A partir de amanhã (e até que o estoque de 36 edições se esgote) os leitores de CapitalSocial vão ter oportunidade tão especial quanto inédita. Vamos reproduzir integralmente um trabalho que realizamos no Diário do Grande ABC -- com repercussão em toda a comunidade regional. Pela primeira vez na história (a segunda ocorreu mais tarde, também com este jornalista) o veículo de imprensa mais tradicional da região contratou um profissional para analisar o que se passava em suas páginas. Traduzindo em termos menos diplomáticos: fui chamado para bater no jornal. Como o Ombudsman da Folha de S. Paulo é contratado para criticar a Folha de S. Paulo.
OmbudsmanDiário foi a newsletter que criei para destrinchar a qualidade do jornal. Uma tarefa que começou em 14 de junho de 2004 e se estendeu a 16 de junho, ou seja, produzi em média mais de uma edição por dia. Quatro dias depois, em 21 de julho, assumi a direção da Redação, que se estendeu até 20 de abril do ano seguinte.
Os textos que integram esta série foram consumidos apenas internamente naquele período. Ou seja: apenas a corporação formada por diretores, acionistas e funcionários do jornal teve acesso. É verdade que não faltaram vazamentos digitais. Não vivíamos a profusão e a riqueza de plataformas de comunicação destes tempos, mas a Internet estava viva e em crescimento.
Quase por acaso
Foi quase por acaso que encontrei essa preciosidade de regionalismo que tem como centro de atenção o Diário do Grande ABC. Estava escondida num canto do acervo digital da revista LivreMercado, a melhor publicação regional durante largo período dos quase 20 anos de circulação. Aliás, foi o sucesso de LivreMercado que determinou minha contratação pelo empresário Ronan Maria Pinto, que acabara de comprar a maioria das ações do jornal. Uma contratação surpreendente, porque no jornalismo regional minha relação com o Diário do Grande ABC sempre foi cáustica, inclusive quando ali estive.
Não vou matar a curiosidade dos leitores para falar nesta série sobre minhas relações profissionais com Ronan Maria Pinto. Faltaria espaço. O que posso antecipar é que sempre mantivemos respeito mútuo. Diretamente ele jamais invadiu autonomia durante o período em que atuei como ombudsman e diretor de redação – de junho de 2004 a abril de 2005. Se eventualmente o fez por outros caminhos, como alguns insinuavam, os resultados finais não foram alterados.
Sem Ronan, tudo perdido
Sobre a compra do jornal por Ronan Maria Pinto (que, mais tarde, seria objeto de investigações da operação Lava Jato), não tenho dúvida de que duas verdades poderiam ancorar longas abordagens. A primeira de que o Diário vivia fase decadente como produto e como empresa. A segunda de que não fosse Ronan Maria Pinto os leitores atuais não teriam a oportunidade de constatar o quanto o jornal se debilitou, porque certamente já teria transposto a linha que o tornaria referência de obituário jornalístico.
Ronan Maria Pinto salvou o Diário do Grande ABC de uma derrocada maior, mas não evitou que a publicação se tornasse produto bem abaixo do que já o era àquela oportunidade.
Seguindo o ritual
Antes que se lancem a caça às bruxas, e por mais que eventualmente a direção da empresa e do jornal falhassem seguidamente – o Diário do Grande ABC (e a revista LivreMercado, de vida própria) apenas seguiu o ritual dramático de uma região empobrecida e das novas tecnologias de informação. A Província do Grande ABC não comporta (por um conjunto de razões que já abordei e que não cabe nesse momento) uma publicação diária impressa que sequer resvale em qualidade, também decadente, dos grandes jornais brasileiros. Ronan Maria Pinto era o único comprador disponível do Diário do Grande ABC e o fez com entusiasmo. Talvez não seja mais o caso. Mas isso é outra história.
Para que os leitores tenham uma ideia do que significou a newsletter OmbudsmanDiário à corporação do Diário do Grande ABC (com reflexos extracampo), vou reproduzir alguns parágrafos do texto da primeira edição, que tratou da então muito pretendida, anunciada e glorificada Universidade Pública do Grande ABC – algo que se traduziria no ano seguinte na aprovação da Universidade Federal do Grande ABC. Acredito que mesmo alguns fragmentos serão esclarecedores:
O jornal tem apresentado cobertura errática sobre o perfil da Universidade Pública do Grande ABC. A reportagem publicada domingo (“Ministro da Educação defende universidade do Trabalhador”) mereceu manchete principal de primeira página, mas pareceu-me feita de afogadilho. O jornal demorou demais para acompanhar um assunto que é prioridade regional e quando o fez tentou impressionar com uma entrevista da enviada especial a Porto Alegre. Considerando-se que a jornalista em questão é de ponta, transpira a impressão de que correu mais que as próprias pernas para dar conta de um recado que exige mais engenho. Na essência, o impacto positivo da exclusividade da entrevista com o ministro Tarso Genro não apresenta a contrapartida de novidade à altura. A chamada universidade tecnológica está entre as três alternativas não excludentes apresentadas pelo próprio ministro durante o encontro com o Exército de Brancaleone do Grande ABC, há quase um mês em Brasília. Basta conferir o noticiário do jornal. O fato é que o ministro, que está à espera de resposta regional ao formato da universidade, a cargo de um grupo de iluminados escolhidos pelo Consórcio de Prefeitos, simplesmente não quis ferir a ética de relacionamento com os representantes locais.
