Imprensa

Borralheira paulistana

DANIEL LIMA - 04/04/2009

Há 30 anos, em maio de 1979, então editor de Esportes do Diário do Grande ABC, pai de André, cinco anos, e de Daniela, três anos, estava metido na última e patética greve dos jornalistas do Estado de São Paulo. Contrário ao movimento em todas as assembléias realizadas tanto na Redação do Diário quanto na Capital, juntei-me à maioria por fidelidade corporativa. Acabei demitido como toda a tropa grevista, depois de retorno enganosamente triunfal ao local de trabalho, em fila indiana. Foi o último gesto de rebeldia de um grupo de profissionais que, no fundo, no fundo, sabia as consequências da mobilização por aumento de salário surrupiado pelo regime militar e também pela tentativa de obter representação da classe nas decisões da redação. Ou seja: uma reivindicação capitalista combinada com uma empreitada socialista. Só poderia dar no que deu.

O Sindicato dos Jornalistas acaba de publicar uma edição especial sobre aqueles dias tempestuosos, com depoimentos de experientes profissionais da Capital.

Chego à conclusão que aquele acontecimento é uma exceção à regra de o Grande ABC olhar para a Capital com sentimento de Gata Borralheira. Os jornalistas da cinderelesca Capital capitularam diante da efervescência do movimento sindical em São Bernardo, então liderado pelo metalúrgico Lula da Silva, que, menos de dois anos antes, paralisara a linha de produção da Scania, num desafio ao governo militar.

As lideranças dos jornalistas paulistas que apostaram na greve acreditavam poder replicar os efeitos sociopolíticos e trabalhistas obtidos pelos metalúrgicos do Grande ABC. Entretanto, acabaram de fato por deflagrar longo processo de depauperação da classe que, nestes tempos de flexibilidade de interpretação da legislação profissional, de industrialização do diploma e de algazarra da Internet, está mergulhada na mais virulenta crise da história.

A maioria dos parágrafos dos articulistas convidados a discorrer sobre a greve dos jornalistas de 1979, recuperada pelo Sindicato, se reporta ao voluntarismo irresponsável das lideranças e da forçada de barra para aprovar a paralisação por induzida aclamação, depois de repudiada uma semana antes sob a cautela da racionalidade do voto secreto.

Entre a assembléia realizada na Igreja da Consolação e o encontro no Tuca, sete dias depois, prevaleceu a exacerbação do espírito classista. O farol do movimento fixou-se no que Lula aprontara e continuava a aprontar por estas plagas tão preconceituosamente castigada por quem está na Capital e tão apequenada pelos próprios moradores locais. O Complexo de Gata Borralheiro trocou de sinais.

Os rescaldos da greve de 1979 cristalizaram na própria categoria sentimento de caça às bruxas, separando-se nem sempre com convicção e provas os jornalistas chamados de autênticos daqueles considerados entreguistas. Felizmente, o tempo tratou de suprimir a discriminação que, em suma, se travestia de intolerância ao direito individual de optar entre o trabalho e o afastamento voluntário.

Não faltaram listas verdadeiras e falsas de uma relação suplementar à de jornalistas que enfrentaram o risco de afastar-se da redação e dos que não temeram sofrer represálias da classe ao se manterem no trabalho. Eram os jornalistas que fingiram aderir à greve, trabalhando em casa. Naquele tempo em que nem se imaginava as facilidades tecnológicas de agora, providenciaram-se máquinas datilográficas e motoristas para apanhar a encomenda.

Quarenta dias depois da demissão, estava de volta ao Diário do Grande ABC. Permaneci na Rua Catequese até dezembro de 1985, atingindo, nesse período, o grau máximo da hierarquia funcional sem jamais ter a pretensão, como outros coleguinhas, de ocupar o posto de diretor de Redação, então e durante muito tempo depois sob a titularidade de Fausto Polesi, um dos fundadores do jornal. Só duas décadas depois, agora sob novo controle acionário, voltei ao Diário do Grande ABC, como diretor de Redação. Foram nove meses tão reconfortantes quanto desgastantes. Mas isso é outra história.

Da greve de 1979 sobraram muitas lembranças e nenhum arrependimento. Faria tudo de novo se voltasse aos meus 28 anos de idade, dois filhos para criar, inquilino de meu sogro num fundo de fundo de um quintal num quarto e cozinha de 25 metros quadrados. Contava, como hoje e sempre, com uma sede louca de conhecimento. Devorava Placar, IstoÉ e Jornal da Tarde.


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