Economia

Escravos do Real

DANIEL LIMA - 05/02/1997

Eles representam a classe média brasileira. Média-média, média-baixa, média-alta. Eles são empreendedores típicos do Grande ABC, região que vive à sombra e à inclemência das montadoras de veículos. Eles podem ser chamados também de Escravos do Real. É provável que desaprovem a identificação, mas talvez nenhuma outra expressão os defina melhor. Escravos do Real porque, desde que o plano do então ministro e hoje presidente Fernando Henrique Cardoso surgiu no cenário econômico brasileiro, eles começaram a sentir maior necessidade de produzir mais para enfrentar as dificuldades de um País que aprendeu a valorizar a moeda, depois de quatro perdulárias décadas de inflação.

Os Escravos do Real, que também sofrem os efeitos da globalização dos negócios, têm em comum carga diária muito maior e mais intensa de trabalho, sem a contrapartida de resultados financeiros compatíveis com tanto esforço e muito aquém do período inflacionário. Mas eles estão felizes. A estabilidade monetária e consequente visibilidade da situação econômica em que se encontram compensam a queda do padrão de qualidade de vida que todos dizem estar sentindo com a redução das horas de descanso e de lazer.

Os Escravos do Real são o contraponto dos festejados brasileiros de classes populares que encontraram no plano de estabilização a terra prometida. Os reis do Real, os pobres comprovadamente beneficiados e que não tinham recursos para se acautelar contra a inflação através de contas remuneradas pela indexação financeira, fizeram e ainda fazem estripulias consumistas, na maioria dos casos espichadas pelo crediário a juros escorchantes.

Os Escravos do Real sofrem mas não perdem o bom humor. Eles pagaram muitas contas da reengenharia econômica implantada há 32 meses. O índice de custo de vida medido pela Fipe aumentou pouco mais de 60% desde julho de 1994, mas os serviços pessoais, que os Escravos do Real utilizam em grande escala, subiram 150%, as despesas operacionais na manutenção dos domicílios espetaram 140%, os serviços médicos, 125%, as escolas mais 116% e a alimentação fora de casa outros 76%.

O jovem Adriano Calhau, diretor da Kad Publicidade, e o experiente Nilton Spíndola, diretor-comercial da Rádio Emissora ABC de Santo André, têm atividades semelhantes no mundo da publicidade, mas contornam o Plano Real de forma diferente. Adriano Calhau diz que está trabalhando demais, porém acha importante o momento por que passa o País: “Os clientes estão mais exigentes, cobram resultados, e os cuidados com os planos de mídia são maiores, optando-se muitas vezes por veículos segmentados, que possam oferecer melhores resultados. Mas tudo isso traz a satisfação de se sentir melhor a participação de cada um nos efetivos resultados” — afirma.

Nilton Spíndola também é pressionado por maiores exigências da clientela e sofre com o que chama de concorrência desleal: “As radiopiratas não têm qualidade de programação, não têm maiores compromissos com investimentos tecnológicos e aviltam o mercado com preços baixíssimos de publicidade. Por isso, tenho me desdobrado muito para conseguir resultados” — lembra.

Entre Calhau e Spíndola há convergência quanto à estabilidade da moeda. “Agora fica mais fácil planejar as campanhas publicitárias, mas temos que nos conformar com contratos de valores reduzidos, que nos obrigam a ganhar na quantidade de clientes” — afirma Calhau. “Temos feito contratos de até seis meses de veiculação de anúncios, porque agora o anunciante tem confiança na moeda, embora também esteja medindo melhor o retorno do investimento” — constata Spíndola.

Paulo Hoffman, diretor de escritório de advocacia em São Caetano, e o arquiteto Silvio Tadeu Pina, diretor de escritório de arquitetura e obras em Santo André, também estão suando muito mais a camisa para obter resultados nem sempre iguais aos do passado. O mercado de construção civil passa por fundas transformações, com redução da rentabilidade muito acima de tantos outros setores, e isso Silvio Pina sente na pele. Sem contar que os níveis de exigências se elevaram.

A dupla globalização-Plano Real ataca o mercado e quem não se cuida acaba sobrando. Pina sabe disso e se adaptou. Sua empresa presta até serviços de emergência nesta fase em que as empresas mudam o layout para alcançar maior produtividade. Essa operação normalmente exige três turmas de trabalho nos finais de semana, quando as empresas estão com atividades paralisadas. “A concorrência também está muito maior” — completa Pina.

Paulo Hoffman confirma o diagnóstico. A valorização do dinheiro torna as empresas mais atentas aos números de seu desempenho, o que antes a inflação encobria. Hoffman atua diretamente na área de advocacia empresarial. “Há mais interesse em consultas do que antes, porque agora o empresário sabe que prevenir nos tempos de estabilidade é melhor do que remediar nos tempos de inflação” — define o profissional. Ele considera que os 32 meses de Plano Real já fizeram limpeza no mercado e que quem sobrou estará fortalecido para os próximos anos. “Mas não quero me enganar e dizer que a carga de trabalho será reduzida. Hoje, cada cliente exige mais a presença do consultor ao seu lado e não temos feito outra coisa senão atender a todos” — diz o titular de uma banca de cinco profissionais.