Comparando tratamento
Para entender de forma mais abrangente e integrada os conceitos que me moviam como jornalista em defesa de um determinado modelo de universidade pública, no dia seguinte à edição de OmbudsmanDiário escrevi na ainda newsletter CapitalSocial Online sobre o assunto. O melhor é dizer que escrevi mais uma vez, porque o fazia permanentemente. Leiam alguns trechos sobre o assunto, repito, no dia seguinte às recomendações como OmbudsmanDiário, sob o título “Universidade é prova de Consórcio enclausurado”:
O segredo de Polichinelo que caracterizou a fase de composição do chamado grupo dos 16 que estará reunido nesta terça-feira para debater a formatação curricular da Universidade Federal do Grande ABC consolida o nocivo enclausuramento institucional do Consórcio de Prefeitos. É evidente que esse escopo não combina com o regime democrático. A prefeita de Ribeirão Pires, Maria Inês Soares, pouco habilitada a articulações intergovernamentais da própria administração pública para a qual foi eleita há quase oito anos, trata a questão como associação partidária e aceitação tácita de lobismos acadêmicos. Não é surpresa que a integração regional orquestrada por Celso Daniel principalmente no segundo mandato seja neste ano eleitoral não mais que estilhaços de personalismos envaidecidos. O problema maior é que justamente quando se apresenta a oportunidade de conferir a uma obra desnecessária, no caso a Universidade Pública, um mínimo de organicidade e utilidade, os meios se mostram tão frágeis. O que sairá desse primeiro encontro de amigos mais chegados do Consórcio de Prefeitos só Deus sabe. Será que representantes do grupo dos 16 vão conseguir o milagre reverso de transformar limonada em limão? Sim, porque é tão escancaradamente evidente o futuro da produção sobre o qual teríamos vantagens inegáveis — como é o caso do setor de transformação de plástico — que qualquer opção diferente conferiria à decisão o inverso da metáfora de tornar limão limonada. Não pensem os leitores que ao expor a proposta da indústria do plástico como prioridade das prioridades dos primeiros cursos da Universidade do Grande ABC estamos advogando em causa própria para ser coerentes. Somente imbecis juramentados seriam capazes de tamanha desfaçatez interpretativa. Basta dizer que aquela Reportagem de Capa decorre de pesquisa de campo realizada por consultoria especializada e contratada pelo Consórcio de Prefeitos e Câmara Regional. O contrato foi firmado há quatros anos exatamente para encaminhar um futuro industrial compatível com os desafios de exclusão social e empresarial desta região.
Modelo de jornalismo
O embate como o grupo partidário, sobretudo partidário e ideológico, que definiu o futuro da Universidade Federal do Grande ABC (essa inutilidade em termos regionais, porque divorciada do contexto econômico e social que nos aflige) serve como espécie de modelo do jornalismo que sugeria Diário do Grande ABC já nas primeiras edições de OmbudsmanDiário. E que foi reforçado ao assumir a direção de redação e ao criar uma nova ferramenta de comunicação, a newsletter Capital Digital Online, cujos conteúdos estão sendo transpostos a estas páginas, em capítulos, já há algumas semanas.
Aliás, sobre esse encavalamento, de OmbudsmanDiário e Capital Digital Online, cabe um esclarecimento e uma decisão. O esclarecimento é que ao lançar a série de textos de Capital Digital Online (“Nove meses de cinco anos que transformariam o Diário”) não tínhamos ideia de que contava com a relíquia de OmbudsmanDiário. Encontrado o tesouro, e para que não se misturem as bolas, vamos suspender novas edições de Capital Digital Online e só retomá-las após o encerramento desta nova série.
Já na edição desta terça-feira daremos sequência a esta nova série com a primeira edição de OmbudsmanDiário. Dizer que se trata de uma coletânea jornalística com fundamentação sociológica imprescindível à compreensão do que significa viver na região não é exagero algum. Acredito que o exemplo da Universidade Federal do Grande ABC abre alas ao entendimento do que teremos nas 36 edições que estão na fila de espera depois de praticamente uma década e meia de exposição corporativa. Muito mais importante que o fato de me ter tornado o primeiro (e único) ombudsman do Diário do Grande ABC, muito mais importante, aliás, é a constatação de que deixei um legado de 300 mil caracteres, suficientes para se transformar em livro de 200 páginas do mais legítimo regionalismo. Aguardem.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)