Não consigo entender por que outro dia entrei para a Galeria dos Ramalhões do Santo André. Uma gentileza do presidente Jairo Livolis e diretoria a que, francamente, não me acho merecedor. Sem falsa modéstia, acreditem. Conheço pelo menos um ônibus de gente que ama mais o Santo André do que eu.
Além disso, sou jornalista e não fica bem ser recompensado por eventuais serviços prestados porque, no fundo, no fundo, são obrigações de quem pode colaborar, direta ou indiretamente. Exageraram com a homenagem na festa de aniversário do mês passado, mas o diploma está bem guardado em casa com outras preciosidades do clube com que o presidente Jairo Livolis me contemplou, como a faixa do Acesso à Série A do Campeonato Paulista do ano passado, conquistada no ano anterior.
Entretanto, por mais que ache que não deveria ter me juntado a Celso Daniel, Fausto Polesi e Antonio José Monte na Galeria dos Ramalhões, não tenho receio de dizer que, em outro campo, fiz mais do que eles três juntos, e nem deveria ser diferente, porque por mais de 10 anos fui editor de esportes do Diário do Grande ABC. Naquele tempo o futebol da região era bem melhor tratado na primeira página do jornal. Muito mais bem tratado. E também nas páginas internas, apesar de todo o esforço e qualidade da equipe atual.
Cansei de brigar com os responsáveis pela edição de primeira página para enfiar uma chamada e uma foto do Santo André. Também o Aliança de São Bernardo, e depois o próprio São Bernardo, e o Saad de São Caetano eram motivos de preocupação de nossa equipe, embora não tivessem o mesmo apelo popular.
Lutar por um espaço de primeira página tinha vários significados que, sabíamos, estabeleceriam correlações de forças no conjunto de redação, um arquipélago de interesses desconectados de qualquer sistematização editorial. Era cada um por si e Deus para todos. Quando não o Diabo. Havia tanto separatismo interno na redação — e continua a haver hoje, não só no Diário, mas nos demais jornais também — que os profissionais de áreas distintas mal se conheciam. Qualquer dia desses escrevo sobre a Olimpíada Diário que realizamos durante dois anos e que derrubou os muros entre as editorias e entre os setores da empresa.
Colocar uma chamada regional na primeira página tinha sabor especial porque a Editoria de Esportes sentia-se valorizada em meio a um geralmente comando de redação sem intimidade com o regionalismo que já defendíamos. Sim, o comando operacional da redação do Diário durante o largo período em que lá trabalhei era entregue a gente que de Grande ABC conhecia muito pouco. Aventureiros beneficiados pelo Complexo de Gata Borralheira chegavam e saíam ao sabor dos contratempos geralmente dolorosos. Para esses alienígenas, os valores culturais e esportivos da região pouco valiam.
Junte-se ao desconhecimento regional a sempre discriminação à Editoria de Esportes, um preconceito que se mantém até hoje em todas as redações, e se tem o caldo de cultura de uma revolta latente entre os profissionais da área. Portanto, como se observa, havia duas pontes a serem vencidas, a primeira de cunho conceitual de edição da primeira página e a segunda de valor temático, de subordinação da Editoria de Esportes. Por isso, não foram poucos os embates que tivemos.
Montamos a melhor equipe de jornalismo esportivo que o jornal já contou, com Donizeti Raddi, Luiz Carlos Sperândio, Edélcio Cândido, Divanei Guazzelli, Milton Alves, Lola Nicolás, Luiz Silva e Saulo Leite. Acompanhávamos todas as principais equipes da região, em todas as modalidades. Os times profissionais eram vasculhados diariamente, com deslocamento aos treinos. No final de semana cobriam-se todos os jogos dos campeonatos. Os Jogos Abertos eram uma tradição introduzida pelos nossos antecessores, Salvador Silva e Luiz Romão Zanella, que jamais foi minimamente subestimada.
Trabalhávamos todos demais no Diário do Grande ABC. Amávamos o que fazíamos. Abandonávamos nossas famílias para levar a emoção do esporte às páginas do jornal. Jamais esquecerei da noite em que o Santo André conseguiu o primeiro acesso à Primeira Divisão paulista, em 1981, depois de várias tentativas. Foram três jogos sequenciais no Parque Antártica contra o XV de Piracicaba.
Sem as facilidades de computador, fax ou celular, nos virávamos com os orelhões. Transmiti o texto da avenida defronte ao Parque Antártica. Do outro lado da linha, sacrificado na empreitada, Donizeti Raddi, aparelho ao ouvido, datilografava a narrativa.
Para o leigo, a operação de passar por telefone um texto redigido oralmente pode parecer pouco relevante, mas não era e ainda hoje poucos são capazes de empreender, até porque os laptops dispensam essa especialidade. Resolvemos introduzir esse modelo de transmissão de matéria porque era um saco o trabalho redobrado de, encerrado um jogo no Interior, o repórter pegar um orelhão e repassar simplesmente as informações cruas, para o texto final de quem estava na redação.
Perdiam-se a autenticidade e a sensibilidade de quem esteve no local, acompanhando todos os lances do jogo. Partiu de mim a experiência. Deu certo. Tanto que toda a equipe passou a adotá-la. Ganhamos tempo e enobrecemos as informações.
