Fosse esta Província dos Sete Anões algo realmente sério em cidadania, em compromisso social, em interesse público, em tudo que pudesse ser relacionado com a democracia no sentido etimológico e cultural mais amplo do verbete, teria este jornalista publicado desde 2009, quando assumiu de forma mais intensa a edição desta publicação digital, nada menos que uma dezena de livros. A série de artigos que chamo à leitura com “10 Motivos” é prova persistente disso. Ali estão frutos de um trabalho que ultrapassa os limites do profissionalismo e invade o campo do messianismo.
Exatamente por ser o que é, ou seja, um territoriozinho sem eira nem beira do ponto de vista que se quiser observar e refletir, a Província dos Sete Anões reserva tratamento contraditório a quem se dispõe a oferecer cardápio quase diário do que se passa de mais substantivo em suas fronteiras.
Por um lado, temos uma maioria que se manifesta em apoio e solidariedade a este jornalista, mas sempre de forma discreta. De outro, uma minoria de bandidos sociais articulados para me tirar de circulação. Faz parte do jogo de uma cidadela em que os marginais tomaram conta do pedaço e os homens e mulheres de bem não querem arriscar o pescoço.
Outro dia estava a divagar sobre os mais de 50 anos de jornalismo em que estou metido, desde o início na revista Cinelândia, em Araçatuba, em 1965, até estes tempos. Dividi uma trajetória longínqua e abrasiva em quatro períodos cronológico-profissionais. Não vou detalhá-los agora. Apenas vou antecipar o que possivelmente farei outro dia de forma mais aprofundada: CapitalSocial representa possivelmente o período mais gratificante.
Condiciono a avaliação porque é preciso refletir mais para chegar e afirmar categoricamente que os últimos nove anos são os mais produtivos. Para não correr o risco de arrependimento, vou esperar um pouco mais para uma reavaliação. Mas é certo que este instrumento digital, respaldado pelos antecessores, me abastece de um sentimento de maturidade jamais captado.
Romance sugerido
Outro dia me encontrei com um novo interlocutor que jamais acreditei pudesse ser leitor diário destes textos porque suas atividades são intensas. Não se trata de um leitor qualquer, pelo nível de escolaridade e também pelo processo de selecionamento de meus textos, arquivando-os para consultas erráticas.
Não é que ele me sugeriu algo que já fiz experimentalmente nestas páginas? Ele entende que para contornar obstáculos em forma de retaliações, devesse escrever tudo que escrevo mas de forma metafórica, romanceada.
Trata-se de conselho e tanto, vindo de quem veio e, principalmente, por embutir preocupação especial com minha liberdade física, já que a intelectual jamais será sequestrada. Estou pensando no assunto. Inclusive como alternativa a, quem sabe, produzir um livro nestes termos estilísticos.
Na medida em que escrevo, faço intervalos rápidos rumo ao acervo desta publicação. Finalmente encontro um dos vários artigos em que me meti a romanceador. Os trechos que se seguem -- e que podem servir de inspiração a algo mais intenso em forma de livro -- foi publicado na edição de 17 de outubro de 2004 (portanto há quase 13 anos) sob o título “Fazenda Ramalho”.
Contexto esclarecedor
Acho que não seria estraga-prazer se informasse os leitores sobre o contexto. Afinal, já faz tanto tempo que o escrevi e a reprodução sem o devido respaldo informativo poderia tornar a leitura menos interessante. Pois vou fazer um resumo da ópera.
Estava este jornalista diretor de Redação do Diário do Grande ABC naquele 2004 (e também como articulista de uma coluna quase diária, palco editorial do que vai se seguir), quando se iniciou o processo eleitoral prático pela Prefeitura de Santo André. Estavam concorrendo o petista João Avamileno, ex-operário, e o ex-triprefeito doutor Newton Brandão. Avamileno estava prefeito como herdeiro do mandato de Celso Daniel, morto em janeiro de 2002. Concorria, portanto, à reeleição.
A guerra de guerrilhas movida pelo staff de Newton Brandão contra o Diário do Grande ABC colheu este jornalista como bode expiatório. Queria que queria, a turma jurídica de Brandão, obstar a publicação de pesquisas eleitorais, contratadas à Brasmarket. Intensificaram-se as ações na Justiça Eleitoral. Limito-me a esse contexto para sugerir a leitura abaixo. Outro dia conto em detalhes o resultado da operação político-partidária. Vamos, portanto, à Fazenda Ramalho:
Há mais de 600 mil animais na imensa e traumatizada Fazenda Ramalho. A disputa entre o doutor e o operário é para saber quem vai gerenciar tantas cabeças. E tributos também. A polêmica instalada na Fazenda Ramalho por causa da votação que vai decidir a sorte daquela imensidão de território é a assiduidade com que é proibida a divulgação de sondagem estatística da votação inicial a que terão acesso somente os graduados entre galos e galinhas, elefantes e leões, cavalos e jegues, gatos e macacos, marrecos e dinossauros, pintassilgos e hienas, entre outros, sem contar os avestruzes. A Fazenda Ramalho está na definição do mandato entre o operário apoiado pelas cabeças vermelhas e o doutor de cabeças amarelas. A ordem constitucional determina que o controle não pode passar de quatro anos num primeiro mandato, e de outro tanto num segundo e último. O operário herdou há dois anos um cargo de um intelectual morto. O doutor já comandou o território por 14 anos.
