Imprensa

Trauma de fechamento

DANIEL LIMA - 02/09/2009

Só quem passou por redações de jornalismo impresso diário ou quem passou por redação de jornalismo impresso não-diário mas de conteúdo qualificado sabe o que significa fechamento editorial. É uma catarse permanente que afeta músculos, cérebro e coração num nível de estresse que não se percebe quando é jovem, mas que se torna torturante depois de certa idade.

Os donos de jornais e revistas que não entendem de jornalismo e por isso mesmo simplificam tudo, não sabem o que significa a tensão para cumprimento de prazos.

É claro que nada se compara ao jornalismo impresso diário, mas não se deve generalizar suposto conforto de fechamento editorial em publicações com outras características. Tudo depende do grau de comprometimento com qualidade de quem está envolvido. Os picaretas não estão nem aí com brilhantina; fecham de qualquer maneira. A esses, jornalismo não passa de promoção pessoal, quando não de mobilidade social aceleradíssima. Há sempre trouxas dispostos a pagar por lantejoulas ou por omissões deliberadas.

Tenho trauma de fechamento editorial. Rezo a Deus para não reviver aqueles tempos de jornalismo diário, de tensão total. Tempos em que o jantar era um sanduíche frio, o refrigerante uma Coca Cola em garrafa de vidro, de vez em quando um iogurte morno. Tudo consumido às pressas na redação. Foi assim durante 15 anos seguidos entre 1970 e 1985. Imaginem o desgaste para um combativo defensor da qualidade, da investigação e de mais e mais espaços para publicar o trabalho da equipe. Chequei a ser demitido no Diário do Grande ABC por conta de brigar por mais espaço editorial. Quarenta dias depois estava de volta a pedido do principal acionista. Voltei e não demorou muito para me promoverem, à minha revelia, à coordenação de produção. Mas isso é outra história.

O jornalismo diário me ensinou muita coisa, entre as quais o rígido cumprimento de horário. As máquinas rotativas não poderiam esperar por eventual indolência. A linha de produção não poderia suportar qualquer desvio no cronograma. É verdade que já tinha base familiar para encarar fechamento editorial como doutrina. Cumpri os meses de atirador do Tiro de Guerra de Santo André sem o apontamento de uma única ausência. Minha mãe colaborou muito para isso, chamando-me às cinco da manhã, todos os dias.

Como editor de Esportes e de Economia do Diário do Grande ABC, e também como coordenador de produção, o tempo me escravizava. Diferentemente das modernidades tecnológicas de hoje, naquelas décadas a produção jornalística era operação de guerra. Não se tinha o suporte da Internet. A Agência Estado alimentava a Redação com noticiário nacional e internacional transmitido por telex. Era um constante esgotar de paciência para quem precisava editar informações dos clubes da Capital com um mínimo de atualização. Recorríamos até às emissoras de rádio. Hoje há fartura nos sites especializados.

As equipes da região eram focalizadas diariamente com presença física de cada setorista. Dizem que hoje fazem tudo por telefone. Aliás, foi com a constante presença em treinamentos e jogos que apurei o gosto pela estratégia. Não me conformava em ser apenas repórter. Queria saber mais para explicar aos leitores. Como hoje, treinadores e jogadores dificilmente abriam o jogo da conveniência para destrinchar vitória ou derrota. As frases feitas me incomodavam. Daí, embrenhava-me principalmente nos vestiários, escondido de todos, para ouvir preleções.

Quantas e quantas noites deixava a Redação do Diário do Grande ABC obinubilado. Meus companheiros de trabalho podem testemunhar. Exceto em uma ou outra situação, era sempre o último do setor a deixar a Redação. Quando passei a contar com o suporte de Donizete Raddi, profissional sério, leal, competente e conhecedor de futebol, minha carga de fechamento foi reduzida, embora continuasse pesadíssima. O revezamento era a arma de combate à loucura plena de uma jornada diária que ultrapassava a 12 horas.

Como os jogos de futebol eram a programação derradeira da jornada, invariavelmente eu fazia parte dos últimos dos moicanos a rumar para casa. Meus filhos mais velhos, André e Dannyela, quase se tornaram estranhos para mim. Praticamente não os vi crescer. De vez em quando levava André comigo aos jogos, principalmente nas viagens ao Interior, onde as equipes da região jogavam em busca do acesso. Ou seja: descansava no domingo carregando pedras de cobertura esportiva. A recompensa estava no sentimento de dever cumprido.

Fazia-se tudo com entusiasmo. Não se recebiam horas extras. Não se tinha banco de horas. Trabalhei 15 anos no Diário do Grande ABC sem ao menos usufruir de férias. Trocava tudo por dinheiro. Precisava pagar a casa que comprei em Mauá em 180 intermináveis meses. Antes, morava no fundo do fundo do quintal de meu sogro. O banheiro era no quintal. A porta da cozinha era um convite aos ratos que passeavam todas as noites por aqueles dois cômodos. Havia um buraco enorme a abrir-lhes acesso.

Parte do meu salário era disciplinadamente reservada para comprar exemplares do Jornal da Tarde, então o melhor da praça, da revista IstoÉ e da revista Placar, publicações que há muito não frequentam meu cotidiano por razões distintas que somam desencanto com a politização enviesada da linha editorial e mediocridade textual. Economizava até em alimentos para sustentar a rotina de investimento intelectual. Sabia que o tempo haveria de reforçar o mantra que jamais abandonei e repito todos os dias aos meus filhos: não há nada que substitua o conhecimento, e conhecimento não é um Viagra que se engole agora e se tem os efeitos logo em seguida. Nesse caso específico, utilizo-me de experiência comentada de terceiros. Mal sei que Viagra é azul. 

Único filho de seu Gabriel e de dona Maria a se meter com jornalismo, convivo familiarmente com dois profissionais do ramo e um terceiro, Lara, que resolveu fazer Metodista contra minha vontade. Gostaria que ela se envolvesse com alguma carreira de Estado. Os salários são compensadores e as realizações possivelmente menos frustrantes que a mesmice do cenário regional e nacional que os jornalistas imaginam-se capazes de alterar. Mas o que fazer se a juventude não enxerga o futuro e prefere apostar no romantismo? Como, aliás, apostei lá atrás, no começo dos anos 1960.

Espero que pelo menos minha filha futura jornalista não se envolva com esquemas de fechamento editorial porque, por mais que a Tecnologia da Comunicação aparentemente facilite a vida do reportariado, o mundo do jornalismo virou de cabeça para baixo e já não se sabe o que está mais à frente com tanta gente achando que domina a escrita. A supressão da exigência do diploma de jornalista é um passaporte aos oportunistas que já infestavam a área.

Dias destes escrevo sobre a metodologia que criei para tornar mais branda a carga de fechamento editorial da revista LivreMercado que dirigi até dezembro do ano passado. Foram 20 anos de aperfeiçoamento constante. Não é fácil produzir jornalismo de qualidade com poucos profissionais, muitos dos quais colaboradores externos, ou seja, que não participavam diretamente das operações de campo.


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