Mário Polesi era visto apenas por alguns poucos da redação como irmão do dono, Fausto, instalado um andar acima. Eram os anos 70. A redação fervilhava no terceiro andar, como hoje. Era dimensionalmente menor. Não trabalhei diretamente com Mário Polesi. Atuava naqueles tempos como Editor de Esportes e ele como copidesque da chamada Geral, hoje Setecidades.
Os focas, os mais ou menos experientes e mesmo os mais calejados passavam pelo crivo da revisão ortográfica de Mario Polesi. Mal poderia imaginar aquele homem simples, de roupas despojadas, olhar sereno, que o extenso conhecimento da língua portuguesa que admiravelmente implementava para dar mais qualidade aos textos viria a se tornar peça de decoração em redações ditas modernas.
Mário Polesi era o costureiro oficial da Geral. Interferia nas matérias com habilidade de artesão. Pluralizava predicado descuidadamente no singular. Singularizava um complemento de frase desajeitadamente no plural. Substituía enunciados mal-elaborados, suprimia exageros, reordenava pensamentos, intercedia em nomes inadequadamente grafados. Os mais chegados o chamavam de pastor, pela serenidade da voz sempre confortante.
Embora tenha convivido no mesmo ambiente com Mário Polesi, conheci-o muito pouco. Confesso que me sentia lisonjeado com uma frase que ele repetia quando nos encontrávamos na chegada ao trabalho. “Como está, Camisa 10″, dizia o sempre afável Mário Polesi. Mais de uma década e meia depois, a convite de um de seus sobrinhos, Alexandre Polesi, então diretor de Redação deste jornal, escrevi durante bom tempo uma coluna esportiva e não resisti à tentação da vaidade ao optar pelo título “Camisa 10″.
Neste momento em que leio o anúncio de missa de sétimo dia de Mário Polesi, estampado na edição desta quarta-feira do Diário em que ele trabalhou com a discrição dos humildes, não consigo deixar de reverenciar a memória desse ourives de textos de principiantes afobados e de macacos velhos metidos a besta.
Mário Polesi faz muita falta ao jornalismo. O modelo de profissional meticuloso, preservador da língua pátria e da fidelidade dos personagens está em extinção nas redações, para desespero dos leitores. Depois que inventaram a sofisticação arrogante de computadores e softwares editoriais que prometem maravilhas, como se fosse possível consertar a debilidade orgânica do sistema de ensino nacional, depois dessa fase de modernidade, Mário Polesi e tantos outros hábeis em dominar a sintaxe se tornaram supérfluos.
Foram atropelados por espertalhões que vendem tecnologias com um agregado de aplicações jamais utilizáveis. Afinal, não se substituem mentes humanas sensíveis às variáveis culturais pelo calculismo frio de aparatos eletrônicos. Tratam os raros Mários Polesis de reconstruções de textos como dinossauros. Mal sabem que não há corretor ortográfico capaz de desativar armadilhas linguísticas. Que jamais vão conseguir desmentir que William Dib é prefeito de São Bernardo e não de Santo André. Que o sujeito da frase está distante demais do predicado. Que um excesso de vírgulas torna o texto enfadonho. Que gerúndios normalmente são abomináveis. Que possessivos podem ser expurgados. Que demonstrativos são um entojo. Que, enfim, invencionices da indústria tecnológica têm seu valor relativizado pela prática jornalística imune a sandices.
Enfim, que o absolutismo de máquinas insondáveis nos tempos de garimpo de Mário Polesi não pode ser glorificado acriticamente em nome de falsa santificação tecnológica.
Imagino como se sentiria Mário Polesi numa redação hoje em dia ao se dar conta de que em vez da copidescagem em papel, como naqueles tempos de máquinas de datilografia a provocar um inferno de sons, observasse a função simplificada numa tela de computador de acuidade imprecisa. Provavelmente ele perderia a fleugma de catequizador de bons relacionamentos. Sim, porque as redações de hoje são um antro da perdição ortográfica, onde as palavras estão sequestradas na retangularidade obtusa da tela de cristal líquido.
Há guetos de resistência, entretanto. Na revista Livre Mercado, onde estamos aplicando a Teoria da Produtividade Editorial, tudo passa pelo papel, matriz de observações que monitoram os autores a não repetirem os mesmos erros numa próxima matéria. Na redação do Diário, estamos lutando para liquidar com esse vício ultrajante à qualidade textual. Ainda outro dia expus a uma editora as vísceras de um texto supostamente perfeito que saltou da tela direto e impunemente para a página impressa do jornal. Submetido ao esquartejamento da copidescagem manual, no papel, registraram-se 20 inconformidades.
Como vou implantar neste Diário um novo sistema de correção de textos, não terei dúvidas em homenagear aquele velho companheiro de jornada. As funções de Mário Polesi precisam ser restauradas. Será a melhor maneira de homenagear quem cuidadosamente metralhou os desordeiros ortográficos.
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06/12/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (40)