Leio no Diário do Grande ABC a notícia da morte de Jerson Ourives, secretário municipal de São Caetano na gestão de Luiz Tortorello. Dos 27 nomes escalados em 2001 para produzir a primeira versão de Nosso Século XXI, maior obra coletiva do Grande ABC, Jerson Ourives é o terceiro que vai embora fisicamente.
O primeiro foi o prefeito Celso Daniel e o segundo o teatrólogo Milton Andrade. A notícia não especifica as causas que levaram
embora esse homem tão calmo, tão discreto, tão placidamente convergente, mas duvido que tenham sido de ordem coronária, mesmo aos 68 anos.
Pensando bem, como garantir que não tenha sido uma travessura do peito se outro dia o sempre calmo, elegante e tranquilo Ricardo Gomes, técnico do São Paulo, teve um piripaque que quase o catalogou como estatística macabra do esporte?
Por que esse favorecimento de retirar da lista de ataque coronário os mortos de comportamento formalmente tranquilo se dizem os psicólogos que não há algo pior para a saúde, além de drogas em geral, do que interiorizar as emoções? É por isso que sigo à risca a herança mediterrânea, até porque é impossível contrariar a natureza sem que se pague alto preço: boto a boca no trombone quando me apertam o calo, quando roubam meu pouco dinheiro ou quando não consigo estabelecer diálogo com quem tem preguiça de pensar. Felizmente sou muito receptivo às desigualdades. Fosse um brutamontes comportamental, estaria perdido.
Sei lá por que o Diário do Grande ABC não revela, como a Folha de S. Paulo, a causa da morte daqueles que frequentam a página de necrológios. Deve ser algum critério editorial. Acho que a maioria dos leitores não aprova. Não há nada mais frustrante, além, evidentemente, da notícia ali estampada, do que desconhecer o que alguns poderiam chamar apenas de detalhe mas que, no caso, é essencial.
Morrer faz parte da vida mas morrer sem que se saiba de que se morreu é algo como um casamento sem consumação da carne, uma final de campeonato sem título, um remédio no qual se bota a maior fé de que vai acabar com a dor de cabeça e a dor de cabeça aumenta muito mais.
Espero demorar para morrer, embora não falte na praça quem garanta que já esteja nos extertores, inclusive porque colaboraram muito para me assassinarem em doses homeopáticas. Quando morrer, espero que o amigo Ademir Médici ou quem de direito não deixe de mencionar a motivação do desenlace. Gostaria de ser assassinado aos 94 anos por um marido ciumento, como costumam dizer os machões de carteirinha. É claro que é brincadeira.
Espero mesmo é que o Diário do Grande ABC dedique à minha morte a mesma deferência com que me contemplou quando da produção do livro que comemorou os 50 anos daquela publicação. Embora mencionado por várias fontes como um colaborador digamos de alguma importância — de repórter esportivo a diretor de Redação em 16 anos de trabalho — a tesoura da censura excluiu-me dos textos. Soube da arbitrariedade depois da festa, à qual compareci a convite. Provavelmente faltaram sintonia e nexo entre editores do livro histórico e promotores da festa.
Jerson Ourives sempre me pareceu gozar de ótima saúde. Participou, conforme registra o texto do Diário do Grande ABC, de inúmeras provas da São Silvestre. Insisto em duvidar que tenha ido embora por causa do coração. Talvez esteja até mesmo sendo indiscreto em reiterar curiosidade, que é a curiosidade da maioria dos leitores.
Quem, como eu, teve a sensibilidade de escolher Jerson Ourives para fazer parte daquele grupo muito especial de pensadores da região na produção de Nosso Século XXI, não se conforma como leitor. Se o jornalismo procura ser detalhista nas atividades de quem vive a vida, chegando-se ao extremo de propagar até mesmo o menu da festa de aniversário de alguma celebridade, por que se recusa a identificar o perfil morfológico da morte?
Mais que a razão da partida de Jerson Ourives, acho que pecamos muito com os mortos que de alguma forma participaram ativamente da sociedade. Especializamo-nos em ignorá-los ou minimizá-los. Morrer virou carne de vaca. As redações em geral pouco se lixam para os mortos que não são celebridades. Preferem mesmo essas mesmas celebridades com suas estripulias em vida. Deitam e rolam quando essas celebridades morrem, desde que tenham continuada vida de celebridade.
Os anúncios fúnebres da maioria dos jornais são anúncios mortos, sem vida gráfica, sem plástica. Na Baixada Santista, na Tribuna de Santos, os mortos que ocupam espaços gráficos ganham detalhes e até fotografias. Nada pior que imaginar que o morto do anúncio sem foto não é de fato o morto de verdade. Já houve casos por aqui, de anúncios frios, que a homonímia decretou a morte de vivos e a ressurreição dos mortos. Houve um caso que até condolências manifestei a familiares, para então descobrir que fora o pai levado pelo destino, não o filho, também conhecido por “júnior”. Mantive as condolências, é claro, porque cabrito bom não berra, mas senti que fiquei como cara meio desenxavida.
Aliás, está aí uma das razões de não ter colocado meu nome em nenhum dos dois filhos que imaginam ser eu o pai. Já basta o peso do nome com que me batizaram. Há muitos herdeiros nominais que se lascaram na vida por conta das travessuras dos pais. Minhas travessuras jornalísticas, de não pertencer ao grupo de maria-vai-com-as-outras, custam caro. Para completar, jamais, de fato, pensei em algo tão pretensiosamente dinástico. Com perdão àqueles que o fizeram sem essa porção de arrogância social.
Mas quero saber sim as razões que levaram embora o amigo Jerson Ourives, um homem incapaz de um gesto mais rude. O meu amigo Ademir Médici está em dívida comigo. E com os leitores do Diário do Grande ABC.
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06/12/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (40)