O Complexo Industrial Ford Nordeste que a montadora norte-americana inaugura neste 12 de outubro merece duas interpretações completamente distintas, dependendo da posição do observador. Para acionistas da Ford Motor Company, não poderia existir notícia melhor. Afinal, a planta criada na baiana Camaçari é um monumento à esperança de retomar a lucratividade e a participação mercadológica usufruídas antes da desastrada associação com a Volkswagen na holding Autolatina. Já para a comunidade regional e lideranças do Grande ABC... Bem, a história é um pouco diferente. O lance de descentralização produtiva é má notícia para a região porque pulveriza geograficamente ainda mais um segmento do qual o Grande ABC é extremamente dependente. O papel da fábrica de São Bernardo no quadro socioeconômico regional será cada vez mais reduzido na medida em que o complexo baiano assumir sua esperada função de protagonista da marca no cenário brasileiro.
Executivos da Ford Brasil não escondem que o novo complexo industrial é espécie de tiro salvador com o qual pretendem acertar o alvo perdido nos últimos anos. A Ford tinha 20% de participação no mercado interno de automóveis de passeio em fins dos anos 80, índice quase três vezes maior que os 7,4% do ano passado. O balanço financeiro reflete o descarrilamento provocado pela experiência mal-sucedida na Autolatina. Há seis anos a subsidiária brasileira acumula prejuízos. Observada pelo retrovisor de concorrentes tradicionais como Volkswagen, Fiat e General Motors, a Ford ainda sofre com a ameaça de marcas que se instalaram há pouco tempo no Brasil, sobretudo as francesas Renault e PSA (Peugeot/Citroën).
"Há algo de anormal com a Ford Brasil. A participação no mercado nacional está muito aquém dos resultados da montadora em outros países latino-americanos e em outros continentes" -- reconhece o presidente Antonio Maciel Neto, trazido da catarinense Cecrisa há dois anos para o principal posto executivo da Ford brasileira justamente pela fama de redentor organizacional que forjou à frente das operações da maior fabricante de revestimentos cerâmicos do País. Ele está coberto de razão. A Ford Motor Company é a segunda montadora do planeta, com faturamento superior a US$ 170 bilhões, atrás apenas da compatriota General Motors.
Muito mais produtiva -- É fácil entender por que as esperanças de recuperação estão depositadas na Bahia e não no Grande ABC. A planta baiana é a mais inovadora da Ford no mundo e a mais moderna entre todas as marcas no Brasil. Com previsão de somar cinco mil funcionários diretos, cada trabalhador produzirá em média 123 veículos por ano no Complexo Ford Nordeste, contra 37,2 veículos por empregado/ano na fábrica da Ford em São Bernardo e 100 carros/funcionário/ano no complexo industrial da General Motors de Gravataí, Rio Grande do Sul, a segunda mais produtiva do País, de acordo com critérios do instituto americano Habour Associated. Em São Bernardo estão cerca de 4,5 mil trabalhadores.
O que está por trás da alta produtividade -- além de equipamentos de última geração -- é um bem concatenado grupo de fornecedores que atuarão de forma sincronizada em esquema de consórcio modular, modelo parecido com o adotado com pioneirismo no Brasil pela Volks Ônibus e Caminhões, de Resende, no Rio de Janeiro, e pela General Motors de Gravataí, onde é feito o Celta. As linhas de montagem da Ford baiana serão abastecidas em tempo real por 29 sistemistas instalados no mesmo espaço físico da montadora, entre os quais ABB, Lean Logistics, Pirelli e Visteon. Além dos vizinhos, a montadora terá contato direto com outros 20 fornecedores instalados fora do complexo industrial. A fábrica de São Bernardo lida diretamente com cerca de 350 fornecedores de autopeças, número sete vezes maior que o projetado pela fábrica de Camaçari.
Quanto mais reduzido o número de fornecedores diretos, mais ajustada é a sintonia de custos, qualidade e o comprometimento da cadeia de suprimentos com a montadora. Outra providência que faz a diferença em relação à fábrica de São Bernardo está na quantidade de robôs: 500 na Bahia contra 300 no Grande ABC. Sem falar nos salários, 50% mais baixos em Camaçari.
