Vou pegar carona no que leio nos jornais sobre um dos motes do PT às próximas eleições. Os petistas vão bater na tecla da desigualdade social no Brasil, pela porta de entrada da economia, como se pudessem desfraldar uma bandeira que se sustentou artificialmente durante o ciclo das commodities, entre 2004 e 2012. Em seguida, como se sabe, desandou. Pobres e miseráveis voltaram a subir na tabela de exclusão social. Gastou-se no período de ouro deste século muito dinheiro com a farra de consumismo e se jogou fora a oportunidade de investimentos em infraestrutura social e física.
Reduzir a desigualdade econômica nem sempre é fator positivo de qualquer governo se tiver como alvo o ataque a famílias mais abastadas, como se fossem pecadoras por terem dado certo num país de tantas incertezas. A prioridade de diminuir o exército de excluídos da sociedade deveria pautar a questão. São Bernardo deste século, em continuação ao que se viu nas duas últimas décadas do século passado, está longe disso: aumentou o número de deserdados e perdeu famílias ricas.
Desigualdade e empobrecimento
Peguei de propósito o exemplo de São Bernardo neste século, com base no ano de 1999. O indicador é a riqueza acumulada pela população em forma de potencial de consumo, especialidade nacional da Consultoria IPC. A métrica expõe os universos de famílias miseráveis, pobres, de classe média-baixa, classe média-média e de ricos.
O que diz o mapa da riqueza em São Bernardo quando se pegam os dados de dezembro de 1999 e se comparam com os de dezembro de 2019 -- portanto duas décadas completas? Que a desigualdade econômica aumentou quando o indicador é o total de famílias de classe rica e o total de famílias de pobres e miseráveis. Ou seja, os dois extremos socioeconômicos.
O que desafia os petistas que governaram o País durante dois terços deste século e que influem diretamente no destino de São Bernardo há mais de 30 anos é como explicar que a desigualdade social na Capital Econômica do Grande ABC aumentou não por força de fatores de enriquecimento de poucos em detrimento de muitos, mas justamente do empobrecimento de poucos em sintonia com o também empobrecimento de muitos.
Perda duplicada
Em dezembro de 1999 havia um jogo claramente de números dramáticos entre o universo de famílias ricas e de famílias pobres e miseráveis em São Bernardo. Os primeiros ocupavam 18.650 do total de moradias e os segundos 39.957. Uma diferença de 53,32% quando se pegam os dois extremos de uma sociedade. Para cada família de ricos em São Bernardo havia 2,14 de pobres e miseráveis.
Em termos de representatividade socioeconômica, as famílias ricas de São Bernardo eram 9,86% do total, enquanto os pobres e miseráveis somavam 21,13%. Havia, portanto, um espaço de 11,29 pontos percentuais entre os dois vetores em 1999.
Já em dezembro de 2019, as famílias de classe rica em São Bernardo, na esteira da desindustrialização recheadíssima de fatores múltiplos, não passavam de 3,90% do total de domicílios, com 11.060 moradores, enquanto os pobres e miseráveis representavam relativamente praticamente o mesmo de duas décadas antes, com 21,34% das moradias.
Distância aumentou
Entretanto, a distância entre os dois espectros sociais aumentou para 17,44% pontos percentuais porque, em números absolutos, os 39.957 pobres e miseráveis do início do século passaram a ser 60.571 em dezembro de 2019. Um crescimento de 34,03%. Ou melhor traduzido: para cada família de classe rica em São Bernardo neste 2019 há 5,47 de pobres. Ou seja, entre perdas de ricos e novas levas de pobres, os últimos mais que dobraram participação relativa.
O contingente de pobres e miseráveis de São Bernardo avançou 20.614 novas moradias, enquanto os ricos perderam 7.590 domicílios.
Querem mais desigualdade social que isso? Ou a conta de uma dialética esquizofrênica induziria a se imaginar que houve melhora do indicador, porque quanto menos ricos, independentemente de novas levas de pobres e miseráveis, mais bem apetrechada estaria a sociedade?
Desigualdade social no âmbito econômico tem uma leitura específica que não pode contrariar a matemática e a lógica. Qualquer retórica que use o parafuso semântico não passa de obtusidade intelectual.
Restou um terço
A desigualdade socioeconômica aumentou no cômputo geral porque os pobres e miseráveis praticamente não se moveram percentualmente no balanço geral da sociedade em São Bernardo, embora em números absolutos tenham dado um grande salto. Já os ricos se viram reduzidos a 3,90% da população.
Façam as contas: eram 9,86% de ricos e 21,13% de pobres e miseráveis em 1999 e passaram a ser 3,90% de ricos em 2019 e 21,34% de pobres e miseráveis.
A diferença no total de moradias entre ricos em confronto com pobres e miseráveis em termos de volume de famílias aumentou de 53,32% para 81,74%. Portanto, a desigualdade econômica acompanhada de empobrecimento entre o topo e a base da sociedade de São Bernardo aprofundou-se. Teria diminuído consideravelmente em termos relativos se houvesse em números absolutos mais famílias de classe rica e menos famílias de pobres e miseráveis.
Primeira classe
O espectro da desigualdade social em São Bernardo contém vários fatores. Um dos quais é explicitamente corporativista. Trata-se do que há mais de 20 anos chamei de trabalhadores de primeira classe, formada por empregados com carteira assinada das grandes montadoras de veículos e de autopeças sistemistas, fortemente protegidos pelo sindicalismo.
Também entram nesse bolo de primeira classe outras categorias industriais com forte aparato sindical, mas em menor número.
Do outro lado da moeda de assalariamento estão as demais categorias profissionais que vivem um mundo à parte. Afinal, não contam com anteparo sindical, que se nutre do corporativismo acumpliciador com as grandes empresas. Extrai-se o que sempre foi possível do governo federal em forma de privilégios e de distorções intersetores econômicos e sociais.
Complicadíssima Trindade
Ainda sobre o corte vertiginoso de famílias de classe rica em São Bernardo (9,86% do total das moradias em 1999 ante 3,90% em 2019), não existe nada semelhante entre as grandes e médias cidades do Estado de São Paulo, objeto de permanente observação e estudo deste jornalista.
O que os tomadores de decisões e formadores de opinião em São Bernardo ainda não perceberam (e o conselho vale aos demais municípios do Grande ABC, atingidos fortemente pelas mesmas endemias econômicas) é que temos consolidada uma versão do que chamaria de Complicadíssima Trindade, corruptela de Santíssima Trindade.
Contamos com um triangulo infernal composto de montadoras de veículos em constante redução de emprego e de participação na produção nacional, um sindicalismo metalúrgico ainda pouco sensível a ajustes e uma logística interna e no entorno metropolitano a nos colocar de quatro.
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