Economia

Vamos ter cluster,
com muitas dores

DANIEL LIMA - 05/04/2002

O Grande ABC da competição industrial predatória vai chegar à coopetição defendida pelos especialistas em competitividade. Essa é a face rosada de uma notícia que tem um outro lado nada agradável e que mantém em aberto o quadro de transformações econômicas com fundas feridas sociais. O fechamento de autopeças que não estão enfeixadas nas redes internacionais e os investimentos em tecnologia -- com consequente redução de empregos -- ainda permeiam a realidade regional. 

A situação chegará ao limite da chamada clusterização, que tem no norte-americano Michael Porter o maior guru internacional. Cluster significa complementaridade competitiva mas cooperativa entre agentes econômicos de determinado setor para poderem chegar ao nível de produtividade que a globalização exige. O Grande ABC industrial forjado na autarquia de capitalismo dirigista do Estado sofre as consequências da abertura econômica no começo dos anos 1990. Incapaz de produzir um cluster automotivo a partir de meados dos anos 50, o Grande ABC contrai fortemente os anéis de sua musculatura industrial para salvar os dedos da reoxigenação econômica. 

A clusterização retardada do Grande ABC é transformação que se delineia gradualmente. A teoria de clusters transformou Michael Porter em referência internacional. Cluster é a concentração geográfica que engloba empresas interconectadas, fornecedores especializados, provedores de serviços, indústrias relacionadas e instituições associadas que competem mas também cooperam entre si. 

O Grande ABC industrializou-se como espécie de anticluster. A reconversão é dolorosa, como pode ser dimensionada pelos 143 mil empregos com carteira assinada que a indústria regional perdeu entre 1985 e 2000, segundo dados oficiais do Ministério do Trabalho. Sem contar a queda de todos os indicadores econômicos relacionados à indústria, entre os quais o Valor Adicionado, base do repasse do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) que garante a maior parcela de receitas das Prefeituras. 

Duas notícias convergentes recém-publicadas por jornais abrem a fresta de um setor em transformação permanente para adequar-se às remexidas provocadas pela globalização. Uma autopeças de Diadema, a Elastic, que abastecia a fábrica da Volkswagen de São Bernardo, impediu que a montadora completasse o ciclo de produção de vários modelos porque não fez a entrega em tempo hábil. Nada a ver com transtornos da operação just-in-time. O problema é que a fábrica de Diadema faliu e fechou as portas. 

A vulnerabilidade da ainda maior montadora de veículos do Brasil diante da precariedade econômico-financeira de um fornecedor especial revela a outra face da moeda do relacionamento no setor mais competitivo do mundo. Trata-se do alheamento dos executivos da grande indústria à realidade dos fornecedores. Ainda está em fase de aquecimento o contato mais próximo entre os diversos elos da cadeia automotiva. Fosse diferente, a Volkswagen não teria tido a surpresa de saber por terceiros que a autopeças de Diadema dobrou-se à série de problemas comuns na indústria nacional, como a falta de capital de giro, a desatualização tecnológica, os custos inflados e as metodologias ultrapassadas, além dos absurdos custos tributários, entre outros. 


Pressão contra preços -- A segunda notícia, que fortalece a impressão de que a indústria que faliu em Diadema não suportou o torniquete da competitividade de cima para baixo, é que as autopeças continuam a ser pressionadas pelas montadoras para rebaixar custos. Os termos das negociações para rebaixamento dos valores não são nada amigáveis. É espécie de convocação ditada pelo irreversível quadro de competição mundializada comprometido pela ociosidade da indústria automotiva no País. 

O Corsa lançado recentemente pela General Motors provocou reunião com os fornecedores, intimados a participar de força-tarefa cujo objetivo é baixar em R$ 600 o custo por veículo. Este mês será a vez da Volkswagen com a nova linha Polo. Torna-se cada vez mais evidente que só as autopeças mais bem-estruturadas e com economia de escala suportarão o assédio nada gentil das montadoras sobre as sistemistas e destas para o terceiro elo da cadeia produtiva. A compactação da cadeia de produção automotiva acelera-se no mundo todo. O mais recente estudo do Sindipeças (Sindicato da Indústria de Autopeças) contabiliza as transformações decorrentes da abertura alfandegária a partir do começo dos anos 90: 77% da indústria de autopeças com sede no Brasil são comandadas pelo capital estrangeiro. 

Não é preciso entender demais do riscado da economia do Grande ABC para ter noção do quanto essas mudanças afetaram as relações corporativas e sociais nos sete municípios. A falência da Elastic de Diadema só se tornou notícia, e mesmo assim discreta, porque era estrategicamente importante para a Volkswagen. Tanto que fez a linha de produção calar-se. Caso contrário, seria mais uma fábrica do Grande ABC a fechar as portas anonimamente -- assim como muitas outras empresas foram embora na calada da noite, aproveitando-se das vantagens fiscais, locacionais, sindicais e logísticas do Interior do Estado que não seja distante demais da Capital.   

