O Estadão se comportou com relativa parcimônia na cobertura do simpósio que promoveu no início da semana sobre a economia de São Bernardo – aquele evento do qual o prefeito Orlando Morando fez a abertura com ufanismo e em seguida se dirigiu à Prefeitura de Mauá para entregar viaturas de segurança pública em nome de uma regionalidade político-eleitoral como pano de fundo da candidatura de sua mulher, Carla Morando, como principal beneficiária. Resta saber se agora, com o calote de Mauá à Fundação do ABC, Orlando Morando vai repetir a dose.
Estou cumprindo a promessa de analisar o material do Estadão, publicado anteontem em três páginas editoriais de um caderno especial de quatro páginas – a última das quais com inserção de publicidade da Prefeitura de São Bernardo.
O que tinha tudo para se consumar como material editorial chapa branca não o foi de fato. Foi uma chapa amarela, por assim dizer, preocupada em não parecer cúmplice de um evento sem razão de ser no sentido de repercussão sistêmica, ou seja, de pontapé inicial a um movimento de reação institucional que se espera de São Bernardo e também da região, já que Orlando Morando também é presidente do mambembe Clube dos Prefeitos. Eventos desgarrados de planejamento territorial não passam de marketing reticente.
Só grandes investem
A matéria principal do suplemento do Estadão diz respeito à galinha dos ovos de ouro, também conhecida como Doença Holandesa e Síndrome de Estocolmo: a indústria automotiva. “Os investimentos estão voltando ao Grande ABC”. O texto prende-se à dinheirama que, principalmente, as montadoras estão investindo para atualização tecnológica a fim de enfrentar as dores da globalização cada vez maiores.
O que ninguém expressa publicamente porque não se pretende causar calafrios, ou porque há desconhecimento generalizado no setor público quando se trata do contraponto a investimentos inovadores, é que a redução do universo de trabalhadores do setor automotivo e de autopeças vai prosseguir, assim como a quebra da corrente de felicidade de privilégios repassados aos brasileiros que compram veículos.
A conversa de que tecnologia não provoca desemprego só é diálogo de adultos quando as localidades que sediam as empresas atualizadas para competir no mercado mundial contam com válvulas de escape de setores menos qualificados, mas ainda sensíveis a impulsos de crescimento.
A Província do Grande ABC está longe, mas muito longe disso. Aqui desemprego industrial é sinônimo de empobrecimento. Os demitidos são atirados às feras do empreendedorismo improvisado e geralmente autofágico. Nosso acervo está cansado de provar.
Não há dúvida de que é preferível, mil vezes preferível, que os investimentos das grandes empresas (é disso que tratou a reportagem do Estadão, até porque as pequenas e médias estão sem lenço nem documento) sejam efetivados mesmo à custa do emprego. A produtividade ganha o jogo que precisa ser ganho. Muito melhor do que simplesmente ver as grandes organizações industriais darem no pé. Mas daí a se festejar acriticamente os anúncios de recursos financeiros vai muita diferença.
Desempregados disfarçados
A página dois do suplemento especial do Estadão dedicado a São Bernardo é resultado de uma balela: “Avanço de São Bernardo passa por serviços”. Já mostramos, também, nesta revista digital, o quanto os serviços na região estão muito aquém da média industrial. A diferença salarial entre as duas atividades é gritante.
Os metalúrgicos das montadoras são bons em negociar salários e benefícios que não se sustentam em nenhum lugar do País. Qualquer contrariedade nas mesas de negociações é suficiente para botar a tropa na Anchieta. Além disso, ou principalmente, com os comitês de fábricas, as reações são mais discretas, embora muito mais ferinas. Também deve se considerar que não existe, em geral, agregado de valor na atividade de serviços.
Por isso mesmo, a avaliação do diretor da área de Análise Setorial e Inteligência de Mercado da consultoria Tendências, Adriano Pitoli, de que “a indústria tradicional tem capacidade de puxar a recuperação da região no curto prazo, mas cada vez mais vai ser importante pensar na diversificação do Município”, reveste-se de um alerta. Fossem estas páginas dotadas de dispositivos que registrassem esse conceito, teríamos uma barulheira infernal a cada registro do assunto.
Jusante e montante
São Bernardo e a região como um todo, embora menos acentuadamente, exceto São Caetano, vivem de ciclos automotivos cada vez mais graves na maré jusante e menos pronunciadamente positivos na maré montante. A concorrência nacional aperta o cerco com novos investimentos e custos trabalhistas muito menores.