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O operário de cabeça vermelha não se incomoda com quem vai recrutar especialistas para proferir a sentença provisória, sujeita à reformulação no dia do juízo final das urnas. Por sentença provisória se entenda as pesquisas, através da metodologia resumida na concepção de que basta experimentar uma colherada de sopa para conhecer o sabor do prato. O doutor é raposa e está cercado de guerrilheiros eleitorais. Já mandou fazer essa tal de pesquisa e se deu mal, porque contrariou o ritual sagrado de quem não quer queimar a própria língua. Em vez de contar os animais que julgava encabrestados na Fazenda Ramalho e, depois, conforme o resultado obtido, decidir pelo registro ou não, preferiu oficializar antes da sondagem. Aí a justiça Eleitoral determinou a exposição pública dos números que favoreciam o operário. Um desastre de 11 pontos.
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Quem se divertiu com a trapalhada foi um outro instituto de pesquisas que, tolhido no direito de fornecer dados estatísticos ao jornal mais representativo do território, teve motivos de sobra para festejar uma vingança que jamais conseguiria perpetrar com tamanha eficiência. Dizem que o doutor está mal acompanhado. Contaram-lhe que o melhor negócio eleitoral da temporada era fazer-se de vítima dos supostos poderosos de plantão, principalmente o jornal da região. Seria algo como um brizolismo retardatário na briga com a TV Globo. O doutor teria acreditado no sucesso da empreitada, mas acabou envolvido numa enrascada. A suposta TV Globo da vez não trocou os pés pelas mãos de exagerar na argumentação. Os animais da Fazenda Ramalho têm senso crítico e sabem distinguir informação de perseguição. O doutor teria ficado apreensivo, principalmente quando uma pesquisa revelou que 80% da Fazenda Ramalho, informada sobre o impedimento de divulgação de pesquisa entre amarelos e vermelhos, condenaram a medida.
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Enquanto o operário assiste a tudo de camarote, o doutor é assediado por gente do bem que o orienta sobre a insensatez de impedir que a Fazenda Ramalho seja esquadrinhada de forma científica para revelar quantos são amarelos e quantos são vermelhos. O instituto de pesquisa proibido de divulgar números continua frequentando ruas, avenidas e vielas. Ouve galinhas e galinhos, patos e patas, marrecos e marrecas, cães de todas as raças. Nem beija-flores escapam da consulta. Dizem que de vez em quando têm de enxotar uns gambás metidos a espantar a freguesia. Não faltariam também cobras criadíssimas que, ao sinal de que há gente contando as cabeças amarelas e vermelhas, correm para artificializar o resultado.
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Pressionado pela turma do doutor, o instituto de pesquisa e o jornal que o contratou para anunciar os números sofrem cada vez mais restrições do judiciário eleitoral. Há recomendações expressas para se esquecer de qualquer coisa que resvale em numerais. Nem supostas metáforas podem ser esgrimidas. Qualquer coisa que lembre pesquisa eleitoral na Fazenda Ramalho poderá significar muitas dores de cabeça. O advogado de instituto de pesquisas disse que a legislação é um entulho autoritário, dos tempos da ditadura. A turma do doutor não gostou que a declaração constasse de matéria de primeira página do jornal e da reportagem da página três. Entraram com ação na Justiça Eleitoral. Só não tiveram o direito de resposta impresso exatamente na edição de disputa do primeiro turno porque uma turma do jornal resistiu bravamente. Uma semana depois, a mesma Justiça Eleitoral, agora em São Paulo, deu ganho de causa ao jornal.
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A Fazenda Ramalho respira com tranquilidade nestes dias e noites, mas nem por brincadeira se pode cantar um bingo. A turma do doutor vai dizer que é mensagem cifrada para soprar a diferença de pontos percentuais que separaria os dois finalistas. A Fazenda Ramalho é uma grande piada de deboche à liberdade de Imprensa e à democracia de informação. Pintam e bordam um sete ruborizado em suas fronteiras.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)