Imprensa

Se essa rua/se essa rua/fosse
minha/eu mandava policiar

DANIEL LIMA - 17/10/2017

Depois de longa jornada propositadamente de reclusão, que não pode ser confundida com omissão porque está mais vinculada à decepção, eis que volto com o “ombudsman não autorizado” que criei e botei em campo durante dezenas de vezes. Hoje escrevo sobre a manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) do Diário do Grande ABC de ontem, que realça a informação de que a Avenida dos Estados é campeã regional em furtos de veículos. 

Até prova em contrário, o endereço campeoníssimo é a discreta Rua Mediterrâneo, em São Bernardo. A rua onde moro, mas que não é minha, porque se fosse minha, e lembrando a cantiga infantil, eu mandava, eu mandava policiar, com agentes e viaturas, para poder, para poder viver em paz.

Se volto a campo com o ombudsman não autorizado é porque, provavelmente, a reportagem do Diário do Grande ABC me tocou mais forte pelo fato de morar num dos 21 endereços listados como os maiores focos de furtos de veículos na região, conforme pesquisa que o próprio jornal desenvolveu com base na ferramenta SSP (Secretaria de Segurança Pública) Transparência, criada pelo governo do Estado.

Equívocos sacramentados 

O estudo, segundo o jornal, esmiuçou o histórico de seis mil casos de furtos registrados entre janeiro e agosto deste ano. Ou seja: temos o ranking de risco aos proprietários de veículos. Pena que o ranking seja furado. 

Primeiro, em qualquer análise que se faça não se separam os registros de furtos e roubos de veículos (sem uso e com uso da violência) porque em muitas situações uma coisa leva à outra. A conexão entre furtos e roubos de veículos é tão fundamentada nas investigações que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo divulga os dados conjuntamente. Nos tempos de IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos) juntava os dois indicadores para estabelecer o passo inicial do ranking de criminalidade no quesito. 

O outro ponto que torna o ranking do Diário do Grande ABC peça alquebrada é o desprezo a um vetor essencial: a extensão física das vias sob análise. Houvesse esse cuidado, a Avenida dos Estados, trecho de Santo André, considerada pelo jornal o principal endereço de furtos de veículos na região, desapareceria das primeiras colocações. 

Foram registrados 48 casos nos primeiros oito meses deste ano. Basta dividir a extensão de mais de nove quilômetros da Avenida dos Estados em Santo André pelos casos e comparar com os 33 registros na Rua Mediterrâneo, no Jardim do Mar, em São Bernardo. 

A rua onde moro não tem mais que mil metros de extensão. Façam os cálculos de quantos registros ocorreram em média por mês a cada um quilômetro da Rua Mediterrâneo e, com o mesmo critério, na Avenida dos Estados. Minha rua ganha de goleada. 

Pena (e aí já é outro assunto) que a proporção deve ser exatamente inversa quando se compara o número de multas com o de infração no trânsito. Multa-se demais na Rua Mediterrâneo. Os marronzinhos estão sempre de tocaia porque têm que cumprir a meta de receitas estipulado por burocratas desalmados. 

Exemplo emblemático 

Quem imagina que estou a inventar um medidor apenas para contrariar o ranking do Diário do Grande ABC provavelmente não terá defensores e tampouco conhece minha vida pregressa de vasculhador regional de informações publicadas. 

Quando se dispõem de dados diferentes nesse tipo de avaliação é recomendável que se busquem métricas compatíveis. Por exemplo: não são os números absolutos que necessariamente definem os municípios mais violentos de uma região, de um Estado ou de um País. A medida recomendada pela ONU (Organização das Nações Unidas) é simples: num prato colocam-se os números absolutos e no outro a âncora em forma de 100 mil habitantes. O resultado estabelece a proporção de criminalidade letal, independentemente do tamanho do universo pesquisado, se uma cidade de 100 mil ou de 10 milhões de habitantes. 

Em números absolutos o Estado de São Paulo lidera o ranking de homicídios no País, mas esse ranking é apenas força de expressão. O ranking que vale mesmo e é o único utilizado refere-se ao total de casos por 100 mil habitantes. São Paulo tem a menor incidência nacional. 

Acidentes também 

Outro dia fiquei com vontade de sacudir o ombudsman não autorizado que existe em mim, mas me contive. Tratava-se de outra matéria que virou manchetíssima do Diário do Grande ABC. Referia-se às mortes em acidentes nas rodovias que servem à região. Não me recordo exatamente quem chegou em primeiro lugar nessa quantificação macabra. Se não me engano foi a Imigrantes, seguida pelo trecho sul do Rodoanel. 

A contagem também está equivocada. A Rodovia Índio Tibiriçá perdia em números absolutos, mas como é bem menos extensa que as demais, lideraria o placar. Quem conhece todos esses endereços sabe que a Índio Tibiriçá é um risco permanente, embora coalhadíssima de radares. O que é estruturalmente frágil não se conserta com remendos. Melhora, mas não resolve. Talvez, nesse caso, tenha havido negligência ou algo pior por parte do governo do Estado, que preferiu priorizar o trecho leste do Rodoanel, muito aquém do fluxo imaginado. A Índio Tibiriçá é de baixa competitividade econômica para quem leva logística a sério. 

