Todos os dias, pelo menos uma criança ou jovem de São Bernardo passa a morar nas ruas da cidade. A constatação está em relatório do PMMR (Projeto Meninos e Meninas de Rua), organização não-governamental pioneira no trabalho com menores em situação de risco no Brasil e que começa a ser referência na Região Metropolitana de São Paulo. Violência e miséria fazem parte do cotidiano dos educadores da entidade, que pretende apontar caminhos para que garotos marginalizados possam encontrar um lugar na sociedade.
Entre junho e setembro de 2003, o PMMR atendeu 235 meninos e meninas em situação de risco em São Bernardo, muitos em contato com chagas sociais como mendicância, prostituição, drogas, roubos e outros delitos. Todos abandonados pela vida. Desse total, 83 eram crianças e jovens que começavam a perambular pela cidade para garantir sobrevivência. “O número de menores nas ruas é muito maior, pois o relatório abrange apenas a parcela dos que conseguimos contatar” -- afirma Wenderson Gasparotto, educador social e um dos 22 funcionários do PMMR, que surgiu em 1983 de um grupo de educadores ligados à Pastoral do Menor da Igreja Católica, à Igreja Metodista e à Umesp (Universidade Metodista do Estado de São Paulo).
O objetivo do PMMR não é, como ressalta o educador, atender toda a população de crianças e jovens em situação de risco, mas mostrar que é possível um trabalho social com esse setor frágil da população. No contato com os meninos e meninas nas ruas de São Bernardo, a entidade constatou que 58% estavam trabalhando, 19% se envolviam em vários tipos de atividades, 11% apenas circulavam pela cidade e 10% pediam esmola. O consumo de drogas era feito por 1,2% e apenas 0,8% dormia fora de casa.
Para abordar os menores nas ruas, o PMMR se utiliza de duplas de educadores, formada sempre por um homem e uma mulher. Muitas vezes, os monitores levam os meninos para atendimento médico. “Nessa etapa, queremos fortalecer a questão do retorno à família” -- explica Wenderson Gasparotto. A organização foi uma dos primeiros grupos a desenvolver a técnica de abordagem de rua dos menores em situação de risco.
Guarulhos -- Depois de 20 anos, o atuação já está sendo adotada em outros municípios da Grande São Paulo como Guarulhos, onde a Prefeitura firmou parceria com o PMMR. Uma sede da entidade foi instala no município, onde trabalham 10 educadores, dois funcionários administrativos e um coordenador geral. A Prefeitura local investirá cerca de R$ 250 mil, provenientes de recursos do Fumcad (Fundo Municipal da Criança e do Adolescente) para que seja desenvolvido um trabalho semelhante ao realizado em São Bernardo. O dinheiro compensa, diante da estimativa da organização de que o atendimento de cada menino e menina custa R$ 157 mensais
O PMMR também realizou firmou contrato com a Prefeitura de Diadema, para realizar levantamento de menores em situação de risco no município. Dos 397 meninos e meninas entrevistados, 53 têm entre 11 e 14 anos, 73% são do sexo masculino e 37% disseram trabalhar no mesmo horário em que estudam. Pelo levantamento, a renda média semanal dessas crianças e jovens na rua é de R$ 52,00. Apenas 47% moram com o pai e 87% com a mãe.
Em São Bernardo, o PMMR tem um orçamento anual de R$ 860 mil, provenientes de parcerias financeiras com entidades como a Igreja Metodista Unida, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs dos Estados Unidos, Fundação Criança de São Bernardo, ligada à Prefeitura, Igreja Unida do Canadá e Ministério da Justiça, que financia as oficinas. O PMMR também recebe doações de empresas, pessoas físicas e entidades sociais.
São duas as áreas de trabalho do PMMR: o atendimento e a organização do menores para intervenção nas políticas públicas. A entidade executa os programas de atendimento de rua, de família e no Espaço de Convivência, na rua Jurubatuba, 1.610, no Centro, onde também funciona a sede da entidade. Os oficinas pedagógicas são realizadas na sede e no Bairro Montanhão, Parque São Bernardo e Jardim Lavínia, três áreas carentes e periféricas da cidade. São atividades esportivas, aulas de danças e cantigas populares, capoeira, hip-hop, circo, artesanato e percussão.
Foi nas oficinas que surgiu o Bloco Eureca (Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescente), que há 12 anos abre o Carnaval de São Bernardo. Do bloco foram selecionados os 16 mais experientes meninos e meninas para formar o Grupo Eureca de Percussão, que faz apresentações e em 2003 lançou o CD Vira Brasil, com sambas-enredo do bloco carnavalesco. As músicas foram feitas pelos próprio meninos e meninas, com temas ligados à realidade em que vivem. Na sede do PMMR também é realizado a cada dois meses o Sábado de Lazer, que reúne em média 500 pessoas em atividades culturais durante todo o dia.
Bairros -- Mas é nos bairros que está um trabalho fundamental do PMMR. “Não adianta simplesmente atender o menor que está na rua, se não fizermos um trabalho de prevenção. Enquanto não fechar a torneira, não adianta enxugar o chão” -- explica Wenderson Gasparotto. As oficinas lá realizadas buscam facilitar o convívio do menor com a família e sua permanência na comunidade de origem, evitando a ida ou o retorno à vida nas ruas do Centro. No Jardim Lavínia, o PMMR ocupa casarão histórico que já foi sede de uma fazenda de café até o século XIX e que até junho de 2003 estava abandonado. Junto com o Clube de Mães do bairro, a entidade realiza atividades, ente as quais a organização de um grupo de Bumba Meu Boi integrado por 30 crianças.
Atualmente são atendidas 30 famílias de menores que já retornaram para casa ou que estão em processo de retorno. Um dos pilares da permanências dos meninos e meninas nas comunidades é a matrícula na escola, providência nem sempre simples de executar. “É comum encontrarmos casos em que tanto o pai, quanto a mãe e a crianças não têm documentos, o que inviabiliza a matrícula na rede pública de ensino” -- revela o educador. Cerca de 70% dessas famílias são chefiadas por mulheres, 20% pelo casal e 10% apenas pelo homem, num cenário onde a pobreza é frequentemente agravada por problemas de saúde como o alcoolismo e as drogas.
O ambiente de pobreza que empurra crianças e jovens para as ruas era pouco compreendido há 20 anos, quando surgiu o PMMR. “Esses menores eram vistos como criminosos e internados na Febem” -- conta Wenderson Gasparotto, para quem a entidade viveu um momento marcante em 1987. Em setembro desse ano seis jovens atendidos pelo PMMR foram assassinados no Clube de Mães, na Rua dos Vianas, no Centro, onde eram realizadas as oficinas pedagógicas. “Em São Bernardo havia muitos grupos de extermínio. A própria Polícia tinha então uma atuação violenta sobre os meninos” -- afirma o educador.
A outra área de atuação do PMMR é a da organização dos menores e intervenção em políticas públicas, justamente a que evidencia problemas como a violência que atinge os meninos e meninas em situação de risco social. A entidade participa dos fóruns nacional, estadual e municipal dos Direitos à Criança e do Adolescente, bem como do Conselho Municipal de Assistência Social. “Utilizamos esses espaços para levantar o problema do menor que está na rua e propor programas que atendam essa população” -- afirma o educador Wenderson Gasparotto. Um exemplo desse trabalho é Marcos Antônio da Silva Souza, ex-menino de rua e que hoje é o coordenador-geral da entidade. Marquinhos, como é conhecido, é considerado um dos maiores formuladores de políticas para a questão da criança e do adolescente no País. Dos 14 educadores do PMMR, quatro saíram das ruas.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!