Mais que em quaisquer outros tempos, boa parte dos critérios do jornalismo no Grande ABC está tão condicionada ao fluxo de publicidade, principalmente de publicidade oficial, que não há pauta que resista a imposições dos donos dos negócios da informação. Sim, negócios da informação, porque chegamos ao fundo do poço. Nada pior, porque o Grande ABC já ultrapassou todos os limites de apatia social.
O que mais me deixa irritado é a possibilidade de que fazedores de pautas encomendadas ao sabor de receitas publicitárias públicas imaginem que as estripulias passem despercebidas.
Vá lá que os leitores comuns, sem intimidade com a engrenagem do mundo jornalístico, não se atenham ao que ocorre de forma, diria, desavergonhada. Mas, imaginar que jornalista velho de guerra como eu e tantos outros com um mínimo de indignação nas veias não detectem as relações incestuosas — tenham a santa paciência. Me poupem, por gentileza. Tanto a mim quanto a outros profissionais do ramo que, por motivos distintos, preferem o silêncio. Até porque, o preço da perseguição é altíssimo.
Leio praticamente tudo o que é publicado nos veículos locais, impressos e digitais. Leio porque sou tarado por leitura. Rastreio de ponta a ponta tudo que considero importante para me informar. Se não tivesse essa vocação exacerbada para alguns mas indispensável para mim, teria de adotá-la, porque só assim conseguiria ficar alguma coisa próxima da realidade dos fatos.
Tenho experiência suficiente para pretender encontrar a verdade no cruzamento do noticiário publicado por veículos antagônicos. Confesso, entretanto, que nem sempre é possível, porque nem sempre há condimentos a complementar ou a suprimir nesses enfrentamentos. Imaginem então o leitor comum, que incensa os veículos de comunicação e os colocam acima do bem e do mal ao cair na armadilha do estúpido Quarto Poder que, de fato, virou partido político, além de negócios de ocasião.
Há três modelos denunciatórios de malandragem editorial que não suporto como leitor e jornalista.
O primeiro é de mudanças bruscas, quando não acrobáticas, da linha editorial. De repente, por força de acordo publicitário arrancado a fórceps, o que era gestão desastrada, incompetente, desventurada, ganha ares de produtiva, extraordinária, revolucionária. Somente os amadores de ofício, os destrambelhados, adotam editorial tobogã. Eles acreditam que os leitores são débeis mentais. Ou imaginam que os leitores pensem exatamente o contrário, que tobogã é prova de equilíbrio e de idoneidade.
O segundo modelo não chega a tamanha desfaçatez, mas pega caminho oblíquo. Consiste em, acordo estabelecido, receitas especiais amealhadas ou contratadas, silenciar-se após campanha barulhenta contra determinada administração, como que, por obra divina, tudo que fora denunciado até então desaparecesse da pauta. Pautas até então preferenciais na bateria de esculhambação do gestor público são engavetadas. E elegem-se, com vagar, pautas mais suaves e conciliatórias da manga negocial.
Há também um terceiro modelo, utilizado com ciência por quem é do ramo e que acredita que nem mesmo os especialistas identificam: sai-se de tratamento de choque e parte-se não para o silêncio total e muito menos para o endeusamento irrestrito, mas para dissimulação que consiste em apontar pequenas falhas administrativas mescladas ao longo dos dias por resoluções positivas antes absolutamente desprezadas. Dá-se, então, tratamento supostamente ético.
Em todas essas situações, os donos do negócio da informação repetem a ladainha de sempre: eles não influenciam o noticiário, dão carta branca à gestão de redação e tantas outras baboseiras, mas de fato não abrem mão e ameaçam chefetes que não lhes prestem contas frequentes do que consta da pauta. E definem o tom do noticiário com a sapiência de imbecis juramentados. As revelações da vassalagem só são expostas nos bastidores jornalísticos, principalmente após demissões.
São poucos os jornalistas daqui e do País com coragem de botar a boca no trombone, porque sabem que o preço é elevado. O corporativismo patronal é implacável.
Para azar de malfeitores que se utilizam de condições sociais e comportamentais de jornalistas para imporem vontades e interesses nas redações, tenho colecionado há muitos anos tudo o que determinadas publicações imprimem ou expõem digitalmente. O livro “Meias Verdades”, que lancei em 2003, é apenas uma amostra do quadro.
