Imprensa

Jornalismo covarde

DANIEL LIMA - 26/10/2009

Dizem que sou um jornalista corajoso, destemido. Pura bobagem. No fundo, no fundo, sou um jornalista covarde. Tão covarde e, principalmente, desesperançoso, que induzi minha filha Lara, primeiro ano de jornalismo da Metodista, em São Bernardo, a abandonar o curso e partir para carreira menos dependente de intermediários malversadores. Jamais me meti na vida de meus filhos, exceto na sedução à escolha do time do coração, mas fiz de Lara uma vítima de meus dissabores e de minhas experiências. Um dia conto tudo.

O fato é que sou covarde. Certo mesmo é que a sociedade que me acha destemido, que consome meus textos de assuntos variados, essa sociedade não está nem aí com as razões de minha covardia porque, se precisar dessa mesma sociedade num eventual gesto de coragem, cairei do cavalo. Vou ficar a ver navios. Vou bater com muitas portas na cara.

Parte da sociedade da qual faço parte aplaude em silêncio meus destemores convencionais, mas se acovardaria em solidariedade aos malfeitores se me lesse destemido em questões cruciais.

O Grande ABC não tem institucionalidade nem mesmo para tornar um jornalista supostamente corajoso, corajoso de fato. Sim, porque a coragem que tenho para cutucar questões variadas é uma coragem meio camicase, porque atiro em meus próprios pés, já que não é fácil contrariar os mandachuvas que vendem gato por lebre há muitos e muitos anos.

Quantas e quantas vezes boicotaram publicidade em meus produtos, ofendidos com as revelações sobre as agruras sociais e econômicas do Grande ABC, sobre nosso Complexo de Gata Borralheira?

No campo multitemático deste site, cujas especialidades podem ser observadas no topo da página inicial, sou mesmo Avis-rara no Grande ABC e também no jornalismo brasileiro. Sou corajoso para valer. Um estúpido, dizem alguns familiares, vários conhecidos, alguns amigos.

Mas no que provavelmente mais interessaria, porque mexeria com as estruturas deste Grande ABC, sou covarde sim. Lamentavelmente covarde. Inteligentemente covarde, diriam os pacificadores que pouco constróem.

Sou covarde porque assim me tornaram. Que segurança terei de que não seria massacrado, espezinhado, ultrajado e, por que não, baleado, se me meter a desopilar o fígado jornalístico?

Quantos paus mandados não seriam escalados para avacalhar meu passado, enterrar meu presente e chutar para longe meu futuro?

Será que a sociedade me dará respaldo? Dará nada. Todos vão se aquietar em seus cantos, em seus interesses, em suas benesses — e o bobo da corte entrará pelo cano.

Por isso exercito o jornalismo possível, como a maioria dos jornalistas mais ousados deste País, mas o jornalismo possível é o jornalismo acovardado, reticente, engasgado, que, no fundo, não altera significativamente a ordem do jogo. Do jogo sujo, diga-se de passagem.

Tenho muito, mas muito mesmo orgulho dos textos que escrevi. Só lamento muito não ter orgulho dos textos que não escrevi. Muito pelo contrário. Odeio-os em meus sonhos, quase pesadelos.

Se os textos que escrevi, de combatividade a toda prova, já causam náuseas aos acomodados, aos interesseiros, aos patéticos frequentadores de rodas sociais do Grande ABC, imaginem então o que aconteceria se escrevesse também o que não escrevi ainda, quem sabe jamais venha a escrever?

O que posso garantir aos leitores é que os textos que ainda não redigi não resvalam nem levemente em delito ético, moral ou de qualquer espécie. São delitos exclusivamente intrapessoais. Quem sabe um dia desses, se sentir que posso ser corajoso também aonde deveria ser, além das questões temáticas já referidas, boto a boca no trombone?

Que diriam os leitores se, num momento de libertação, este jornalista tivesse tamanha dedicação a determinadas verdades inconvenientes?

Desconfio de que me chamarão de louco, de desequilibrado, de suicida em potencial, porque, infelizmente, a sociedade que tanto reclama dos políticos, classe preferencialmente escalada para ser a Geni da vez, age à semelhança deles. Nossos políticos só são o que são porque se fossem diferentes cairiam do cavalo. Teriam de virar jornalistas com coragem para determinados assuntos, mas covardes para tantos outros.

Confesso publicamente que sou um jornalista covarde, mas juro por todos os deuses que minhas omissões não passam por nenhuma caixa registradora, por nenhuma conta bancária, por qualquer penduricalho capitalista e tampouco ideológico.

Minha covardia no que toca a questões candentes é a covardia dos corajosos em revelar que é covarde porque não consegue enxergar uma rede de segurança pública e de solidariedade social que me torne diferente.

Muito pelo contrário: os paus mandados estão sempre de prontidão, para exercitar o achincalhe regiamente pago em oferendas dos supostamente ofendidos.


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