A contraface de passado e presente marcou o encontro de ontem deste jornalista com os também jornalistas Juca Kfouri e Bob Fernandes. Jantamos numa saborosíssima cantina cinquentenária no Largo do Arouche, em São Paulo. Contrapusemos o ontem e o hoje durante duas horas. Somente à saída, depois de entregar a cada um deles um pacote com seis livros cada, dei-me conta de fato de que, embora com pauta pré-determinada, acabamos navegando por sete mares. Quando disse a Juca e a Bob que aqueles livros resumiam meu passado, ouvi de Juca bem-humorada tirada de incógnita sobre o meu futuro.
Nada mais natural que Juca Kfouri tripudiasse. Afinal, perguntaria o leitor, o que foi fazer este jornalista em São Paulo num jantar com dois craques do ofício?
Sem firulas semânticas, sem falsos cuidados, sem devaneios, sem absolutamente nada que carregue dúvidas, respondo reto e direto: os procurei porque preciso deles para viver relativamente em paz no borralheiresco Grande ABC.
Desço a alguns pontos: ando recebendo recados cifrados, insinuações pouco discretas, telefonemas estranhos. Do outro lado do muro há gente que detesta opinião alheia, principalmente se a opinião alheia tem fundamentação. Artimanhas de desqualificação pessoal e profissional são desgastadas iniciativas que não colam mais, mas incomodam. Pressões econômicas, então, abundam. Como acho que transgressores podem passar dos limites suportáveis, ao Juca e ao Bob recorri.
Jornalismo independente tornou-se profissão de risco por estas bandas. Não me peçam detalhes, nem mesmo apenas alguns detalhes que repassei a meus interlocutores. Referências de competência e coragem, Juca Kfouri e Bob Fernandes sabem o que fazer diante de qualquer anormalidade. Até encontrá-los, não sabia a quem recorrer como salvaguardas. Com eles, me tranquilizo e me fortaleço.
Apesar da natural fricção temática, o jantar foi descontraído, alegre e espirituoso. Minha inquietude foi repassada de forma menos dramática possível. Dispensa-se verniz de temeridade a informações quando se tem à mesa experiência e solidariedade.
Por isso que, por mais que uma pauta específica centralizasse preliminarmente aquele jantar, prevaleceu a sensação de que tudo se tornou importante. Tanto que seria difícil eleger os melhores momentos. Particularmente, acho que foi o relato emocionado de Juca Kfouri sobre a chegada de dois netos. Juca virou vovô-coruja. Deixou de fumar, pratica esporte com regularidade e até acompanhou os novos herdeiros à Disney, programação supostamente careta que repassou a terceiros na criação dos quatro filhos. Os olhos de Juca Kfouri brilharam. Provavelmente apenas o título da Libertadores provocaria tamanha sensação.
A agenda inicial, longe de perder força, robusteceu-se. Aqueles exemplares de livros bem acondicionados entregues no final do encontro resumem a última década de trabalhos deste jornalista. O que me reserva esta nova década depende ou dependia da cobertura que Juca Kfouri e Bob Fernandes aceitaram me oferecer com a força moral e ética que construíram. Mais que aceitaram, eles foram enfáticos. Por isso, a frase provocativa de Juca Kfouri, sobre meu futuro, precisa ser avaliada com sensores psicanalíticos: o que me disse supostamente como desafio é de fato um compromisso amistoso dele e de Bob Fernandes.
Juca Kflouri mostrou-se mais expansivo durante todo o tempo. Bob Fernandes, editor-chefe do Terra Magazine, um dos criadores da revista CartaCapital e detentor de uma fileira de atividades jornalísticas, preferia intervenções menos frequentes mas sempre no mesmo tom descontraído e inteligente. Quem subestimar esse profissional de centenas de grandes reportagens não sabe o erro que estaria cometendo.
Saí do jantar com sensação de alívio. E como negar esse sentimento se acompanho Juca Kfouri desde os tempos em que colecionava cada exemplar da revista Placar e Bob Fernandes desde os primeiros números de CartaCapital?
Não nos aprofundamos em nenhum dos assuntos, mas aproveitamos aquelas duas horas para falar de muita coisa. De Seleção Brasileira, do Corinthians, paixão do Juca e deste jornalista, dos novos meninos da Vila, paixão de Bob Fernandes, de política, do Caso Celso Daniel, das relações sociais, econômicas e políticas do Grande ABC, das emoções familiares de quem se encanta com o dia a dia dos dois netos (caso de Juca), de profissionais de jornalismo e de tantas coisas mais.
Juca Kfouri relembrou até Castor de Andrade, dirigente do Bangu e comandante do jogo do bicho durante muitos anos no Rio de Janeiro e, segundo ele, exemplo mais bem acabado de contraventor sedutor. Juca o entrevistou numa das memoráveis edições de Playboy, revista da Editora Abril que dirigiu durante muitos anos. Juca diz que depois de Castor de Andrade, perfis assemelhados não passariam de caricaturas.
Sair da rotina com Juca Kfouri e Bob Fernandes é tão interessante quanto desafiador. Eles conseguem passar a sensação de que, por menos que falem sobre determinado assunto, parecem definir tudo.
A propósito dos livros, quatro são de minha autoria (Complexo de Gata Borralheira, Meias Verdades, República Republiqueta e Na Cova dos Leões) e os outros dois foram coordenados por mim e pela jornalista Maria Luiza Marcoccia, no caso as versões de Nosso Século XXI editadas em 2001 e em 2008. Mais de dois quilos impressos de um Grande ABC que nem todos querem ver retratado com isenção e responsabilidade social.
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06/12/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (40)