Quem trabalha diretamente com pequenas e médias empresas desdobra-se também para dar assessoramento cada vez mais próximo e constante. Casos de Dorival Pereira de Souza, diretor do Universo, escritório de contabilidade de Santo André, e Maria do Rosário de Lima, diretora de empresa especializada em marcas e patentes. A abertura comercial e a criação do Mercosul expandiram o leque e a intensidade de atividades de Maria do Rosário, da mesma forma que a terceirização, com a multiplicação de pequenas empresas, engordou a clientela e as preocupações de Dorival Pereira.

Maria do Rosário tem escritório tipicamente familiar e se envolve numa atividade que define como eminentemente técnico-burocrática: “Para se ter idéia do que significa cuidar de processos junto ao Instituto Nacional de Marcas e Patentes, basta dizer que o andamento de cada caso implica em pelo menos dois anos de acompanhamento” — exemplifica a consultora.

Dorival tem 11 funcionários, é igualmente refém da burocracia dos papéis e registra significativa alteração na clientela: a quantidade não tem a proporção da rentabilidade. “Temos número maior de clientes, mas como o mercado é muito competitivo, os valores envolvidos por empresa são menores que antes” — explica.

Dorival e Maria do Rosário têm em comum também a defesa da estabilidade econômica, mesmo sob o peso da perda de horas de descanso. É comum trabalharem em final de semana, em casa ou nos escritórios.

Entre o empresário Paulo Roberto de Francisco, diretor e professor do Singular, uma das mais conceituadas escolas do Grande ABC, e o advogado Luiz Antonio Lepori, diretor de escritório especializado em causas comerciais, sobretudo no segmento imobiliário, não existe maiores diferenças sobre os efeitos da globalização e do Plano Real. Paulo de Francisco encara a maior competitividade com sorriso de quem enxerga a estabilidade como recompensa e de quem interpreta a não-qualidade na prestação de serviços como sentença de morte para quem despreza a eficiência. Ele diz que prefere conquistar o prêmio de quem investe em recursos humanos, em planejamento estratégico, entre outros quesitos que a administração moderna exige. “Está mais fácil dirigir uma organização porque agora se tem números sólidos, concretos, não abstrações como antes” — afirma Paulo de Francisco.

Luiz Antonio Lepori diz a mesma coisa com outras palavras: “A realidade sem distorções inflacionárias nos levou a racionalizar o trabalho, a desprezar determinadas atividades cujos custos-benefícios não compensavam, como processos que nos tomavam tempo demais no caótico trânsito da Grande São Paulo. E temos vivido exemplos claros de que os clientes estão muito mais atentos à performance da empresa contratada para a prestação de serviços, o que por si só elimina da competição quem não tem conhecimento da atividade” — completa.

Mais trabalho e menos descanso poderiam formar coquetel de lamúrias, mas os Escravos do Real tiram de letra a dura realidade imposta pelo mercado. Já se foi o tempo em que férias significavam 30 dias absolutamente distantes do front. Essa mudança torna os primeiros meses do ano, antes consagradores da máxima de que no Brasil o ano só se iniciava após o Carnaval, numa mistura de lazer controlado e muita transpiração. Algo que deveria interessar particularmente aos profissionais do mercado publicitário e às empresas de comunicação, maiores vítimas da retração dos negócios no período.

O Brasil inflacionário que era um convite ao ócio entre o Natal e o Carnaval, porque o mercado financeiro garantia ganhos muitas vezes ilusórios, cedeu lugar ao Brasil de um dígito de inflação e de consequentes prioridades econômicas.

Nenhum entre os Escravos do Real foge do ritual de mais trabalho e menos descanso. Eles estão no mesmo passo, como se tivessem treinado em conjunto.

Estão no ritmo da salsa e do merengue econômico. Maria do Rosário quando muito vai eventualmente ao sítio do pai, em Socorro, Interior do Estado. Mas muito de vez em quando. Um churrasquinho em família retempera as forças. Paulo Roberto de Francisco praticamente desistiu de Ilhabela. Costumava ir às sextas e voltar na segunda. “Hoje, nem pensar, porque a distância é longa” — diz, sem, aparentemente, incomodar-se com outra característica do lugar, os terríveis borrachudos. Paulo de Francisco reveza, quando pode, rápidas incursões pelo Guarujá, pela chácara em Itu e pelo Rio de Janeiro de balas perdidas, mas de belezas naturais, preferencialmente as de curvas bem feitas, que o seduzem.

