Imprensa

Resistindo a pressões

DANIEL LIMA - 11/05/2009

Em 19 anos à frente da linha editorial da revista LivreMercado (da criação e lançamento sem um tostão no bolso mas uma idéia na cabeça, até a cessão da marca no final do ano passado), sofri pressões de todos os tipos para levar o mercado imobiliário do Grande ABC à Reportagem de Capa. Resisti sempre por uma razão simples: era impossível, sob qualquer aspecto, o conjunto do setor se dar bem enquanto a região se desmanchava economicamente, atacada virulentamente no bem mais precioso da estrutura de mobilidade social — a indústria automotiva bombardeada pela abertura das fronteiras sem contrapartidas e a descentralização sob bases fratricidas da guerra fiscal.

A credibilidade da publicação estaria em risco. Por isso, sempre optamos por eventuais cases de empresas do setor, cujos resultados individuais correm em outra raia, de acordo com nichos escolhidos e gestão dos negócios. Reconhece-se, enfim, o valor corporativo no sentido mais amplo da expressão, do comando diretivo à eficiência prática. Não se toma a parte saudável pelo todo sob suspeição.

Coincidentemente, logo na primeira edição de Livre Mercado sob nova direção, de gente que não conhece o Grande ABC, o mercado imobiliário foi alçado à Reportagem de Capa com toda pompa e circunstância. Vivíamos março último, quando a atividade já estava no olho do furacão da crise econômica mundial e os indicadores setoriais já denunciavam complicações. Só não percebia a mudança de quadro quem não queria ou fazia questão de não querer.

A bem da verdade, a nova Livre Mercado (que não pode ser confundida com LivreMercado, porque agora está sob controle acionário e editorial do recuperador de tributos Walter Santos) incidiu em pecado recorrente em outras publicações, dirigidas por gente do ramo, ou supostamente do ramo.

Uma coleção de matérias das principais publicações nacionais sobre o andar da carruagem do mercado imobiliário nos últimos tempos revela o quanto custa a contrapartida acrítica de generosos anúncios publicitários. O casamento espúrio entre mercado imobiliário e jornalismo é apenas um dos ramais da fragilidade cada vez mais dilacerante que atinge a chamada imprensa de papel. No caso específico do mercado imobiliário, a linguagem jornalística padrão é a mesma captada no futebol — de torcida organizada nas arquibancadas e principalmente na mídia.

Ninguém está imune a contaminação, mas não se pode abrir as portas da confiabilidade absoluta em questões temáticas que, bem pesquisadas, podem sim ser acauteladas e relativizadas em análises jornalísticas. O problema, nesses casos, é quando acionistas que não sabem distinguir jornalismo de negócios mandam mais que o editor — e isso está cada vez mais presente na mídia em geral.

Ainda nestes tempos de rebuliços econômicos, jornais preferem contemporizar a crise latente do mercado imobiliário com a euforia de um possível mercado sustentado por recursos federais para as classes mais populares. Uma balela porque nas regiões metropolitanos os preços dos terrenos, sempre especulativos, são um freio à proposta governamental.  Nada mais contraditório, porque o que o governo federal quer de fato é melhorar a qualidade de vida dessas áreas densamente ocupadas.

Por isso, quando o Valor Econômico publica na edição de hoje informações sobre o setor, há dois indicativos claros e objetivos: a situação não está para peixe e muito provavelmente vamos ter complicações mais sérias no futuro, apesar de a legislação ter incorporado travas para evitar ou minimizar novos casos Encol.