Dois especialistas em indústria automotiva traçam linhas gerais sobre o futuro do setor e cujos resultados apresentam fina sintonia com os anseios do Grande ABC movido a veículos. Stefano Bridelli, vice-presidente, e Sergio Werneck Filho, gerente de projetos da Bain & Company, empresa de consultoria estratégica com escritório no Brasil, defendem a redução de impostos como medida essencial. Isso tornaria o carro sonho mais acessível ao brasileiro, permitiria o aumento da demanda e colocaria o Brasil mais próximo da realidade tributária da indústria automobilística mundial. A diferença é abissal: enquanto no Brasil a carga total de impostos sobre um automóvel varia de 25% a 33%, nos demais países produtores situa-se entre 7% e 17%. 

Os dois consultores lembram que não é de se estranhar que o prejuízo coletivo da indústria automobilística brasileira no ano passado chegou a quase US$ 700 milhões. Se forem contabilizados os últimos quatro anos, isto é, o tempo que separa uma Copa do Mundo de outra, as cifras crescem para US$ 3 bilhões. "Com os níveis atuais de impostos, juros, incentivos à exportação e expectativa de crescimento do PIB de 3% ao ano, a indústria só atingirá o ponto de equilíbrio em 2006" -- afirmam. 

O maior erro dos poucos estudiosos sobre a economia do Grande ABC é que invariavelmente subestimam o peso da indústria automotiva, atribuindo-lhe apenas a função de uma ou outra peça de um jogo de xadrez de competitividade, em vez da amplitude do próprio jogo. Para melhor entendimento no País do futebol, os veículos estão para a sustentação econômica do Grande ABC assim como o árbitro, a bola e o gramado para a efetiva realização de um espetáculo.  

A influência sistêmica da indústria de transformação para a estabilidade social do Grande ABC é semelhante ao oxigênio para os terráqueos. E a indústria automotiva é a centralizadora de boa parte desse equilíbrio. Pelo menos 70% do PIB do Grande ABC está relacionado ao setor automotivo. Na medida em que essa proporção sofre abalos sem que haja recomposição por novas matrizes produtivas -- uma dura realidade ao longo dos anos -- o arrefecimento da massa salarial é inexorável. Aliás, é o que está evidenciado em todas as pesquisas e interpretações sérias. O setor terciário que o Grande ABC exibe neste início de novo milênio, sem agregado de valor, não reúne massa crítica para substituir a riqueza perdida da indústria. Apostar na simples troca de indústria por comércio e serviços convencionais é algo tão semelhante quanto crer que uma bexiga inflada num parque de diversões e inadvertidamente desgarrada de mãos infantis pode chegar à lua.  

A abertura econômica provocou revolução de investimentos na indústria automotiva, como bem lembram os consultores da Bain & Company. Entre 1975 e 1992 o setor se manteve praticamente estagnado, mas entre 1992 e 1997 o crescimento de 20% ao ano mostra a cara da competição internacional. Em 1997 foram produzidos no Brasil quase dois milhões de automóveis; na sequência, em 1998 e 1999, houve retração e crescimento tímido em 2000 e em 2001. O período mais fértil dos investimentos concentrou-se entre 1995 e 1999, quando as inversões foram de mais de US$ 2 bilhões por ano, praticamente três vezes mais que no período iniciado em 1984 e encerrado em 1993. 

Os consultores Stefano Bridelli e Sergio Werneck Filho lembram, entretanto, que os vultosos investimentos feitos entre 1994 e 2000 criaram enorme sobra da capacidade produtiva: para um potencial de 3,3 milhões de veículos por ano, a demanda interna não passou de 1,6 milhão no ano passado, além de 170 mil unidades exportadas. 

Com cerca de 40% de participação nacional e 70% de influência no jogo econômico do Grande ABC, a indústria automotiva sediada na região continua a ser um paradoxo -- ao mesmo tempo em que instala o orgulho regional num patamar respeitável, devolve com a mesma intensidade o impacto de preocupações porque sua movimentação institucional -- estratégica e política -- é praticamente um mundo à parte, longe de qualquer esforço de reconstrução regional.

O Grande ABC vive desde a instalação das montadoras uma realidade semelhante à dos tripulantes de um transatlântico de luxo que não têm influência direta alguma sobre o roteiro de viagem, servem docilmente os turistas, que no caso ganham forma de tributos distribuídos conforme a esdrúxula representatividade congressual, e ainda correm o risco de, mais à frente, encontrar um iceberg em forma de devastadora competitividade internacional.


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