Isolacionismo geográfico 

Existe uma terceira vertente da manchetíssima de ontem do Diário do Grande ABC a merecer restrição. Além da inapropriada separação de roubos e furtos de veículos ao se definir um ranking, e de se definir um ranking dessa modalidade sem considerar o tamanho físico dos endereços, a reportagem pecou pelo isolacionismo geográfico da tipologia criminal. 

Ou seja: não se pode desconsiderar o entorno da Avenida dos Estados, da Rua Mediterrâneo e de outros 19 endereços listados. O trabalho investigativo deveria ter definido os núcleos urbanos mais violentados com furtos e roubos de veículos. A contiguidade dos endereços mais frequentados pelos marginais determinaria classificação mais compatível com ações ou inações policiais. 

No caso da Rua Mediterrâneo, por exemplo, há uma imensidão de endereços próximos mais intensamente escolhidos pelos bandidos quando se somam os números absolutos dos casos. Afinal de contas, trata-se de espaço territorial em que pontuam hospitais, universidades, templos religiosos, clínicas médicas, Cidade da Criança e estabelecimentos de serviços em geral. Sem contar a vizinhança da Rodovia Anchieta, que, de fato, é Avenida Anchieta. Um prato cheio para quem está de olho na riqueza sobrerrodas. 

Longo descanso 

Desde fevereiro deste ano o ombudsman não autorizado estava em descanso formal. Isso significa que não me manifesto no sentido de ombudsman não autorizado, mas que, mesmo sem a mesma acuidade de observação, as antenas estão sempre ligadas. Caso contrário, não seria jornalista. O até então último texto de atuação enfatizou o seguinte título: “Xeque-mate da GM desperta ombudsman não autorizado”: Leiam alguns trechos: 

 Tenho repetido aos leitores em mensagens eletrônicas: não, não e não, não vou transformar em rotina o trabalho de ombudsman não autorizado que durante bom tempo desenvolvi aqui e me sobrecarregou. Ombudsman não autorizado é expressão que criei para explicar o que significava analisar os jornais da região, impressos e digitais, de modo a pressioná-los contra a parede de eficiência informativa. (...) Os erros, os equívocos, as contradições, tudo que diga respeito a imperfeições, continuam aos borbotões. Diria mais: o padrão tem sido recorrentemente danoso e por isso mesmo devo poupar as publicações no que seja possível, sem que pareça compadrio. (...) No mesmo dia em que o Diário do Grande ABC publicou manchetíssima de primeira página (o que é um pleonasmo) sobre o saldo industrial de trabalhadores da região em janeiro, após mais de duas dezenas de meses de resultados negativos, conforme pesquisa do conglomerado Fiesp/Ciesp, a Panex anunciava oficialmente o fechamento da unidade em São Bernardo. 

Mais Ombudsman não autorizado 

 A decisão culminou na demissão de mais de duas centenas de trabalhadores. A notícia sobre a Panex foi publicada na versão digital do jornal ABCD Maior e apenas no dia seguinte no Diário do Grande ABC. Sinceramente, qual é a notícia mais importante ante circunstâncias econômicas e sociais que nos abatem após um período de euforia manipulada pelo consumismo e pela farra fiscal sem fôlego de maratonista? A resposta é a seguinte: é claro que uma reportagem com respaldo de dados do acervo mais recente de abates de fábricas na região para dar à evasão da Panex conotação estrutural dos fatos e não um registro circunstancial, como se não houvesse cordéis macroeconômicos a expor as vísceras regionais. (...) Na mesma edição de suposta redenção do emprego industrial na região o Diário do Grande ABC deu de forma burocrática, escondida, quase envergonhada, uma notícia que, por ser furo de reportagem (somente nesta semana o Estadão escreveu sobre o assunto) deveria ganhar o topo de importância da primeira página. Trata-se do mais que emblemático anúncio da direção da General Motors em São Caetano, repassado por um sindicalista ao repórter do jornal. A empresa norte-americana chegou a um estágio em que a expressão “dá ou desce” talvez seja a mais apropriada para revelar a relação entre capital e trabalho nas montadoras de veículos da região. Em suma, ou os trabalhadores aceitam novas regras do jogo, que reduzem os custos de produzir veículos na empresa sediada em São Caetano, ou a vida útil da unidade fabril será bastante curta em termos de competitividade e – claro -- de resistência. As montadoras costumam deixar os locais menos competitivos de forma gradual. Sem alardes. As unidades locais de GM, Volkswagen, Ford e Mercedes-Benz estão aí como provas. Já foram muito maiores em produção e geração de emprego. E serão muito menores nos próximos anos. Ou seja e sem delongas: a grande manchetíssima daquele dia do Diário do Grande ABC jamais seria o saldo de 150 trabalhadores industriais, segundo dados da Fiesp/Ciesp. Tanto que nenhum dos grandes veículos da Capital se deixou levar pelo balanço positivo de números absolutos mais expressivos no Estado de São Paulo a ponto de alçarem reportagem em forma de manchetíssima. (...) Uma General Motors define prazo para se tornar moderna ou perecer em São Caetano é muito, mas muito mais notícia digna de manchetíssima do que a criação de 150 empregos industriais não mais que circunstanciais numa região que perdeu, no período de déficits acumulados, mais de 40 mil postos de trabalho no setor. 



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