
Se a pretensão era essa mesma, todos caíram do cavalo. O que meus adversários – e o magistrado atuou como implacável algoz durante todo o interrogatório—não conhecem de minha ficha pessoal é que sou um compenetrado discípulo da hierarquia. Fui um soldado exemplar na prestação do serviço militar. Quem caiu no conto de que iria me opor ao meritíssimo se deu muito mal, repito. Não precisei fazer esforço algum para suportar aquele massacre. Enxergava à minha frente uma autoridade judicial a qual deveria respeitar acima de tudo naquela sala.
Confesso, no entanto, que não estou preparado a determinadas projeções que eventualmente possam acontecer nestes tempos em que todos desconfiam de todos e os apetrechos eletrônicos são perigos a serem desmobilizados.
Cuidados redobrados
Por exemplo: se acertar uma entrevista com quem quer que seja e me for imposta proibição de carregar o celular, não tenho dúvida em me retirar. O entrevistado tem todo o direito de solicitar o que bem entender para se proteger. Da mesma forma que o entrevistador poderá se utilizar do mesmo direito e se recusar a passar o atestado de que não é confiável.
Aliás, essa postura vale tanto para as missões oficiais do jornalista que não se desgarra de mim como eventualmente em contatos pessoais, de pessoa física. O interlocutor que ousar desconfiar da lealdade de uma conversa reservada e ter a ousadia de solicitar o sequestro do celular, terá como resposta minha imediata retirada de campo.
Entrevistado ou interlocutor pode ter todos os motivos do mundo para se manter na retranca durante diálogos profissionais ou pessoais. É um direito individual acautelar-se diante de suposta possibilidade de gravação espúria. Tanto numa situação como na outra, a detecção desse sentimento do interlocutor ou do entrevistado faz parte das potencialidades inerentes ao que chamaria de paranoia de gravações. Mas a materialidade da desconfiança quando verbalizada e condicionadora do diálogo interditará compulsoriamente o encontro. Bato em retirada.
Gravação seria esclarecedora
Felizmente jamais algo semelhante aconteceu, embora não duvide e nem tire a razão de quem se tenha postado com os dois pés atrás. Não cometi jamais o desatino de transformar em informação o que me foi repassado informalmente, exceto se liberado pelo interlocutor.
A entrevista que gravei sem conhecimento do despachante de São Caetano há 29 anos foi uma exceção numa carreira de mais de 50 anos. Não o faria jamais outra vez.
Não deixo de lastimar a não gravação daquele interrogatório autoritário, desumano, agressivo, desleal, parcial e tudo o mais do juiz Jarbas Luiz dos Santos. Certamente jamais o enfrentarei de novo, por mais que Milton Bigucci insista em tentar me calar.
O juiz Jarbas Luiz dos Santos não terá nunca mais a oportunidade de me oprimir deliberadamente. Qualquer ação criminal que ditadores sociais tentem me infligir jamais será apreciada por aquele meritíssimo – porque será requerida suspeição imediata – aliás, como o fora posteriormente pelo advogado Alexandre Marques Frias.
Trocaria tranquilamente o delito que cometi com o despachante de São Caetano pela providencial gravação daquele interrogatório.
Primeiro porque a gravação em 1986 acabou inútil, o que de alguma forma reduz meu sentimento de culpa. Segundo porque a não gravação se comprovou clamoroso erro. Ao entrar naquela sala de audiência acreditei que encontraria um exemplar de magistrado a tratar as partes litigantes com respeito e isenção. Sofri entre outros ataques o que chamaria de bullying judicial. A transcrição daquele interrogatório é imprecisa porque não captou o ambiente de horror, os olhares reprovadores constantes do meritíssimo, do representante do Ministério Público e, claro, dos funcionários-testemunhas e do advogado do ditador que comandou o Clube dos Construtores.
A sentença absurda, descabida, inconsistente e tudo o mais que, entre outros vícios, fere a liberdade de expressão, é fichinha formal perto do que vivi ao vivo e em cores durante mais de uma hora.
A gravação que não fiz viralizaria na Internet tanto quanto o vídeo de um advogado de cabelos brancos e 50 anos de carreira que, durante audiência, acusou um desembargador de recebimento de propina. Afinal, com um dispositivo para capturar som e imagem, iria para o contragolpe sereno às investidas abusivas do magistrado. O bicho ia pegar mesmo. Uma pena que tenha acreditado tanto num representante da Justiça. Me senti julgado nas Filipinas por tráfico de drogas.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)