Já se foi o tempo em que a região recebia de mão beijada investimentos industriais. Quando a classe política nacional descobriu o quanto o emprego pesa nas eleições e na qualidade de vida, correu para abrir o leque da guerra fiscal liberada pelos governos federal, estaduais e municipais. Não tínhamos e não temos como participar da festa porque as fábricas instaladas não poderiam ficar em desvantagens diante de eventuais novas plantas.
O diretor do Comitê de Fomento Industrial do Polo do Grande ABC (Cofip), Francisco Sérgio Ruiz, lembrou sobre a falta de integração entre os setores acadêmico, produtivo e público. Essa constatação já completou pelo menos duas décadas nestas páginas.
Mais que isso: o distanciamento entre os agentes das três esferas acentuou-se porque a institucionalidade regional entrou em parafuso após a morte do prefeito Celso Daniel.
Morando isolado
O prefeito Orlando Morando ganhou um pé de página da reportagem do Estadão. “Em seu discurso, Morando citou a alta carga tributária do País e ressaltou que, para atrair investimentos, São Bernardo é a única cidade da Região Metropolitana de São Paulo a dar desconto gradual no IPTU para empresas que geram novos empregos. A partir de 100 vagas, o desconto passa a valer e varia de 5% a 30%, dependendo da quantidade de vagas criadas”.
O pobre prefeito da Capital Econômica da região (pobre no sentido de eficiência no campo econômico, seu maior calcanhar de Aquiles), nem desconfia que não há mérito algum no que entende como exclusividade no chamamento de investimentos movido pelo abatimento no IPTU. Afinal, trata-se de algo sem força de sensibilização. Os valores envolvidos frente a investimentos e a outros quesitos dos negócios não são levados a sério por quem é do ramo de criar riquezas. Sobremodo em São Bernardo e na região tão violentada pelas desvantagens competitivas, inclusive no interior da Região Metropolitana.
Vizinhança mais forte
Basta observar quanto Osasco, Guarulhos e Barueri cresceram nos últimos anos, destronando a Província como segunda força econômica da área. Nada melhor, para esses municípios, do que contar com as vantagens do trecho Oeste de múltiplas conexões, enquanto na região a serpentina de asfalto é principalmente o melhor caminho para chegar ao Porto e às praias da Baixada Santista. O governador Geraldo Alckmin possivelmente jamais foi tão infeliz ao sintetizar a importância de uma obra. Ele disse alto e bom som que São Bernardo passou a ser “a melhor esquina do País”. E tem gente que ainda acredita nisso.
A terceira e última página do suplemento do Estadão elevou ao título principal “Em quatro anos, números de MEIs quase dobra”. O texto é ponderado porque não esquece de mostrar que, em larguíssima escala, os novos Microempreendedores individuais, e os anteriores, são filhos do desemprego estrutural na região, agravado pela recessão econômica sempre pior por estas bandas.
Fosse uma reportagem livre da chancela de parceria entre o jornal e a Prefeitura de Orlando Morando, o título da página três seguiria mais ou menos a seguinte linha: “MEIs são retratos do desemprego de uma cidade encurralada”. Acham que estou dramatizando? É melhor se informarem.
Uma matéria complementar da terceira página “Mais para Vale do Silício do que para Detroit”, para retratar a suposta existência de 70 startups e várias incubadores e laboratórios, comete duplo equívoco: jamais alguém ousou afirmar por estas bandas que o futuro da região seria uma Detroit estraçalhada principalmente porque a indústria automotiva, como aqui, procurou outros endereços nos Estados Unidos. E tampouco se pode levar a sério que a região tenha algum parentesco com o Vale do Silício. Nadinha de nada porque, tradicionalmente, os melhores talentos correm para a Capital, a Cinderela do conto de Gata Borralheira. Somos apenas uma incubadora desorganizada de talentos e de empresas.
Diário revelador
Para completar, além da publicidade de uma página da Prefeitura de São Bernardo, há um rodapé do Diário do Grande ABC que contempla algumas de suas páginas históricas. A primeira é da edição de lançamento do jornal News Seller, antecessor da publicação. As demais tratam de greves educacional e trabalhista, do enterro do corpo de Celso Daniel, da tragédia do Jardim Santo André que ganhou a mídia nacional e a última sobre imprudência ao volante que causou morte na Imigrantes.
Talvez a peça do Diário do Grande ABC tenha sido o espaço mais evidente, sem filtros, do que caracteriza a própria região, ou seja, um festival contínuo de infortúnios.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)