Economia

Novos empreendedores
desconhecem armadilhas

DANIEL LIMA - 10/11/1996

Uma notícia que vai encantar os sempre ufanistas regionais, afoitos em dizer e escrever que o Grande ABC é a sétima maravilha do mundo e não tem sofrido absolutamente nada com os novos tempos de abertura econômica, globalização e incentivos diversos para a criação de novos pólos industriais: a região está batendo recordes de interesse de novos empreendimentos em micros e pequenas empresas.


Agora vem o ângulo problemático da situação e que obscurece qualquer tentativa de se utilizar estatísticas nem sempre confiáveis como o sol da fertilidade econômica regional: na grande maioria dos casos de candidatos a novos empreendedores, prevalece a enxurrada de desempregados do setor industrial. Pior que isso: na quase totalidade eles não sabem conjugar o verbo empreender na primeira pessoa do presente.


O quadro estatístico de novos empreendimentos, para alguns cor-de-rosa porque sobressai a quantidade, é uma bomba relógio que vai explodir em forma de maior tensão social, porque ao carimbo de desempregado será acrescentado, na grande maioria dos casos, o de empreendedor fracassado.


Representantes da Regional Grande ABC do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa), não gostam da comparação de que a entidade lembra a Igreja Universal do Reino de Deus, em que os crentes ou candidatos a crentes procuram milagres. Acham a imagem muito forte. Pátio dos Milagres, outra variante para explicar o que o Sebrae desperta junto a candidatos a empreendedor, também é reprovada. Mas o consultor Antonio Palmieri, dono de currículo de mais de 10 mil adestramentos empresariais, não deixa por menos ao escolher um rótulo extra-religioso: o Sebrae é uma autêntica Nau de Náufragos.


Independente do rótulo, o que se tem no Grande ABC é um caldeirão socioeconômico cujas repercussões na qualidade de vida da comunidade não podem ser menosprezadas e já se fazem sentir. São Bernardo e Diadema figuram em segundo e terceiro lugares no ranking de homicídios na Grande São Paulo, atrás apenas de Embu.


É verdade que não existe diferença de conhecimento do negócio entre o empreendedor do Grande ABC e o empreendedor do restante do Estado de São Paulo. Um antigo apertador de parafuso de montadora do Grande ABC e um engenheiro aeroespacial de São José dos Campos são igualmente poucos capacitados para empreender, garante Palmieri: os dois modelos são enfaticamente despreparados para as armadilhas de transformar experiências profissionais em negócios.


Mas, como lembra Eduardo Giorfi, titular da Regional de Santo André, o microambiente do Grande ABC — forjado numa cultura de beligerância entre capital e trabalho e intensificado com o adensamento econômico e populacional muito mais pesado que grande parte dos Municípios do Estado — oferece desdobramentos psicossociais que recomendam estudos e pode engrossar o caldo de frustração dos fracassados.


O que está ocorrendo no Grande ABC provavelmente não é diferente do que se registra em outros pontos do País também atingidos pelo enxugamento das empresas motivado por aspectos conjunturais e estruturais, além da quebra da espiral inflacionária.


A febre por empreender marca uma característica do brasileiro comum: a ousadia. O drama todo é que ousadia, própria de um povo inquieto, criativo, não combina com imprevidência. E o brasileiro também é mestre nisso, argumenta outro consultor do Sebrae do Grande ABC, Claudio Dotto. Nisso, todos são iguais. A diferença é que o Grande ABC é uma região metropolitana de 2,5 milhões de habitantes e acentua uma tendência ao anonimato profissional e empreendedor que pode gerar subprodutos complexos quando não se alcança o sucesso, já que o massacre à auto-estima torna o comportamento individual potencialmente mais vulnerável.


Cláudio Barrios, coordenador de balcão, crédito e consultoria do Sebrae Grande ABC, sente no dia-a-dia a evolução do exército de pretendentes a empreendedor. Eles batem direto nos balcões da entidade. Muitos dão claros sinais de nervosismo. Outros se fazem acompanhar de mulher e filhos. O desemprego é característica comum entre eles, assim como o despreparo para administrar não uma profissão consolidada ao longo dos anos, mas um negócio onde aspectos operacionais e administrativos são tão complementares quanto indissociáveis. Um ferramenteiro qualificado sem noções de administração de fluxo de caixa, só para citar um exemplo comum, é candidatíssimo à desolação. Tanto quanto um analista financeiro que se mete a montar uma manufatura.


Por isso que Cláudio Barrios orienta boa parte dos interessados em virar empreendedor a fazer estágio como autônomos, “até sentir se o negócio vai dar certo ou não”– recomenda o executivo do Sebrae.


Virar autônomo pode não resolver os problemas de embasamento técnico mínimo em várias atividades relacionadas com o ato de empreendedor, mas pelo menos reduz o impacto da carga tributária, recolhendo-se apenas o ISS (Imposto Sobre Serviços) e o carnê do INSS.


