Imprensa

Companhias de papel

DANIEL LIMA - 06/07/2007

Encontro a exuberância voluptuosa de Marilyn Monroe sem demora. A rebeldia de James Dean também. O palhaço Carequinha aparece num passe de mágica. Como os músculos de Burt Lancaster. O controverso Luiz Tortorello está a um esticar de braço. Poucos o superam em volume. Caso da globalização, da pobreza, do emprego em cada Município do Grande ABC, do emprego no Grande ABC como um todo, da indústria em cada um dos endereços locais e no conjunto, da balança de pagamentos, do sistema financeiro. As favelas na Capital e por aqui também estão ali, igualmente. Tony Blair, Margaret Thatcher, Marlon Brando, entre muitos, desfilam seu charme. As disputas entre Fiesp e Ciesp ali dormitam. O Congresso Nacional e seus escândalos também.


Encontro todas essas companhias quando subo alguns degraus em direção ao sótão. É ali que os reúno em 2.650 pastas suspensas, rigorosamente escaladas em ordem alfabética em combinação com a cronologia. O PIB do Brasil e o PIB do mundo saltam da obesidade de tantas folhas de jornal. O governo Lula da Silva também é nutridíssimo de informações, como a indecente carga tributária, a política industrial emperrada, a reforma política decepada, o mensalão esquecido, o FHC metido a besta.


Estou tão acostumado a alimentar meus arquivos com a leitura, a marcação e a distribuição das páginas para serem cuidadosamente resguardadas que não consigo imaginar a possibilidade de subestimá-las, deixando de acrescentar novos fatos e novos personagens na medida em que o mundo gira e a Luzitana roda.


Diariamente são perto de 40 páginas de jornais que resistem ao critério de não perecibilidade temporária ou definitiva, superam o obstáculo da escada móvel de madeira e se aninham nas pastas de papelão. Com isso, alimentam o estoque de conhecimentos e de testemunhais de acontecimentos. Os perecíveis vão inapelavelmente para o lixo. Há 12 anos coleciono as páginas cuidadosamente dobradas ao meio. Sem essas pastas acho que me sentiria órfão. Só as procuro quando é preciso encontrar fisicamente o que a memória deixou escapar, ou quando o assunto foge ao controle de conhecimentos mais apurados. Aí, as devasso. Separo meticulosamente tudo que me interessa.


Um exemplo: estou preparando matéria especial sobre segurança pública. É impossível guardar na cachola o que o sótão tem de sobra. Não há como não recorrer a todos aqueles companheiros de trabalho que me aguardam. Às vezes sinto que, à medida que subo a pequena escada de madeira e acendo as luzes daquele compartimento confortável de não mais que 20 metros quadrados, as pastas se movimentam como se houvesse disputa para as recolher. Todos gostariam de voltar ao presente, imaginando-se definitivamente entregues ao esquecimento. Mal sabem que estão ali exatamente porque não podem morrer.


Pensando bem, nem mesmo quando estou sozinho me sinto solitário, porque, apesar da carga diária de leitura que se acumula no escritório domiciliar, sempre carrego comigo a expectativa de dar um tapa na solidão ao vencer cada um daqueles degraus que me levam ao céu do conhecimento revisitado.


Talvez as companhias de papel que habitam o sótão, entre as quais todas aquelas que ainda vivem, como os centenários Oscar Niemeyer e Dercy Gonçalves, contem sempre com minha presença ali. Mas, confesso, às vezes passo semanas sem dar as caras, porque dois pisos abaixo estou lá, entretido com as leituras do cotidiano, com a novela das nove que não perco por dinheiro nenhum, com os jogos de futebol de todos os times pelos quais torço e de todos os times que faço tudo para secar.


Estou ensaiando a retomada de uma tarefa que realizei há quatro anos, quando decidi atualizar aquele arquivo de papel. À medida que me deparava com as aberrações da Imprensa, acabei por separar muita tranqueira informativa que se tornou matéria-prima de um dos livros que escrevi. “Meias Verdades” foi uma obra do acaso. Tenho medo de que, ao reatualizar as pastas, retirando páginas e páginas superadas pelo passado e sem serventia para o futuro, dê de cara outra vez com a obrigação de produzir uma nova versão de “Meias Verdades”. A Imprensa produz bobagem em profusão todos os dias, entre outros motivos, porque tem preguiça ou não consegue encontrar tempo para pesquisar o dia anterior.


Só espero que, independentemente do que venha a fazer, aquelas milhares de páginas que estão logo acima de meu quarto à espreita de meus sonhos não fiquem enciumadas quando descobrirem, se já não descobriram, que tudo que se refere a Celso Daniel foi levado até a área de leitura, próxima à copa, e me faz companhia diariamente. Por isso mesmo, remexo suas entranhas em busca de novos esclarecimentos por conta, entre outros fatores, de contradições, omissões, seletividades e outras deformidades.


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