Silvio Pina também tem ido muito pouco a Ubatuba e Guarujá, suas praias preferidas. Passa três meses sem respirar o ar da Baixada Paulista e lamenta por isso. Afinal, velejar, que é seu passatempo preferido nas águas de Ubatuba, está virando recordação diante do volume de atividades profissionais que também incluem efetiva participação no Fórum da Cidadania do Grande ABC, onde ocupa a complexa Coordenadoria de Meio Ambiente, sempre às voltas com a Lei de Proteção dos Mananciais.

Nos últimos dois anos, Silvio Pina esteve uma vez na Europa. Foram 22 dias em Barcelona, na Espanha. O passeio, em realidade, foi uma desculpa para enriquecer conhecimentos, ao participar de congresso sobre planejamento integrado, assunto obrigatório para quem quer mudar a face divisionista e individualista de um Grande ABC recortado em sete partes que só agora dão sinais de entendimento.

O advogado Luiz Antonio Lepori recusa-se a trabalhar em fim de semana. Até mesmo para recuperar-se dos cinco dias úteis e cansativos. Faz da chácara em Itupeva, no Interior paulista, rotina saudável entrecortada apenas por atividades sociais na região, entre as quais a paixão pelo EC Santo André, do qual é presidente do Conselho Deliberativo, e pelo Pé na Bola, tradicional competição de futebol do Clube Atlético Aramaçan. Sofre no dia-a-dia com a ausência das filhas estudantes, uma no Rio de Janeiro, outra em Barcelona. A do Rio passa os finais de semana na região e a de Barcelona vive de telefonemas.

Paulo Hoffman não tem filhos mas muitos parentes e amigos, com quem passa os finais de semana. Ele também detesta trabalhar aos sábados e domingos. Gosta mesmo é de jogar tênis, duas vezes por semana. Viagens longas, nem pensar. A última escapada foi para a Argentina, num final de semana prolongado de quatro dias, alternativa de lazer que está virando mania na classe média que já deu adeus a períodos mais prolongados de recesso. Tempos em que eventuais descaminhos gerenciais do negócio geralmente eram amenizados pelos ganhos do mercado financeiro e pela baixa competitividade do mercado.

Adriano Calhau não joga tênis durante a semana. Prefere ocupar-se toda quarta-feira com futebol soçaite, perto da agência de publicidade que dirige. Joga com funcionários e clientes, sempre com acompanhamento de cervejas e petiscos. Também aprecia o jogging para manter a forma aos 26 anos de idade. Já esteve muitos quilos fora do peso. Agora está enxuto como seus negócios. Nos últimos 32 meses de Plano Real conseguiu viajar 10 dias para conhecer Matchu Pichu, no Peru. Agora está pensando em programar caminhada pela Trilha dos Incas, também no Peru. Juqueí, praia disputadíssima do Litoral Norte, antes era rotina, agora exceção no calendário de descanso de final de semana.

Já Nilton Spíndola faz das areias brancas e das águas verdes ou azuis mas ultimamente muito poluídas da Enseada, no Guarujá, roteiro sistemático de fim de semana. “É ali que recupero energias físicas e, mais que isso, boto minha cabeça em ordem e planejo muita coisa que vou executar durante a semana” — diz o diretor-comercial da Rádio Emissora ABC. No Guarujá, ele até arrisca o preparo de camarões fritos e batidinhas de frutas, para consumir as horas com prazer.

Dorival Pereira, do Escritório Universo, ocupa-se mesmo do filho, um ciclista de competição que invariavelmente está correndo pelas ruas e estradas do Interior paulista nos finais de semana. Dorival o acompanha, levando-o e trazendo-o. Também as praias de Ubatuba viraram quase ficção no calendário de repouso. O trabalho e o filho o ocupam suficientemente.

Os Escravos do Real, os que mais perderam com o plano de estabilização porque sentiram no bolso o peso de aumentos de preços de serviços imunes à competição externa, sem contar o fim da bola de neve das aplicações financeiras, certamente têm em comum muito mais que a unânime constatação de que tudo é preferível à inflação.

Eles surpreendem quem os imagina amargos, irritados e agressivos porque reúnem em comum a motivá-los o que pode ser resumidamente definido como a melhor das terapias contra enxaquecas existenciais: a aventura de empreender sabendo que o controle das operações não está deformado pela ruptura das relações que o processo inflacionário descontrolado provoca e que, por isso mesmo, já não dependem tanto de elementos estranhos para o sucesso nos negócios.

Esses representantes regionais dos Escravos do Real são, ao mesmo tempo e paradoxalmente, vítimas e beneficiários do Senhorio da Estabilidade. Diferentes, portanto, dos festejados reis do Real, os 10% mais pobres do País, detentores de apenas 1,1% da renda nacional e para os quais o Plano Real foi exclusivamente positivo. Nada mais justo para quem observava impotente seu poder aquisitivo escapar-lhe entre os dedos, como areia. Os Escravos do Real sabem disso. Por isso trabalham muito e torcem outro tanto para que o plano deflagrado há 32 meses se consolide.



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