O Sebrae realiza duas palestras semanais, com média de 200 participantes/mês, para orientar os pretendentes a abrir negócio próprio. São palestras gratuitas que colocam o candidato em contato com a realidade formal da abertura de um negócio. Depois, os candidatos que mantiverem o sonho de virar homens de negócio são encaminhados a escritórios de contabilidade cadastrados pelo Sebrae.


Antonio Palmieri, conhecido pela implacabilidade de conceitos, como o de que empreender é um jogo de vida ou morte, conhece de cor e salteado esses candidatos a negócios. Já atendeu casos estranhos. Como o de um pretendente a abrir uma de seis alternativas de negócios que dizia ter nos planos, como se fosse possível encontrar alguém com tamanha habilidade múltipla. Sarcástico, quase lhe recomendou que abrisse outra opção, a de desempregado: “Quem tem seis variantes de negócios é porque não tem nenhuma e certamente vai engrossar a lista de desempregados” — afirma.


O Sebrae tem números históricos que lhe conferem enorme capacidade de dinamitar as estatísticas que garantem que 90% dos empreendimentos fracassam nos dois primeiros anos. Eduardo Giorfi ressalta que, com a assessoria do Sebrae, cuja tecnologia de informação envolve bateria de programas, a mortalidade cai para menos de 30%.


Como são poucas as pequenas e microempresas que seguem integralmente o receituário do Sebrae, exatamente porque chafurdam no cotidiano de apagar pequenos incêndios e consideram, na maioria dos casos, que basta uma simples palestra para entender-se apto ao sucesso, a taxa de desaparecimento é mesmo elevada. “Entre os não-atendidos pelo Sebrae, o número de baixas é superior a 90%, porque muitos fecham as portas e simplesmente deixam de dar baixa na Junta Comercial, porque ou não têm tempo ou dinheiro para isso” – explica o também prático Antonio Palmieri.


O que a quase totalidade de candidatos a empreendedor não percebeu é que desde a abertura econômica do presidente Collor de Mello e também da estabilidade monetária do Plano Real, ficou mais difícil contabilizar mais com mais em novos negócios. A competitividade está alcançando níveis insuportáveis para quem não desenvolver qualificação abrangente. Não interessa saber tudo de uma pequena parte do negócio. É preciso ir mais fundo e conhecer toda a engrenagem, explica Palmieri. “Como esperar bom desempenho de empreendedores que não sabem fazer preço de venda, não conhecem o potencial de mercado de seu produto ou serviço, ou desconhecem a necessidade de constituir uma estratégia como ponto forte do negócio”? – pergunta Palmieri.


Um balanço do Sebrae Grande ABC dos oito primeiros meses de 1996 dá bem a idéia do quanto anda efervescente o mercado de novas empresas na região. Ou como anda o grau de preocupação dos candidatos ou mesmo empreendedores já estabelecidos. O balcão do Sebrae registra 24.590 consultas no período, ou 15% de acréscimo sobre o mesmo período do ano passado, também crítico em matéria de desemprego e que atingiu 21.334 consultas.


Do total parcial deste ano, 2.356 estão relacionadas à legalização de empresa, 6.636 de procura por financiamento, 2.337 de treinamento nas áreas administrativa, financeira, marketing e comercial, 1.220 de assessoria tributária, com abertura ou legalização de empresa existente, impostos e taxas, 1.433 de compras de guias práticos, espécie de livretos que ajudam o empresário a abrir um negócio, 4.618 relativas a projetos como feiras e missões comerciais, 4.618 do Ligue-licitação e 5.990 dos chamados outros atendimentos, que abordam assuntos como cooperativa, franchising, assessoria jurídica, comércio exterior, entre outros.


O domínio de pessoas físicas desempregadas nessa estatística, segundo Cláudio Barrios, expõe o lado nada pomposo do Grande ABC, porque revela a busca por respostas econômicas. Daí a expressão Nau de Náufragos, de Antonio Palmieri, servir como luva. Em agosto, para se ter idéia mais precisa da situação, nada menos que 834 das 1.089 consultas no balcão do Sebrae foram formuladas por pessoas físicas. Isto quer dizer que de cada 20 pessoas que entram no Sebrae, 15 são ex-empregados ou, em menor grau, empregados que sabem que estão com os dias contados — algo que não é nada difícil de detectar no dia-a-dia de uma empresa.


Aumentar a produtividade de quem procura o Sebrae, de modo a que não só haja participação mais efetiva num número maior de programas sistêmicos ao desenvolvimento do negócio, mas também que as consultorias tenham a consistência da continuidade, é um desafio para Eduardo Giorfi, titular da entidade no Grande ABC. Ele pensa até num esquema de descontos progressivos dos preços já subsidiados, para transformar em participante assíduo das diversas consultorias que integram o cardápio de atendimento o empreendedor que ouve palestra própria para os principiantes.


