Imprensa

Leitura para ser impressa" chega
antes do livro de jornalista britânico

DANIEL LIMA - 21/09/2010

Não é por acaso que sob a marca CapitalSocial acrescentei a frase “leitura para ser impressa”. São mais de 100 mil leitores cadastrados que recebem diariamente o que chamo de “chamada” do material que acabo de postar. Sei que uma parcela provavelmente grande incorre no vício da leitura rápida. É principalmente a esse público que reitero leitura mais apurada, depois de ler ontem na Folha de S. Paulo uma entrevista com Nicholas Carr, jornalista, ex-editor da Harvard Business Review e ex-colunista do jornal britânico The Guardian. Mantém o blog “Tough Type” e tem página pessoal na Internet. Mas fechou as contas no Twitter e no Facebook. É polemista por natureza e conhecimento. Como escreveu Marcelo Leite, Nicholas Carr cutucou a onça da Internet com um argumento longo e bem desenvolvido no livro “What the Internet is Doing to Our Brains” (que poderia ser traduzido como “No Raso — O que a Internet Está Fazendo com os Nossos Cérebros”).


Exceto em situações de pura curiosidade, de manuseio explicitamente direcionado a cavoucar algo que possa extrair em seguida o máximo de informações, fujo da leitura na tela do computador. Desde que me dou por gente digital, em meados da última década do século passado, recorro à impressora e ao papel para recolher textos a serem consumidos. Faço-o disciplinadamente. Mais que isso: depois da leitura, decido se aquele texto deve ir para a lata do lixo ou para meus arquivos. Geralmente vai para o arquivo acima de minha cabeça, no sóton de minha residência.


Algumas declarações de Nicholas Carr são um golpe certeiro no fígado daqueles que, preguiçosos, autosuficientes na ignorância de conceder à tela de computador o bem supremo da metabolização de informação, resistem à pregação da cópia material. Acompanhem:



  • Toda tecnologia de comunicação e escrita traz mudanças. Isso é verdadeiro mesmo para o período anterior a Gutemberg, com a invenção do alfabeto, pela maneira como alterou a memória humana e nos deu maior capacidade de intercambiar informações. A Internet, como tecnologias anteriores, amplifica certos modos de pensar e aspectos da mente intelectual, mas, ao longo do caminho, sacrifica outras coisas importantes.

  • O número ao menos dos que leem livros sérios vem caindo há um bom tempo, mas haverá pessoas lendo livros por muito tempo no futuro. Meu argumento é que essa prática está se mudando do centro da cultura para a periferia, e as pessoas começam a usar a tela como sua ferramenta principal de leitura, não a página impressa. Acho também que, à medida que mudamos para dispositivos como Kindle ou iPad para ler livros, mudamos nossa maneira de ler, perdemos algumas das qualidades de imersão da leitura.
  • A mudança que estamos vendo traz parte de uma tendência de longo prazo, em que a sociedade põe ênfase no pensamento para a solução rápida de problemas, tipos utilitários de pensamento para encontrar informação rapidamente, distanciando-se de formas mais solitárias, contemplativas e concentradas.
  • A maneira de manter o modo mais contemplativo de pensamento é desconectar-se por um tempo substancial, reduzindo a dependência em relação às tecnologias e exercendo a capacidade de prestar atenção profundamente em uma única coisa.
  • Nos Estados Unidos tem havido uma corrida para considerar que computadores na escola são sempre uma coisa boa, até mesmo uma confusão da qualidade do ensino com o tempo que os alunos passam conectados. É um erro. Certamente eles têm um papel importante na educação, e as crianças precisam aprender essas competências. Mas as escolas precisam perceber que essa é uma maneira de pensar diferente de ler um livro. É preciso dar tempo e ênfase, no ensino, à capacidade de prestar atenção em uma única coisa, em vez de mover sua atenção entre diversas coisas. Isso é essencial para certos tipos de pensamento crítico e conceitual.
  • A Internet, sendo um sistema multimídia baseado em mensagem e interrupções, tem uma ética intelectual que valoriza certos tipos de pensamento utilitários, que encoraja as multitarefas e a rápida transmissão ou recepção de migalhas de informações.

Retomo o pensamento e o texto para fortalecer a linha de pensamento que desenvolvi com relação à Internet e que se casa de véu de grinalda com o alinhavado do jornalista britânico.


Conto rapidamente a situação que vivenciei no Diário do Grande ABC, onde desembarquei em julho de 2004 (e fui despedido por força de uma decisão judicial em abril de 2005) na condição de Diretor de Redação. Fui surpreendido com o que ali encontrei. Além de cacarecos tecnológicos que deveriam estar num cantinho qualquer de cemitério de computadores e acessórios, uma redação inteira era movida pela pressa na forma de copidescagem na tela de computador.


Copidescagem é terminologia corporativa dos jornalistas. Significa a revisão de texto. Por exemplo: este texto que escrevo neste momento no computador, passa rigorosamente por minha própria correção no papel. Duas ou três vezes. E mesmo assim, acreditem, sempre há o risco de sair alguma bobagem, porque essa nossa língua é por demais comprida, ferina, problemática e armadilhesca.


A copidescagem de todos os textos que recebia como comandante da revista LivreMercado se dava no papel, fisicamente no papel. No Diário do Grande ABC daquele 2004-2005 a copidescagem se dava impunemente na tela de computador. Apenas na tela de computador. Sei lá se isso se dá até hoje, é capaz que assim o seja diante de tantos erros e da falta de acabamento que se observa no dia a dia daquele produto.


A “normalidade” da copidescagem no computador e as precárias condições de infraestrutura material para proceder a mudanças significativas no processo impediram-me de atingir o grau de reorganização necessário àquela redação. Além, é claro, da sentença judicial que felizmente me tirou daquela panela de pressão.


Mas não deixei de provar — e é tão fácil provar mesmo hoje, porque vivo essa experiência pessoal ao imprimir os textos que produzo no computador — que a metodologia supostamente avançada de restringir a operação de produção e edição longe da sensibilidade tátil do papel era um passo em direção ao inferno de inconformidades.


Lembro que uma editora, minha amiga, a quem recomendara inutilmente o processo convencional de papel para correções, foi obrigada a receber, numa reunião de pauta, uma cópia de matéria copidescada por mim. O texto fora publicado na respectiva editoria. Não passavam de três mil caracteres, menos da metade do texto deste artigo, e reunia nada menos que 23 erros, dos quais dois de deslizes crassos de concordância. Tudo sob a batuta inexpugnável da copidescagem eletrônica.


Rigorosamente, nenhuma matéria publicada durante 19 anos na revista LivreMercado sob minha direção deixou de passar por copidescagem física. Mais que isso: o critério de qualidade era tão rigoroso que o processo de potencial ajeitamento ortográfico, histórico e técnico do texto passava por duplo fuzilamento — durante muito tempo Malu Marcoccia (a primeira e mais exausta ação antierros) e em seguida por mim e, mais tarde, como a saída de Malu Marcoccia, por mim (como primeiro copidesque) e Maurício Milani, hoje no ABCD Maior.


Não acredito em jornalismo que dispense copidescagem na unha. Não acredito em leitores que se recusam a ler no papel. Por isso, a sugestão é que sigam nosso mote, anterior ao texto do jornalista britânico mas coincidente na saga de enriquecimento intelectual que só leituras meditadas proporcionam. O resto é comida rápida que pode causar estragos homéricos.


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