Imprensa

Diploma de jornalismo

DANIEL LIMA - 19/06/2009

A propósito da decisão do Supremo Tribunal Federal que eliminou a exigência do diploma de curso superior em jornalismo para o exercício da profissão:

1) Escrever não é fácil.

2) Escrever jornalisticamente bem é muito menos fácil.

3) Escrever jornalisticamente bem e com talento é acentuadamente muito menos fácil.

4) Escrever muito bem e com talento jornalístico, além de não ser fácil, é muito pouco para que um profissional seja de fato respeitado e preencha todos os requisitos que poderiam ser sintetizados como ferramenta de transformação social.

Vou reproduzir abaixo um exemplo de que escrever formalmente bem e com talento não é fácil, por mais que se tenha experiência e dedicação:

Postei na edição de ontem deste blog, sob o título “Metamorfose econômica (20)” um texto que, mais tarde, corrigi. Havia um erro de concordância, algo natural entre a maioria dos jornalistas que, por uma razão e outra, não conta com alguém para copidescagem do texto. Copidescagem significa correção técnica e informativa. Técnica no caso de deslize gramatical. Informativa no caso de afirmar que João Avamileno foi prefeito de São Bernardo.

Quem escreve solitariamente deixa escapar equívocos. A síndrome da autoria é a melhor explicação. Dizemos, jornalistas, que ficamos viciados no que produzimos. Por mais que voltemos à leitura e façamos faxina, sempre há a possibilidade de sobrar alguma coisa.

Costumo dar um tempo para os textos. É uma espécie de decantação. Ocupo-me durante algum tempo de outras atividades afins, como o vasculhamento de sites favoritos, e, aí sim, retomo a leitura. Nem assim todos os eventuais tropeços são eliminados. Mas a operação é ótima. Há sempre o que aperfeiçoar de forma a tornar a informação ou a análise mais clara e compreensível. É claro que isso não vale para os iletrados nem para preguiçosos que só passam os olhos sobre os escritos. São fastfoodianos convictos. Eles pensam que armazenam conhecimento.

Como estava dizendo, no texto que postei ontem neste espaço escrevi o seguinte na abertura:

  • Quanto significaria de redução de custos em logística os produtos e serviços transportados na Região Metropolitana de São Paulo caso o Rodoanel Mário Covas já estivesse completamente construído?

Devo ter lido quatro ou cinco vezes essa frase, e as demais que se seguiram no artigo, e não consegui, por causa do que chamamos de vício de leitura, detectar um erro de concordância.

Em vez de “Quanto significaria”, o correto, já atualizado no texto, é “Quanto significariam”, porque estava me referindo a produtos e serviços, não à redução de custos.

Parece simples, elementar, mas, na correria de várias tarefas, a cabeça zunindo, uma gripe que chega para atazanar o dia-a-dia, acabou escapando. É possível que poucos tenham se dado conta disso, que passaram os olhos e não enxergaram a armadilha gramatical, mas, cabeça mais fria, concentração mais apurada, eis que, à noite, em casa, relendo o artigo em papel, peguei-me em flagrante delito.

Entretanto, se pretendesse preservar o verbete “significaria” no singular, não escorregaria no tomate da imprecisão caso construísse a frase de abertura daquele texto da seguinte forma:

  • Quanto significaria a redução de custos em logística dos produtos e serviços transportados na Região Metropolitana de São Paulo caso o Rodoanel Mário Covas já estivesse completamente construído?

Repararam que substitui “de redução de custos” por “a redução de custos” e “os produtos” por “dos produtos”?  Pois é assim que diariamente, ao me dedicar ao jornalismo, exercito a melhor maneira de me comunicar com os leitores. Esses macetes, se podem ser chamados de macetes, parecem simplificar uma ação continuamente prática de muitos anos quando, na verdade, é consequência direta da experiência acumulada. Quem não é do ramo ou quem é do ramo mas não está nem aí com o cheiro da brilhantina, sempre passará batido.

