Economia

Doria dá tiro no Grande ABC
com guerra fiscal automotiva

DANIEL LIMA - 04/10/2019

Está no Estadão de hoje um artigo assinado pelo governador João Doria. Artigo assinado por político geralmente não é escrito por político, embora os pressupostos sejam do político. 

Quem cuida da tarefa de dar forma e conteúdo aos artigos dos políticos são os marqueteiros. E quando os marqueteiros tomam conta disso, o que temos são peças publicitárias disfarçadas de texto jornalístico ou para-jornalístico. 

O resumo da ópera de “Indústria automobilística: a confiança voltou”, título do material, está longe da compreensão da maioria dos leitores, senão da totalidade. A esperteza dos políticos não tem limites e tampouco monopólio partidário. Faz parte do show do “deixa que eu vendo essa mercadoria que o povo engole tudo”. 

Para começo de conversa, o que a imprensa paulista subserviente aos governadores de plantão deixa de escancarar é que João Doria introduz na indústria automotiva (e o fará em outros setores, como têxtil, entre outros) uma mais que descarada extensão da guerra fiscal fratricida que tanto emperra o País. 

Desenvolvimento Econômico com intervenção rasteira do Estado em forma de guerra fiscal distorce as relações empresariais e sociais ao beneficiar grupos de interesse. Isso está em qualquer manual de capitalismo privado ou de capitalismo estatal.  

Três dimensões conflitantes 

O artigo assinado por João Doria contém algumas verdades, muitas meias-verdades e mais mentiras-inteiras do que o desejado. Doria atribui a seu mandato investimentos e empregos que estão longe disso: vieram do passado, quando ainda era prefeito de São Paulo e, portanto, sem interferência alguma, ou antes mesmo, quando comandava uma empresa de eventos que juntava autoridades públicas e agentes privados. 

O texto assinado pelo governador também interfere impropriamente nos investimentos já anunciados. Com isso, contempla irregularmente montadoras com descontos do ICMS – esse é o imposto manipulado por governadores de todos os matizes para puxar a sardinha à própria brasa, sem se preocupar com os demais. 

Doria pratica espécie de guerra fiscal antecedente. Enfim, o governador caminha na direção oposta à da equipe econômica federal, que pretende acabar com velharias da Nova República de proteção aos poderosos capitalistas privados que, por sua vez, geram conglomerados sindicais mancomunados com as mamatas. Qualquer entendimento do que seja o resumo da ópera do Desenvolvimento Econômico do Grande ABC não é mera coincidência. 

Mais desigualdade empresarial  

Toda essa intervenção vendida como planejamento econômico tem como consequência, entre outras sandices, o aprofundamento da desigualdade de relações comerciais com os pequenos e médios empreendedores. Quem conhece esse filme que vem de longe sabe que a cena final é um assassinato coletivo de empreendedores desprotegidos.  De novo, qualquer semelhança com o histórico do Grande ABC não é mera coincidência.

Está mais que na cara que o governador do Estado pretende fazer o que seu partido, o PSDB, não fez durante mais de duas décadas em que comandou o principal Estado do País, quando cadeias produtivas foram dizimadas, com a contribuição letal do governo federal. 

Os tucanos falham redondamente no quesito Desenvolvimento Econômico desde sempre. Permitiram que São Paulo caísse continuamente no ranking de produção de riqueza no País. Cair no ranking crescendo alguma coisa razoável seria satisfatório, porque os demais Estados da Federação ganharam massa produtiva com a adoção da guerra fiscal. Cair no ranking com a associação de crescimento maior dos concorrentes e resultados abaixo do crescimento do PIB Nacional é outra coisa. 

Contramão do federal 

Foram esses escombros que João Doria encontrou em janeiro último ao assumir o Palácio dos Bandeirantes. Com Henrique Meirelles na Secretaria da Fazenda, encontrou o braço de experiência financeira para tratar de assuntos econômicos. A guerra fiscal de Doria é consequência disso. 

E a indústria automotiva, às turras com o ministro Paulo Guedes, encontrou ancoradouro de protecionismo. Um protecionismo para grupos de interesses bem aparelhados. O restante dos empreendedores entra pelo cano. Não é preciso citar literaturas que versam sobre contrariedades à aplicação do Livre Mercado para fortalecer essa constatação.

E o Grande ABC, onde entra nesse negócio? É claro que entra pelo cano. Vão dizer alguns que a General Motors só continuará em São Caetano porque o governador João Doria e o prefeito José Auricchio interferiram. Meia-verdade. A GM não abandonaria o barco agora, embora já o faça discretamente. A GM ganhará fôlego, mas os próximos anos darão um formato mais apropriado ao juízo de valor que se possa fazer: a unidade em São Caetano não é prioridade nacional da multinacional norte-americana. 

Sem valor agregado 

A Ford ainda não encontrou substituta, mas o governador garante que até novembro haveria uma Caoa para segurar as pontas e garantir pelo menos um terço dos empregos diretos que terão se evaporado. O que ninguém diz é o que li outro dia num cantinho de notícia sobre a empresa de Carlos Alberto de Oliveira Andrade: as linhas do veículo chinês em São Bernardo serão exclusivamente de montagem, no sentido literal do termo, não de produção. As peças virão prontinhas da silva da Ásia. Valor agregado? Nadinha. 

Por isso que, entre outras transformações drásticas que tornariam a Caoa o que chamei de Cavalo de Troia da Indústria Automotiva na região, os salários serão reduzidos em mais de 30%. Querem mais?

Na privilegiadíssima Scania, que depende relativamente pouco dos humores e horrores do mercado interno, os investimentos que o governador atribui à política de incentivos, também conhecida como guerra fiscal, foram requentados. Isso significa que já haviam sido divulgados antes mesmo de o governador assumir o cargo. Da mesma forma na vizinha Volkswagen. Tudo isso João Doria atribui a si mesmo, como salvador da pátria automotiva. 

Quem quer investir aqui?

Sei que o leitor quer saber detalhes do que está no título, sobre a perda regional por conta da guerra fiscal. Nada mais fácil de explicar: na medida em que transforma o Estado de São Paulo em território livre e artificialmente estimulado a investimentos do setor automotivo (leia-se montadoras) mais o Grande ABC de baixa competitividade sistêmica (logística, mão de obra cara, encargos trabalhistas, ambiente hostil, entre tantos outros fatores) será preterido pelos empreendedores. 

Conclusão: só estarão reservados recursos para aplicação em modernização das montadoras (e isso é ótimo), mas com o natural custo de desigualdade que as grandes companhias continuarão a impor às pequenas e médias empresas, resultando em novas camadas de importação de peças e acessórios.

Ou seja: entre investir para valer em qualquer cidade do Interior que recebe uma fábrica com banda de música e aportar recursos no Grande ABC extremamente politizado (extremamente no sentido de divisão entre direita e esquerda), está na cara que o Interior mais próximo de logística e de tantos outros vetores ganhará de goleada. Com vem ganhando desde o início dos anos 1990. 



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