Os dados do Sebrae que constatam a falta de vocação dos candidatos a empreendedor e, mais que isso, a não-continuidade do processo de aprender a empreender, tornam-se mais preocupantes diante da informação de Eduardo Giorfi sobre o perfil das empresas atendidas nas áreas mais nobres da entidade, as consultorias: “A quase totalidade é de empresas já consolidadas, com razoável capacidade administrativo-financeira. Infelizmente, os microempreendedores, aqueles mais modestos, não participam em níveis elevados dessas transformações” – garante.


Para Antonio Palmieri, a explicação é simples: o brasileiro é péssimo empreendedor. “Ele administra a empresa com o talão de cheque na mão, confundindo contas do negócio com as de casa” — resume. O consultor pergunta o que se pode fazer diante de empreendedores que mergulham no operacional e se perdem no planejamento, característica do brasileiro: “Quem fica preocupado demais com o dia-a-dia acaba se perdendo na estratégia. É o mesmo que um capitão de navio que resolve trocar seu posto privilegiado pelo remo desnecessário”– compara.


Aos pretendentes a empreendedores e aos empreendedores o Sebrae não promete milagre. São comuns os casos de empresários participarem do mesmo programa de treinamento e apresentarem resultados completamente diferentes. Palmieri lembra de casos assim e afirma que o diferencial está no que chama de primeiro mandamento para quem quer alcançar sucesso na vida: paixão pelo que faz. Cita até um exemplo de dois empreendedores amigos, atuantes no mesmo ramo de negócio e que foram treinados no mesmo período por ele. Os resultados díspares mostraram que o de melhor performance tinha grau de percepção para o negócio inexistente no outro.


Cláudio Dotto, consultor com dois anos e meio de atuação no Grande ABC, relata uma experiência pessoal de pós-consultoria, algo que o Sebrae ainda não implantou oficialmente. Ele resolveu, depois de um ano, manter contato com oito dos empreendedores que passaram por seus ensinamentos. Dois apresentaram resultados mais expressivos porque se aprofundaram nas tarefas recomendadas. Um dos quais, conta Cláudio, uma senhora japonesa de Ribeirão Pires, que resolveu seguir à risca a orientação de aproximar-se mais de seu público-alvo e elevou em 1.000% as receitas no período.


Os consultores do Sebrae contam essas experiências como mensagem explícita aos concorrentes à aventura de empreender. É preciso muita atenção, conhecimento e preparo para fugir da fatídica marca de obituário empresarial brasileiro. “O que não podemos é jogar a toalha porque o quadro é complicado” — afirma Eduardo Giorgi, numa linguagem típica de pugilismo e que significa entregar os pontos. “Na realidade, realizamos um trabalho de catequese, em que contam empenho e dedicação a uma causa que tem reflexos no comportamento da sociedade. O empreendedor de insucesso que já veio da situação de desemprego acaba duplicando as dificuldades de se colocar no mercado de trabalho, porque poucos apostam em quem se apresenta com um currículo nestas condições” — afirma Palmieri.


Uma perspectiva nada saudável para o equilíbrio sócio-econômico de uma região que até há alguns anos vivia sob o signo da prosperidade e na qual bastava plantar o sonho de negócio próprio que os resultados aconteciam.


Sobre isso, Palmieri lembra que a cadeia de dificuldades não se limita ao gerenciamento e operacionalização do novo empreendimento, do ponto de vista estritamente organizacional. É preciso estar preparado para enfrentar a concorrência cada vez mais atenta. Uma concorrência que não tem tamanho em quantidade e qualidade. E também um consumidor ou usuário que ainda coloca o preço em segundo plano, logo atrás de atendimento.


Os bichos-papões dos grandes empreendedores são os mais vorazes, porque têm escala, marketing, produtividade e outras armas de sedução. Os pequenos espertos escolhem seus nichos de mercado. A especialização é uma saída. “Uma locadora de vídeo que ganha a vizinhança indesejável de uma rede de locadoras badalada e glamorosa pode muito bem preservar seu espaço comercial se, por exemplo, dedicar-se a um produto que a nova concorrente descarta em seu mix de atendimento: as fitas pornográficas” — exemplifica o consultor.


Cláudio Barrios chama atenção para a tendência de massificação de concorrentes dos mesmos produtos e serviços. Representações comerciais estão dominando o cenário. São empreendedores que dispõem de recursos financeiros limitados e acabam abrindo empresa em seu próprio domicílio. Basta uma escrivaninha e linha telefônica para vender produtos de informática, higiene pessoal, beleza, coisas assim. Modismos são comuns, como representações de empresas distribuidoras de água mineral.


É contra essas marés empresariais que Antonio Palmieri alerta. A capacidade de absorção dos produtos pela sociedade se torna inviável. Canibaliza-se o mercado e todos sofrem.


Eduardo Giorfi recomenda também que os candidatos a empresário devem levar em conta a carga tributária elevada para o segmento de micros e pequenos e que, por isso mesmo, toda atenção é pouca. A informalidade é o caminho natural para quem não resiste aos tributos. “Mas não é somente o cipoal de impostos e taxas que inviabiliza um negócio, isso é importante que se diga. Trata-se de mais um elemento complicador para quem não está preparado para virar empresário” — afirma.


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