Imprensa

Jornalistas e especialistas

DANIEL LIMA - 24/06/2009

Ainda a propósito da supressão do diploma de curso superior em jornalismo pelo Supremo Tribunal Federal para o exercício da profissão, é preciso avançar em alguns pontos conceituais para melhor compreensão.

O diploma de jornalismo (com as mudanças às quais me referi no artigo anterior) e o aproveitamento criterioso de especialistas que não tenham cursado faculdade de comunicação são conciliáveis. Há muito tempo essa situação domina publicações, emissoras de rádio, de televisão e a Internet.

A decisão do STF, infelizmente, pode avacalhar com o que de alguma forma estava razoavelmente sob controle. O perigo está na proliferação de especialistas que não são especialistas coisa nenhuma. São apenas diplomados em outras áreas.

Se essa turma de não-jornalistas avançar demais o sinal, será ainda mais doloroso o esfarelamento de conteúdo. E a possibilidade disso acontecer não pode ser subestimada.

Primeiro, porque empresários de comunicação são loucos para fragilizar ainda mais a qualidade dos produtos. Eles acreditam piamente que economizar em qualidade não provoca estrago algum no faturamento. No setor público, então, a esculhambação poderá ser ainda maior. Apaniguados especializados apenas em articulações de bastidores poderão infestar assessorias em geral.

Segundo, porque as faculdades de comunicação lançam no mercado gente sem o menor talento e disposição para o aprendizado diário e contam com total insensibilidade das empresas de comunicação que, em larga maioria, não fazem absolutamente nada para melhorar a qualidade. Muitos não-jornalistas que se encantam com posições privilegiadas já que não são de amassar o barro como repórteres, não passam de chatos de galocha por não deterem técnicas elementares de comunicação. As exceções confirmam a regra.

A experiência na Editora Livre Mercado, tanto em duas décadas da revista LivreMercado quanto em duas edições históricas dos livros “Nosso Século XXI”, em 2001 e 2008, é a prova de blindagem completa à pecha de corporativista.

Na revista LivreMercado planejei, organizei e mantive durante muitos anos um Conselho Editorial que, além de atuação transparente no Prêmio Desempenho Empresarial, interagiu em várias questões relevantes. O Conselho Editorial era formado por profissionais das mais variadas atividades. Eram ouvidos e vozes da sociedade, especialmente da classe média.

Nas duas edições de Nosso Século XXI, a quase totalidade dos articulistas convidados era formada por especialistas. Foram poucos os jornalistas aos quais recorri.

O que a experiência de “Nosso Século XXI” ensinou, além do aprofundamento de investigações em distintas temáticas sob a ótica de regionalidade do Grande ABC?

Que especialistas não-jornalistas podem muito bem ser escalados e valorizados como agentes especiais de comunicação. Superam, nesse tipo de trabalho, muitos jornalistas diplomados.

Cada texto de “Nosso Século XXI ” passou por pelo menos três copidescagens. Todos foram submetidos a uma bateria de correções gramaticais. Nada muito diferente do processo ao qual foram submetidos todos os textos de jornalistas e eventualmente não-jornalistas de LivreMercado durante quase duas décadas. Inclusive este jornalista.

A diferença entre a produção editorial de um bom jornalista e de um especialista de verdade mas não-jornalista é que o primeiro geralmente escorrega muito menos em questões gramaticais e na linguagem específica da profissão, enquanto o segundo, além de desvios gramaticais, tem dificuldade de abordagem objetiva.

No caso de “Nosso Século XXI”, esse segundo ponto foi menos problemático. O modelo do produto permitia aos articulistas abordagem que não guardava relação direta com o jornalismo cotidiano. Os especialistas sem preparo jornalístico invariavelmente ocupam espaços na indústria de comunicação sem deixar dúvidas de que realmente não são do ramo. São poucos que, de fato, chegam aos pés de um Drauzio Varella, de um Arnaldo Jabor. Economistas que escrevam com a fluência de um Paul Krugman, então, seria pedir demais. Delfim Netto exagera no academicismo. Aliás, a maioria exagera no academicismo. A erudição faz parte do marketing pessoal para impressionar a platéia. Que se danem os leitores, os ouvintes, os telespectadores.

José de Souza Martins é um sociólogo uspiano que o Estadão insiste em ter como colunista. Entre ele — um reconhecido poço de conhecimentos — e o jornalismo existe tanta distância quanto a arte de fazer gols que opôs Pelé e Cafuringa. Como? O leitor não sabe quem foi Cafuringa? — ele simplesmente não sabia fazer gol, embora fosse bem dotado em técnica circense de driblador fantástico.

Tanto a sacralização do jornalista diplomado quanto a canonização de especialistas não-jornalistas têm o mesmo pecado de origem. O mercado está repleto de jornalistas incapazes de traduzir com fidelidade o conhecimento de especialistas envolvidos no noticiário como fontes de informação, da mesma forma que não faltam especialistas que jamais conseguirão dominar a linguagem jornalística.

Seria exagero resumir essa ópera bufa de qualificação à condicionalidade e à simplificação do quesito talento. Principalmente se talento for traduzido como algo semelhante a um veículo que dispõe de motor e, portanto, pode ser equipamento de mobilidade. Talento sem dedicação, empenho, paixão e tantos outros requisitos é como um veículo sem sistema de freio, sem embreagem, sem pneus.

Sinceramente, não acredito na conversa fiada de empresários de dar prioridade às faculdades de comunicação no recrutamento de diplomados que a legislação desvalorizou. Se já com todas as restrições o que se tem visto no mercado é uma carnificina editorial, sem o anteparo do diploma teremos verdadeiros atentados.

Provavelmente os bons profissionais de comunicação não perderão tanto quanto os diplomados acomodados, mas quem vai pagar o pato serão mesmo os leitores, os telespectadores e os ouvintes. A farra geral da Internet vai se propagar como cogumelos.

Em contrapartida, não faltarão ideias para harmonizar o quadro, separando-se joios do trigo. Por exemplo: quando este blog ganhar nova roupagem e conteúdo e passar a chamar-se CapitalSocial, o que não demorará muito, teremos entre as novidades uma página de “Entrevista Coletiva”. Leitores especiais que formavam o Conselho Editorial da revista LivreMercado dos meus tempos participarão tanto da indicação dos entrevistados como ajudarão a formular perguntas. O resultado estará disponível permanentemente no portal.

O que quero dizer com tudo isso? Que especialistas podem sim se juntar em projeto jornalístico para agregar valor ao conteúdo editorial, em vez de, como tem prevalecido no modelo atual, serem escalados para preparar artigos enfadonhos apenas para tapar buraco provocado pela redução do quadro de jornalistas diplomados.

Aliás, em fevereiro de 2005, dei posse num Teatro Municipal de Santo André lotado ao Conselho Editorial do Diário do Grande ABC, projeto que, com minha saída, acabou desativado. Já naquela oportunidade, ao convidar 101 agentes, reforçava a convicção de que não há jornalismo comprometido de fato com a sociedade sem representantes dessa mesma sociedade muito próximos da instância editorial de decisões. Daí a cassar o diploma de jornalista e abrir as porteiras para a invasão de novos bárbaros vai uma grande diferença.


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