Essa guerra imunda por conta de publicidade é uma das razões, aliás, que me levou a salvar minha filha mais jovem das lides jornalísticas. Ajudei a retirá-la de um navio que afunda a cada dia. Só a idéia de que poderia servir a determinados atravessadores me deixou em estado de alerta. Há profissões menos aviltadas no mercado.
Além de o jornalismo estar em franca degringolada, submetido às vontades de capatazes e carreiristas, agrava-se a debilidade remunerativa. Jornalismo é uma das raras profissões em que o peso da experiência e da competência não obtem a remuneração consequente na linha do tempo. Há profissionais medíocres em outras áreas que ganham em média muito mais que jornalistas de ponta.
Aviltou-se de tal maneira a profissão que, quando disponíveis, os anúncios de vagas exigem habilidades de doutorado em tecnologia de comunicação em vez de profissionais de comunicação. Os salários não fazem cócegas aos de metalúrgicos mais experientes. E eu que sempre defendi a proposta de que jornalista precisa saber transmitir informação, preferencialmente com um erro e outro gramatical para alguém copidescar, porque jornalista que escreve integralmente correto é menos jornalista e mais acadêmico, o que vem a ser a diferença entre cão farejador e cão de madame.
Longe de mim opor-me à canalização de recursos públicos a jornais, revistas, emissoras de rádio e sites. Há exageros escandalosos em forma de campanha eleitoral antecipadíssima, mas isso é outra coisa. O que está em discussão é a avalanche de recursos financeiros que saem dos cofres públicos sem transparência alguma e, mais que isso, definem arbitrariamente a linha editorial.
Mais que isso: há escandalosas condicionalidades que tornam a equação imensa suruba, porque as próximas eleições ancoram o noticiário. Já não interessa mais apenas quem está no Poder, mas também quem será o novo Poder. Que muitas vezes é compartilhado pelo dono do negócio da informação. E os leitores, coitados, acreditam em Papai Noel.
Por que será que a mídia que tanto se empenha em divulgar os tais portais de transparência, engodo com roupagem de democracia, não exibem as próprias receitas publicitárias obtidas de poderes públicos, comparando-as com as receitas do setor privado? Notariam os leitores que o fluxo seria simétrico ao tratamento jornalístico.
E sabem por que? Porque, entre muitos motivos, o mercado publicitário está cada vez mais depauperado no Grande ABC. Não vou estender-me na análise de tremenda queda, porque precisaria de vários artigos para detalhamentos, mas tudo está ligado a dois fatores que confluíram na mesma direção: a desindustrialização associada ao desemprego industrial dos anos 1990, que destruiu grande parte do PIB regional, com a quebra da mobilidade social, e o excessivo número de competidores no comércio e serviços, além da invasão de grandes conglomerados comerciais, cujos interesses publicitários estão muito longe dos veículos locais.
Poderia, adicionalmente, fornecer uma lista nada limitada de outros motivos que tornaram a praça publicitária do Grande ABC uma tremenda roubada, mas deixo para lá. O fato é que a carnificina é geral e aflorou de tal maneira a debilidade estrutural das empresas de comunicação que o Poder Público passou a ser a salvação da lavoura para a maioria. A troca de favores implantou-se em oposição à troca de chumbo quando as negociações não evoluem. Apenas uma minoria consegue praticar um jornalismo confiável, porque menos suscetível ao dinheiro público e suas injunções.
Como ensinou o guru de Tony Blair, o economista Anthony Giddens, no livro Terceira Via, quando se deixa o Poder Público (ou o Mercado, ou a Sociedade) acima dos outros vértices desse triângulo de sustentação do equilíbrio social, o mínimo que se vai recolher são complicações relacionais que se agravam na exata medida do distanciamento entre si desses setores.
Quem tem mais força de persuasão no mercado de comunicação tenta e consegue de alguma maneira impor o ritmo e o tom de reciprocidade do noticiário que os leitores consumirão angelicalmente como verdadeiro. Quem tem menos bala na agulha fica com as migalhas, mas igualmente manietado. E quem não quer e não faz uso de força coercitiva, tem de fazer das tripas coração para sobreviver com dignidade informativa.
Pobre Grande ABC que, do sonho de berço de cidadania vendido por um movimento sindical exclusivamente corporativista, mergulha no lodaçal de interesses manipulados que distorcem os fatos, omite verdades, industrializa bobagens.
Pobres jornalistas, vítimas preferenciais de empresários sem o menor cacoete para entender que jornalismo é função social que goza da sacrossanta argamassa legal da liberdade de expressão para atuar com responsabilidade, não com mercantilismo de fazer inveja a Wall Street.
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06/12/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (40)