Imprensa

O que está por trás da matança
de jovens noticiada pelo Diário?

DANIEL LIMA - 28/05/2018

O ombudsman não autorizado está de volta nesta segunda-feira atípica de um País atípico que não respeita os escravos das estradas. Vamos abordar a manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) do Diário do Grande ABC de hoje. Uma manchetíssima espetacular, embora o texto reúna buracos e também a falta de escancaramento de indignação. Ou seja, poderia ser um texto menos burocrático, sem ser panfletário.

Mas isso não importa tanto agora. Mais importante mesmo foi constatar a sensibilidade de o jornal alçar ao principal nível da vitrine editorial um assunto que retrata bem o estágio de democracia de araque deste País e, particularmente, a realidade sobretudo nas periferias da região: 92 jovens foram eliminados por forças policiais no ano passado, de um total de 301 assassinatos.

Noventa e dois de um total de 941 no Estado de São Paulo. Isso não pode ser considerado normal. De cada três homicídios na região, um contou com letalidade policial premiada, de acordo com a política de Segurança Pública de um governo estadual que faz qualquer coisa em nome das estatísticas mais tarde utilizadas em campanhas eleitorais.

Aves de rapina

Quando o ombudsman não autorizado resolve entrar em campo é sinal de que a sensibilidade está à flor da pele. Deixo os caminhoneiros de lado, embora tenha consumido tanta informação qualificada no final de semana que discorreria sobre o assunto com satisfação, porque informação metabolizada é para ser exposta. Regionalizo o temário de hoje porque não é possível encarar com naturalidade resultados tão dramáticos no campo criminal.

Sei que poderia tripudiar sobre o próprio Diário do Grande ABC que, ainda outro dia, em editorial, sem a coragem de nominar o alvo de uma crítica cínica, relacionou este jornalista a aves de mau agouro. Cometo o pecado persistente de tratar questões regionais com ceticismo fundamentado num passado longínquo então de esperança, como revela, por exemplo, a 17ª edição da história do melhor jornalismo regional do País, nesta publicação.

Respondi tangencialmente num texto sem conexão direta com aquele editorial que o drama regional não são as aves de mau agouro; longe disso, mas as aves de rapina. A reportagem de hoje do Diário do Grande ABC seria classificada pelo próprio jornal como exemplar de ave de mau agouro?

Lidar com a verdade dos fatos é uma dor dolorida, que machuca a alma de quem escreve, mas precisa ser exercida sempre. Senão jornalismo não teria razão de ser.

Política editorial

Benditas seriam todas as matérias do Diário do Grande ABC caso se dedicassem a escarafunchar, como no caso da manchetíssima de hoje, as aberrações sociais que fazem desta Província um campo de experimentos que agridem a cidadania e os Direitos Humanos.

Documentar em uma página inteira a guerra que culminou na morte de 92 jovens (na maioria dos casos) por forças policiais, e ouvir, como se ouviu, especialistas no assunto, são obrigações inalienáveis da mídia. Esse lado perverso do Estado combater a criminalidade não pode servir de respaldo ético e moral (e muito menos editorial) para justificar guinada à flacidez com que o então governador Mario Covas flertou com a barbárie da impunidade.  

O cavalo de pau empreendido pelo comando da Segurança Pública de São Paulo após o assassinato do prefeito Celso Daniel (já escrevi muito sobre isso) é um dos elementos que provam a origem de crime comum daquele caso, não as transgressões administrativas como os afoitos e os interesseiros idiotas tentaram impingir à opinião pública – e o conseguiram.

Dados comparativos

Faltaram dados comparativos mais explícitos na reportagem do Diário do Grande ABC, é verdade. Entretanto, diante da novidade de avançar o sinal na abordagem de um tema tão sensível, afastando-se do oba-oba ou do corriqueiro tratamento diplomático no campo da Segurança Pública, tudo pode ser relevado.

A proporção de mortes por forças policiais na região em relação ao Estado de São Paulo é muito mais inquietante quando a métrica cruza dados criminais e dados demográficos. Noventa e duas mortes de um total de 941 resulta em quase 10% -- exatamente 9,77%. A população da região não passa de 6% do Estado.

O desequilíbrio é evidente. Provavelmente menos pronunciado se forem contabilizadas apenas populações de regiões metropolitanas do Estado. Mas está claro que se matam principalmente jovens pobres pardos e pretos em quantidade alucinante. Tudo isso é substrato da debacle social. Fortemente nacional, claro, mas com digitais regionais indescartáveis.

Faltam mobilizações

Fosse o Diário do Grande ABC o que deveria ser, porque é diário e por isso mesmo teria poder de mobilização, tanto essa carnificina quanto outras temáticas igualmente importantes à qualidade de vida regional seriam objetos de agenda constante e incisiva que conduziria grande parte dos formadores de opinião a mobilizações restauradoras.

Pena que tanto essa manchetíssima de hoje quanto tantas outras notícias menos destacadas, mas igualmente extraordinárias no campo da cidadania, praticamente desaparecem no dia seguinte. A longevidade de eventual indignação é semelhante à vida útil de uma folha de papel- jornal – e, infelizmente, em muitos casos, têm o mesmo destino à falta de dinheiro para o uso de papel adequado.

Voltar aleatoriamente com o ombudsman não autorizado em plena segunda-feira de greve dos caminhoneiros é uma espécie de terapia que me impus para tentar sair da pauta nacional e chamar a atenção para a deterioração regional, bem como à importância de aproximação entre Governo, Mercado e Sociedade, tripé de composição do conceito de capital social que me levou a batizar esta publicação há quase duas décadas.

O jornal Diário do Grande ABC e os demais veículos de comunicação da região seriam muito mais respeitados pela sociedade se introduzissem e mantivessem políticas editoriais consolidadamente inconformistas, reformistas, indignadas. 

Combate à desigualdade

Surtos como a manchetíssima de hoje do Diário do Grande ABC infelizmente não são um grito de liberdade e tampouco de solidariedade, quando não de indignação. São peças soltas de um processo histórico de licença poética às avessas. Uma espécie de penitência ante o noticiário convencional e pouco comprometido com mudanças para valer que a publicação repassa em larga escala como refém de interesses dos mandachuvas e mandachuvinhas de plantão, em regra omissos no combate às desigualdades sociais.

Tanto é verdade que a matriz que poderia reduzir a carga de infortúnio, como reduziu no passado, é a atividade econômica, relegada a terceiro plano pelos extrativistas fiscais que se perpetuam nos paços municipais, mesmo com outros nomes e identidades partidárias.

Ou alguém seria capaz de dizer algo em contrário ante o avanço pantagruélico do prefeito Paulinho Serra, ainda recentemente, no caso do IPTU? E de tantos outros de seus parceiros regionais diante das fuças de uma imprensa que deveria ser perdigueira?   

Menos bajulações

O jornalismo da região precisa parar de bajular a elite sindical que contaminou especialmente São Bernardo com a Doença Holandesa Automotiva. É decisivo observar que temos um quadro social semelhante aos dos escravos das estradas, os quais não podem ser confundidos com elites de transportadores sob o guarda-chuva de sindicatos e patronatos sempre em conluio.

Somos uma sociedade desorganizada e, portanto, à mercê dos poderosos de plantão. Não se matam tantos jovens por acaso e em proporção cada vez mais avassaladora em relação aos policiais. Eram 10 policiais abatidos para um grupo de 75 civis em 2014. No ano passado foram 92 civis e quatro policiais. Esse jogo está muito desigual. Precisa empatar. Nada melhor que zero a zero.



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