Imprensa

Noite de terror

DANIEL LIMA - 18/05/2009

Zapeio muito quando por algum motivo a programação de TV foge de minha programação. Explico: quando sento no sofá para gastar uma parte da minha noite com entretenimento televisivo, geralmente sei o que quero. Já me programei para a programação. Mas de vez em quando, principalmente quando excedo o limite de telespectador disciplinado que sou, mexo e remexo no controle remoto. Foi numa dessas últimas noites, zapeando aqui, zapeando ali, que dei de cara e de ouvido com uma frase contundente:

“Quem disse que existe crise?”.

Não acreditei no que ouvia. Fixei meus olhos na imagem e lá aparecia, todo encantado, todo remoçado, todo plastificado, todo sassaricando, um desses colunistas eletrônicos famosos, sonho de consumo dos colunistas sociais de jornais. Ele estava em festa, distribuía autógrafos aos convidados. O guia gastronômico de São Paulo, assinado por ele, o apresentador eletrônico, era o must da festa.

Insatisfeito com a própria frase, repetiu a ofensa com outras palavras:

“Quem acha que estamos em crise?”.

Foi demais. Tudo bem que cultuamos a liberdade de expressão, da qual não podemos abrir mão mesmo, mas a contrapartida da responsabilidade social não pode ser agredida. Ou pode?

Para os convidados do literato gastronômico, pode sim. O desfile de rostos envelhecidos não terminava. A maioria de anônimos para quem não frequenta as noites paulistanas. Nada contra rostos envelhecidos, nada contra o envelhecimento de partes ainda mais importantes do corpo, porque ninguém é de ferro e já passamos também dos 50. Tudo bem que a noite foi feita mesmo para soltar a franga do estresse do dia-a-dia cada vez mais angustiante nas regiões metropolitanas. Tudo bem, tudo bem. Mas não precisa ofender.

Será que o animador eletrônico versado em garfos e facas estava mandando recado especificamente para alguém ou simplesmente pensa assim, que pode tirar conclusões levando em conta o público que o badala, que o acolhe, que o chacoalha?

Acredite o leitor que não estou ficando ranzinza. Meu espírito continua jovem porque tenho dois filhos adolescentes que não me deixam cair na tentação da pré-terceira idade. Quem me conhece fora das lides editoriais, do cotidiano de uma Redação, que é minha trincheira, sabe o quanto gosto de uma brincadeira mais maliciosa, de umas tiradas sacanas, dessas coisas que mantêm o espírito sempre jovem.

Mas, calma lá: deboche não, sinceramente não.

Acompanhei por uns 15 minutos aquele programa noturno, de início da madrugada. Raramente acompanho programas semelhantes. Nem por curiosidade. Nem para ter o que escrever com base em testemunho pessoal. Talvez estivesse de mau humor. Pode ser. Mas que foi um desfile exótico, ah, isso foi. Um festival de botox em cada pedacinho de corpo pretensamente sarado, mas de fato surrado.

Eventuais telespectadores incautos deveriam ter sido advertidos. Faltaram legendas dos flagrantes. Não custava nada identificar os entrevistadores e os entrevistados. Sim, os entrevistadores, porque o apresentador-mor não apareceu em todas as tomadas. Até porque, estava premiando os convidados com autógrafos. As legendas evitariam que se imaginasse tratar-se de um palco teatral em que protagonistas e figurantes de plástico, de um carregamento intenso de plástico, ganharam vida porque falavam, porque sorriam, porque gesticulavam; afinal, porque viviam.

Sinceramente, esse tipo de festa de incluídos que salta nos aparelhos de televisão é de um verde-amarelismo degradante. Principalmente porque o anfitrião que é bom no negócio que faz, diga-se de passagem, não tem coração. Não que devesse tornar a festa um evento fúnebre. Nada disso. Mas também não precisava exagerar.

“Cadê a crise, onde está a crise? “– perguntou ele, outra vez.

Sabem onde está a crise? Querem um exemplo?

Deu no Diário do Grande ABC de domingo que 136 mil trabalhadores da região vivem sob o protecionismo precário do seguro-desemprego. Só faltou o jornal dar a dimensão da tragédia. Trata-se do equivalente à população de São Caetano.


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