A integração dos fotógrafos nos trabalhos da equipe de esportes do Diário do Grande ABC era emocionante também. João Colovatti e Ricardo Hernandez, no comando dos sempre muito bem qualificados profissionais dessa área do jornal, amavam as coberturas esportivas. Entregavam-se de verdade às jornadas. Chegavam ao ponto de vestirem a camisa das equipes. Colovatti, que se foi ainda outro dia deste mundo, era Santo André de carteirinha. Ricardo Hernandez, aliancista.
Cada viagem ao Interior era uma festa. Os Fuscas tremiam nas Anhangueras da vida. Saíamos domingo de manhã e chegávamos em casa no domingo à noite, quando o Fantástico estava terminando. Almoçávamos barulhentamente. O dinheiro era contadinho, mas dava muito bem para um almoço de primeira.
Lembro-me de um jogo do Santo André em Taubaté, quando, em resposta a uma conta salgadíssima de uma cantina que parecia ser o reduto dos ricos locais, fui até o toalete e cometi uma grandessíssima bobagem da qual me arrependo até hoje, pela covardia e pelo prejuízo. Tinha lá meus 24, 25 anos à época e, inconformado com o valor da nota, quebrei um espelho de cristal que dava um ar de certo luxo ao reduto dos necessitados biologicamente. Desconfio de que os sete anos que se seguiram não foram dos melhores da minha vida.
Quebrar espelho de banheiro pode ter sido uma bobagem, como foi, mas resgatar um companheiro de um pronto-socorro transformou-se em ação mais que providencial. O jogo também foi realizado em Taubaté. Fomos em quatro num fusquinha sempre barulhento. Giuseppe Lo Russo decidiu ir de carona, porque não era da equipe de Esportes. Uma garrafa de cachaça ou duas, não sei, foi consumida em instantes na Via Dutra. É lógico que não bebi. Jamais bebi.
Tivemos que parar num posto de combustível na estrada para dar um banho no Giuseppe. Ele estava em pandarecos. Parecia desfalecer-se. Recolocamo-no no banco traseiro e seguimos em frente. Ele continuava pálido. Entramos em São José dos Campos e paramos no primeiro pronto-socorro que encontramos. Giuseppe foi tratado tão bem que meia hora depois estava pronto para ir embora. Antes, era preciso pagar a conta.
Imaginem pagar a conta de um imprevisto alcoólico com o dinheiro reservado para a alimentação da tropa formada por motorista, repórter, fotógrafo e um carona. Não me lembro bem, mas acho que era Ricardo Hernandez o fotógrafo escalado. O motorista era Zé Marques, que deu a sorte de casar mais tarde com uma morena muito bonita. O fato é que resolvemos que não pagaríamos um tostão pelo atendimento médico. Era o pronto-socorro ou o estômago. O que fizemos, então? Raptamos Giuseppe Lo Russo.
Foi uma operação digna dos melhores filmes de gangster. Rápida e eficiente. Fomos para o jogo em seguida. Fomos é força de expressão, porque Giuseppe estava tão debilitado que ficou no Fusca. Para encurtar a história, ele só melhorou de fato quando começou a falar coisa com coisa, quando estacionamos o veículo em São Paulo para jantar.
Por essas e por outras que, quando se debatia rapidamente o que cada editoria tinha a oferecer para a primeira página, lutávamos como leões para enfiar uma foto e uma chamada de destaque. Estavam em jogo a honra da editoria na disputa por espaço de relevância e a emulação para que novas jornadas domingueiras, longe da família cujos filhos cresciam sem nos darmos conta, não fossem um atestado de estupidez. Sabíamos o quanto o público aprecia a leitura do noticiário esportivo, o quanto debate as notas individuais dos jogadores, o quanto se interessa a partir da vitrine de primeira página.
O título que recebi do Santo André ainda outro dia, que me desculpe o presidente Jairo Livolis, não me entusiasmou tanto pelo que eventualmente faço hoje, que é muito pouco, quase nada para dizer a verdade. Vale mais pelo que comandei como editor de esportes do Diário do Grande ABC há uns pares do ano.
Meus dois primeiros filhos, André e Dannyella, foram tremendamente sacrificados pela minha paixão jornalística combinada com o entusiasmo de toda a equipe nas coberturas diárias e de finais de semana. Não os vi crescer, não os curti como pai. Mas, mesmo assim, valeu muito a pena, porque, com nossos companheiros de trabalho, ajudamos a construir uma regionalidade esportiva que poderia, nestes tempos, ser muito mais valorizada.
O problema é que continua a discriminação contra editorias de esportes nos jornais brasileiros e nem todos os editores têm personalidade aguerrida para enfrentar os falsos intelectuais que continuam a fechar os portões para um dos mais importantes elementos culturais de ramificação regional, com múltiplos efeitos sobre o conjunto da sociedade. Só mesmo quem jamais acompanhou essas nuances na zona de operação de uma redação não conseguiu entender o sentido das eventuais desavenças construtivas. Uma redação de qualidade não se faz com profissionais necessariamente bonzinhos. É preciso ter paixão e caráter, no mínimo.
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06/12/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (40)