Outros números expressam a grandiosidade do empreendimento: instalado em terreno de 4,7 milhões de metros quadrados, o complexo tem área construída de 1,6 milhão de metros quadrados e 230 mil metros quadrados de edificações. Quatro milhões de metros cúbicos de solo foram movimentados na terraplenagem e mais de 200 empresas participaram da construção que absorveu 57 mil metros cúbicos de concreto, 15 mil toneladas de estruturas metálicas e 380 mil metros de cabos elétricos. Os investimentos atingem US$ 1,9 bilhão, dos quais US$ 1,2 bilhão pela montadora e US$ 700 milhões dos fornecedores. Do total, US$ 475 milhões são financiados pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e outros US$ 180 milhões pelo Banco do Nordeste.
A montagem experimental da picape Courier -- que marca a inauguração oficial do complexo industrial -- representa apenas o aquecimento do plano mais ambicioso da Ford Motor Company na América Latina. Uma nova família de automóveis globais com cinco modelos distintos e complementares está programada para sair das linhas de montagem do Projeto Amazon, entre os quais uma mini-van, um jipe e um sedan. O primeiro modelo, denominado internamente BV 256, começará a ser produzido no primeiro semestre do ano que vem e se posicionará entre o Fiesta e o Escort. O Complexo Ford Nordeste terá capacidade para produzir 250 mil automóveis por ano, volume quase duas vezes maior que os cerca de 130 mil veículos vendidos pela marca no Brasil durante o ano passado.
O contraste entre a larga capacidade produtiva do complexo baiano e as limitações de demanda do mercado nacional complica a situação da unidade de São Bernardo. Em provável cenário de competição não apenas entre marcas, mas entre operações distintas da mesma marca, é obvio que a fábrica de São Bernardo será a mais afetada com a redução da produção dos automóveis Ka, Fiesta e Courier, com consequente desemprego. Ou alguém aposta na fábrica do Grande ABC na disputa com o ultra-moderno complexo baiano, que além de ter folha de pagamento 50% mais leve em relação a São Bernardo ainda usufrui de polpudo pacote de incentivos fiscais municipais, estaduais e federais, além de amigáveis linhas públicas de financiamento extensivas aos fornecedores de elite? A não ser que o mercado nacional espiche num piscar de olhos ou que as exportações explodam num passe de mágica -- dois cenários igualmente improváveis --, cirurgias serão inevitáveis e apenas os mais preparados sobreviverão.
"O Grande ABC é a região imediatamente mais afetada pelas novas fábricas. Se as novas plantas tiverem sucesso muito grande com seus produtos, a tendência é que suguem produção da região" -- alertou Glauco Arbix, professor-doutor do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e um dos maiores estudiosos sobre indústria automobilística, em recente entrevista à LivreMercado.
Os trabalhadores anteciparam as nuvens negras no horizonte da fábrica de São Bernardo e enviaram representante aos Estados Unidos para discutir o futuro da unidade com o presidente mundial da Ford, Jacques Nasser, em março último. Escaldados com o episódio da demissão sumária de 2,8 mil empregados na véspera do Natal de 1998 -- rapidamente convertida em voluntariado devido à enorme repercussão negativa --, os trabalhadores temiam a desativação da fábrica com a implementação do Projeto Amazon. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luiz Marinho, voltou da América do Norte com proposta distante do ideal sindicalista, porém perfeitamente adequada às possibilidades do cenário globalizado, competitivo e incerto por natureza: a montadora garantiu que três mil do total de 3,3 mil trabalhadores da produção não seriam demitidos até 2006, com a contrapartida de que o sindicato aceitasse que os outros 300 fossem desligados em programa de demissões voluntárias.
A proposta ganhou ares de vitória para o líder sindicalista, mas críticos dizem tratar-se apenas de prorrogação estratégica da desativação anunciada. O Projeto Amazon vai decolar no primeiro semestre do ano que vem e deve atingir altitude de cruzeiro no período em que o acordo emergencial de preservação de empregos estiver se exaurindo. A transferência da produção de caminhões do Ipiranga, na Capital, para São Bernardo, em janeiro último, indica que apenas os veículos pesados estão garantidos para a unidade do Bairro Taboão.
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