Para se comunicar com os leitores é preciso aliar informação, conhecimento, talento, dedicação, empenho, comprometimento, coragem, ética e outros requisitos que, sinceramente, por mais que empresas de comunicação estejam flertando com a prostituição ao defender a causa do STF, por mais que o rebaixamento intelectual da sociedade seja pronunciado, por mais que considere uma sacanagem com os estudantes a puxada de tapete do Judiciário, por mais que se crie ambiente de terrorismo com a decisão, não acredito que chegamos ao fundo do poço de massificar a idéia de considerar qualquer um, especialista ou não em qualquer atividade, efetivamente jornalista.

Se chegarmos ao ponto de encarar com naturalidade a substituição do talento pelo formalismo da escrita como sinônimo de jornalismo, é melhor mesmo fechar as portas para balanço. Muita gente que não é do ramo jornalístico invadiu as redações, fisicamente ou com artigos encomendados, e tomou empregos de quem realmente precisa. Poucos têm os requisitos mínimos de jornalista, embora sejam especialistas em alguma coisa. Eles simplesmente não sabem escrever jornalisticamente, mas pensam que sabem. Jornalistas competentes poderiam ser utilizados para traduzir os conhecimentos desses especialistas.  Há alguns nomes consagrados como Dráusio Varela que escrevem com rara competência, embora não sejam jornalistas. São exceções que confirmam a regra. O problema é que há quem pretenda transformar exceções em regra na defesa do fim do diploma.

A quebra do diploma de jornalismo é irresponsabilidade do Supremo Tribunal Federal. A maioria dos juízes de jornalismo não entende patavina. Os culpados principais são as lideranças de classe que, repetindo tantas outras lideranças de classe, só querem mesmo é se locupletar das vantagens corporativas. Perderam o contato com a realidade das redações. São tão incompetentes que o STF foi a campo para decidir pelo massacre de uma profissão sem ao menos se darem conta disso, sem se mobilizarem efetivamente. Agora choram o leite derramado.

Temos jornalistas muito competentes no Brasil quando a qualificação se restringe às atividades profissionais que exercem, inclusive com o condimento indispensável do talento e da vocação. Entretanto, a maioria não reúne sensibilidade alguma para questões da própria classe que representam e, principalmente, para as demandas da sociedade. Não será o fim do diploma que atenuará o problema.

Pelo contrário: a tendência é de agravamento da estupidez de achar que escrever formalmente bem é atividade jornalística. Costumo dizer que os medíocres escrevem corretamente sempre, mas são medíocres exatamente por isso, porque não conseguem entender que talento é outro departamento. Medíocres que, por serem medíocres, detestam os talentosos que, exatamente por serem talentosos e não se prenderem a fórmulas prontas, de vez em quando cometem pecadilhos formais porque estão sempre enveredando por novos caminhos para seduzir os leitores. Os melhores jornalistas que passaram por minhas mãos desprezavam certos cuidados técnicos mas compensavam fartamente com surpresas de conteúdo.

Para completar e não deixar dúvidas: sou amplamente favorável ao diploma de jornalismo, mas sob outras bases acadêmicas. Sou amplamente favorável menos pela formalidade da distinção acadêmica e mais como ação cautelar contra a nova medida num contexto de fragilização da imprensa, situação que poderá ampliar o sequestro da ética da qualificação dos profissionais, inclusive de profissionais diplomados que estão a serviço dos interesses de ocasião nesse salve-se-quem-puder de mercado açodado. Há jornalistas com cursos de pós-graduação e estágios internacionais que não passam de charlatões. As escolas de jornalismo precisam reestruturar currículos, incentivar oficinas, contextualizar o aprendizado à realidade. E o governo não pode abrir mão de cotas sociais para possibilitar a inclusão econômica e cultural de quem tem talento mas não dispõe de recursos financeiros para custear mensalidades caríssimas dos cartórios emitentes de diplomas.


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