A Folha de S. Paulo faz essa insinuação na edição de hoje. Trafega editorialmente na contramão do Diário do Grande ABC e do Estadão. E mesmo do Valor Econômico. O tom festivo da substituição da Ford desistente pela Caoa pretendente parece mesmo exagerado. Depois de ler a Folha de S. Paulo e os demais jornais, fico com mais interrogações que exclamações. Ou seja: estou com a Folha de S. Paulo e não abro.
O governador João Doria e o prefeito Orlando Morando (que pouco apareceu na fita final, mas estava pronto para recolher prestígio) parecem mesmo obcecados pela ideia de evitar que no lugar da Ford São Bernardo tenha um imenso galpão desocupado, pronto para virar condomínio de moradias populares. É muito melhor trocar a Ford pela Caoa do que trocar a Ford pelo Minha Casa, Minha Vida.
Manchetes e manchetes
Vou reproduzir as manchetes de páginas internas dos quatro jornais para os leitores entenderem (se já não entenderam por leitura própria) o que se passa com a Ford e a Caoa, e também com o governo do Estado e a Prefeitura de São Bernardo:
Folha de S. Paulo: “Doria aumenta a pressão para Caoa comprar fábrica da Ford no ABC”.
Diário do Grande ABC: “Caoa garante absorver 850 funcionários da Ford”.
Valor Econômico: “Caoa busca expansão fora do Centro-Oeste”.
Estadão: “Caoa vai produzir carros da chinesa Changon na fábrica da Ford no ABC”.
A Folha tem razão
Por questão de ofício, ou seja, do pressuposto de que jornalista com um mínimo de predicado precisa exercitar o ceticismo até a última instância, sobretudo quando do outro lado da informação está um governador e um prefeito ávidos por voos maiores, por questão de ofício, repito, estou com a Folha de S. Paulo e não abro.
Tanto estou que me sinto na obrigação de reproduzir alguns trechos da reportagem de hoje para que os leitores sintam que essa adesão não é de graça. É consequência da série de leituras a respeito do assunto. Vejam alguns trechos publicados pela Folha de S. Paulo:
O governador de São Paulo (...) intensificou a pressão para que o grupo Caoa feche a compra da fábrica de caminhões da Ford em São Bernardo do Campo. A situação gerou uma saia justa com a montadora, que alega que o contrato ainda está em discussão e reclama dos seguidos vaivéns da negociação. O clima azedou na segunda (2) à tarde, quando Doria marcou entrevista coletiva para esta terça (3), no Palácio dos Bandeirantes para anunciar o futuro da fábrica no ABC. Pessoas próximas ao assunto dizem que a convocação foi feita sem avisar a Ford. O presidente da montadora para a América do Sul, Lyle Watters, acabou aceitando comparecer, mas não deu declarações. Ele e sua equipe saíram sem responder a perguntas.
Mais Folha de S. Paulo
Depois de atrasar uma hora, o evento desta terça durou apenas 30 minutos. Doria limitou as perguntas. Dos veículos presentes, somente quatro puderam fazer questionamentos, que foram direcionados pelo governador ao presidente do conselho de administração da Caoa, Carlos Alberto Oliveira Andrade.
Mais Folha de S. Paulo
Conforme apurou a reportagem, a ideia inicial de Doria era divulgar o fechamento do negócio mesmo com alguns pontos pendentes, mas a americana Ford se opôs. O governador passou então a trabalhar com o cenário de um anúncio em duas etapas. Na coletiva, a Caoa disse que pretende fazer uma “due dilligence” (diligência prévia) da fábrica, que é uma investigação detalhada dos números. Informalmente, todavia, isso já vem sendo feito.
Contaminação política
Publicou mais a Folha de S. Paulo, mas não será preciso esticar a reprodução da reportagem. A verdade é que sinto um cheiro impressionante de oportunismo político a permear a necessidade de encontrar um parceiro para que o impacto da retirada da Ford seja minimizado ao máximo. O que isso significa?
Significa que, qualquer coisa que se obtenha com a Caoa, mesmo que a contratação de não mais que 30% do efetivo que restou da Ford, e mesmo assim, conforme o noticiário, com esperado rebaixamento de salários, é preciso dar uma resposta que no fundo é mais política e eleitoral do que amenizadora de fato das vicissitudes do antigo e invejável núcleo de produção automotiva do País.
Quem acompanha estas páginas sabe o quanto São Bernardo simboliza a derrocada econômica regional. São inúmeros os problemas econômicos e os estragos sociais. Somente neste século, conforme tenho explorado com indicadores que colocam São Bernardo e o Grande ABC num universo amplo dos 20 maiores municípios paulistas, os resultados são alarmantes.
Convencido pelo prefeito Orlando Morando de que o Grande ABC pode ser um símbolo de uma suposta retomada industrial, utilizando-se na sequência essa premissa como fonte exploratória de um discurso que seria nacionalizado, o governador João Doria faz das tripas do marketing coração político para encontrar uma alternativa à desocupação da Ford. A Caoa veio a calhar, mas o setor automotivo é cruel. Há muita desconfiança a pairar sobre o empresário.
Seletividade improcedente
Por essas e outras prefiro o tom desconfiado, subliminarmente crítico, da Folha de S. Paulo. O jornalismo profissional tem obrigação de servir de anteparo à avaliação da sociedade.
A questão automotiva, quer queiram ou não, sequestra o ambiente motivacional no Grande ABC, mas não pode ser tratada jornalisticamente como território contíguo ao de assessoria de imprensa que caracteriza a maioria dos temas na região. Menos, claro, quando há interesse por determinadas questões. Geram-se, com isso, fake news, rivalizando-se com as redes sociais tão duramente combatidas pelos veículos impressos.
O discurso do prefeito Orlando Morando em tentar puxar a sardinha de benefícios fiscais municipais para a brasa do grupo Caoa chega às raias do inacreditável. São merrecas que não exercem, nesse caso, nenhum efeito expressivo.
Pior que isso só mesmo o prefeito anunciar, como anunciou na reportagem do Diário do Grande ABC, que pretende tratar seletivamente fornecedores da Ford que atuariam também no raio de ação da fábrica que a Caoa manteria.
Na maioria das situações trata-se de acenar para o impossível, porque a rede de suprimentos de autopeças e de serviços conta com outras empresas como clientes, enquanto que nas mesmas atividades, empresas concorrentes fora do círculo preferencial de produção da Caoa e das demais montadoras teriam tratamento discriminatório e, portanto, ilegal.
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