O que existe em comum entre a cantada metódica e impositiva da voz grave do indefectível animador de notas do Carnaval de São Paulo e a maioria das manchetes da imprensa da região envolvendo os prefeitos? Tudo a ver. O desfile interminável de “nooootaaa deeeezz”, dito com a extensão de quem -- além de cordas vocais apropriadas -- sabe o quanto vale cada milésimo de segundo que sai da garganta para efeitos emocionais, lembra sim muito a corrente pra frente de jornais e revistas da região. É um festival de badalação sem hora para terminar. O senso crítico é praticamente dizimado a cada nova edição, seja impressa, seja digital. Tanto quanto o comodismo dos jurados de Carnaval, fontes de subjetividades que se materializam naquela voz tonitruante do negro bom de emoção.
Tive o cuidado de dar sustentação empírica a essa analogia para não dizerem que estou a blasfemar contra os carnavalescos ou que discrimine a postura média das publicações da região.
Ao final de atentas avaliações, concluí que essas mesmas publicações devem conviver harmoniosamente com o entoador de notas na Capital. O som gutural não as coloca em situação incômoda. Muito pelo contrário: são parte do enredo em que a fantasia de que a Província vai bem sob a ótica dos mandachuvas e mandachuvinhas não pode ser contrariada.
Repetição de suposta perfeição
As escolas de samba de São Paulo que ouvem sem parar as condescendências com que os jurados definem notas transpostas às planilhas numa estonteante repetição de “nooootaaaa deeeezzzzz” não causam inveja nenhuma nesta Província. Aqui, diariamente, imperam situações semelhantes. Glorificam-se barulhentamente peripécias do jornalismo fechado com os poderosos de plantão.
Uma prova provada de que está quase tudo dominado verifica-se no tratamento privilegiado, quando não glorificador, das peripécias do prefeito Paulinho Serra e suas trapalhadas com o IPTU. Ofereceram-se tantas garantias de intocabilidade ao tucano que ele acreditou piamente. Faltou combinar com os contribuintes. Um potencial levante de gigantescas proporções quase pôs tudo a perder. Somente à última hora Paulinho Serra foi alertado sobre uma invasão história ao Paço Municipal, num domingo de revolta. Correu para revogar a estupidez. Mas a “nooootaaadeeeeezzzz” pareceu intocável entre quase todos os jurados do jornalismo regional.
Multiplicação de estragos
Houvesse o que chamo de cidadania regional, o Clube dos Prefeitos e a Agência de Desenvolvimento Econômico, sob o controle duplo de tucanos (Orlando Morando, prefeito de São Bernardo, e Paulinho Serra) já teriam sido escorraçados por incômoda e estridente insatisfação popular. Os estragos fariam concorrência ao IPTU.
Poderia mencionar mais de uma dezena de casos registrados nos últimos tempos de trapalhadas das administrações municipais na região. Os prefeitos venturosos vão continuar a torcer para que o jornalismo regional seja um eterno “noooootaaaaaaaadeeezzz” do narrador de emoções em São Paulo. Os jurados de Momo que distribuem no melhor estilo “me ame, por favor,” a “noooootaaaaadeeeezzz” ou a nota próxima do máximo, “nota noooovepontonoooove”, na passarela do samba na Capital ganham a forma de jornais e revista da região sem que tanto lá quanto cá apareçam numerosos críticos com bom senso, sensibilidade, inconformismo, seja lá o que for para proferir “um peralá companheiros, há algo de errado no front”.
Dados da perfeição
Para não dizerem que estou a ver fantasmas e que a comissão de frente de meus argumentos está esfarrapada, sem harmonia com os fatos e ostensivamente a produzir fantasias, tive o cuidado de examinar a planilha geral de notas de cada jurado às três escolas que desfilaram na avenida.
Queria constatar o que estou cansado de observar aleatoriamente todos os anos à frente da televisão. Teria sido enganado pelo magnetismo do narrador? Qual nada --- por mais que ele seja quase hipnotizador a cada nota que emite para uma plateia restrita de diretores das escolas participantes.
Das 468 notas dos jurados, contando-se inclusive os cortes (são quatro notas para cada quesito, das quais se descarta a avaliação mais baixa) nada menos que 91,46% se dividem entre “noootadeeezzz” e “nootaanoveepontoonoveee”. Mais precisamente: 77,56% foram avaliações máximas dos jurados e outros 13,89% optaram por um degrauzinho inferior. Somente as 40 notas restantes (8,54% do total) receberam notas inferiores àquelas duas.
Diferenças não existem?
Tudo isso significa que a quase totalidade dos jurados não enxerga diferenças que possam caracterizar desempenho personalizado de organizações coletivas --é disso que tratam as escolas de samba.
Vou tentar simplificar o enunciado: não entendo como alguém que se propõe a estabelecer valoração a cada companhia de carnaval que desfila na passarela a instale, praticamente sem distinção, como réplica perfeita ou quase perfeita das demais. Tanto que um terço das agremiações terminou a disputa gozando de virgindade ao somarem todos os pontos possíveis. Algumas, é verdade, nem tão virgens quanto outras, porque foram levemente defloradas nos raros descartes. Levemente é força de expressão. Em meio a tanta perfeição, segundo os jurados, o roçado tornou-se critério de desempate.
Na Província, jornais e revistas se derretem em elogios a administradores públicos. Pretendem transformar em paraíso um inferno de desilusões sociais a reboque da desafinação da bateria industrial. Exceto em casos nos quais a birra vale mais que a equidade de tratamento louvatório, as notas “deeeezzzzz” e as notas “nooooveeepontooonooooveee” são repetidas à exaustão.
Nota “zerrrrrrrrrroooooo”
Sorte dos organizadores paulistano que ainda não me descobriram como amante de música que, desde muito tempo, curte os acordes de Momo. Estivesse lá para julgar qualquer um dos oito quesitos que definem ganhadores e perdedores (e como é difícil definir ganhadores e perdedores diante de tanta gente com síndrome de perfeição) garanto que nenhum conjunto de notas faria concorrência. Nem mesmo o do único jurado da Capital que atribuiu apenas seis notas máximas em 13 possibilidades, mas, para não perder a doçura, tascou cinco notas quase máximas, ou seja, “noootaaanoooveeepooontooonoooveeee” -- para apaziguar a própria consciência dissidente.
Para os desfiles de projetos, programas e ações de gestores públicos municipais da região – e também para a apresentação do coletivismo do Clube dos Prefeitos – não tenho dúvida alguma de que reservaria notas que beirariam, quando não atingiriam um sonoro “zeeeeeeeerrooooooooooo”, sobretudo no campo de Desenvolvimento Econômico.
A exemplo da voz do narrador carnavalesco, minha pena também é grave.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)