O Valor Econômico desta segunda-feira é enfático na apresentação do quadro. Vejam os primeiros parágrafos da matéria sob o título “Construtoras renegociam aquisições de terrenos”:

  • Os donos de terrenos viveram dois anos áureos e completamente atípicos — entre 2006 e meados de 2008. A disputa era tanta que construtoras faziam leilões e, além de excelentes ofertas, não hesitavam em pagar os ativos em dinheiro. O tradicional pagamento em permuta foi temporariamente deixado de lado. O humor do mercado virou e, com ele, a disposição das empresas em honrar os contratos acertados nos tempos de euforia. Agora, construtoras e donos de terrenos sentam para renegociar. Pode ser em uma conversa amistosa ou nem tanto — já há casos na justiça ou perto de chegar lá. As empresas de capital aberto compraram, juntas, R$ 11,4 bilhões em terrenos, segundo dados dos balanços. Ainda falta pagar, no entanto, R$ 7,7 bilhões — entre dinheiro e permuta. Ou seja, as companhias têm um valor imenso a pagar em terrenos justamente quando falta dinheiro no caixa e a prioridade é a construção da obras em andamento. Por conta disso, há todo tipo de acerto em curso: desde propostas de postergação de pagamento, redução de valor, troca de pagamento em dinheiro por permuta ou simplesmente desistência da compra.

A cronologia da crise anunciada só foi desdenhada por quem de fato prefere observar o mundo dos negócios sob o prisma da ganância. Não enxergam o todo macroeconômico. A reportagem de Valor Econômico é didática neste sentido:

  • Quando fizeram a abertura de capital, as empresas do setor gastaram boa parte do dinheiro levantado na Bolsa de Valores para comprar terrenos. O importante era mostrar ao mercado — e de certa forma eram cobrados por isso — o seu potencial de crescimento medido pelo VGV (Valor Geral de Vendas). O Valor Geral de Vendas é uma medida específica do setor que considera o potencial construtivo de cada terreno, de acordo com o projeto que poderia ser erguido ali. As empresas medem o seu banco de terrenos em VGV e os números são vultosos. No caso da Cyrela, chega a R$ 27 bilhões, na Gafisa a R$ 17,8 bilhões e na Rossi, R$ 13,4 bilhões.

A reportagem segue:

  • O custo do crescimento desenfreado nos tempos de bonança agora pesa — e muito. Muitas empresas se endividaram para comprar terrenos. Segundo fonte do setor, no ano passado antes da crise, a oferta de linhas de crédito para financiar a aquisição de terrenos era farta — e vinha tanto dos grandes bancos como dos pequeno. Do endividamento total das companhias, o passivo com terrenos (R$ 7,7 bilhões) corresponde a 41%. É mais do que a dívida com debêntures, que soma 19% do total, dívida de capital de giro (21%) com Sistema Financeiro da Habitação, que corresponde a 17% e cambial, que responde por 2%.

Em mais de 200 Reportagens de Capa e milhares de outros trabalhos jornalísticos à frente de LivreMercado, acertamos muito mais que erramos. Geralmente erramos quando abrimos a guarda ao nos deixar levar pelos mais otimistas, em casos como o do Fórum da Cidadania do Grande ABC, movimento no qual apostamos no sucesso até que, sem medo de reconstruir os próprios passos, adotamos política de análise mais crítica porque a nova situação assim o exigia. Sei o quanto paguei por isso, até que, lá na frente, até me fizeram um homenagem pública — desnecessária, convenhamos, porque jornalista de verdade não se preocupa com isso, embora também não rejeite.

Encher a bola do mercado imobiliário do Grande ABC como um todo num contexto de esfacelamento econômico seria maluquice. Quadros comparativos do mercado imobiliário local e de outras áreas nacionais mostra que a quebra da mobilidade social e, mais que isso, a proletarização de larga parcela da classe média-média fizeram grandes estragos. Basta dizer que apartamentos do mesmo padrão construtivo em áreas socioeconômicas semelhantes em São Caetano (o mercado imobiliário mais valorizado da região) e Brasília, separam-se tanto pela distância geográfica como pelo valor monetário. É claro que Brasília ganha de goleada. Ou esqueceram que o Brasil é o País da burocracia, não da produção?


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