Essa é uma combinação explosiva. De um lado, o empobrecimento econômico a bordo da desindustrialização crônica. De outro, o aumento da taxa de empreendedorismo, ou seja, de pessoas que buscam a livre-iniciativa como fonte de inspiração ou de necessidade.
O Grande ABC viveu esse contexto neste século de forma ainda mais pronunciada do que na década derradeira do século passado. Há mais de 20 anos chamei esse processo de nordestinização. Um neologismo que virou verbete no léxico regional. Explico abaixo o que isso significa.
A medição do índice de empreendedorismo neste século é inédita e respaldada por dados oficiais. Resultado? Quem acha que mais empresas é sinal de vitalidade não sabe da missa econômica e social um terço. Basta lembrar que quase 10 mil organizações privadas foram criadas nos três últimos anos no Grande ABC. Ou seja: desde que os atuais prefeitos tomaram posse.
Inspiração a fake news
Fossem adoradores incontroláveis de fake news, os atuais chefes das prefeituras poderiam promover uma campanha conjunta no Clube dos Prefeitos para propagar uma meia-verdade. Aliás, individualmente o prefeito Paulinho Serra já o fez, ainda recentemente. Não duvido que o faça de novo, com os demais, caso se deem conta de que geralmente as fake news ganham proporções que a verdade jamais alcança.
Uma comparação entre o índice de empreendedorismo que coloque a média do Grande ABC e a média brasileira é reveladora do quanto a região empobrecida ao longo das três últimas décadas recorre mais e mais a negócios privados que, em larga escala, se canibalizam. Ou seja: há excesso de negócios em relação ao potencial de consumo, ao PIB de consumo.
Em 1999 o Grande ABC contava com 71.878 empreendimentos de todos os setores (comércio, indústria, serviços, agribusiness e outros) para uma população de 2.3235654 pessoas. Ou seja: havia 3,09 empreendimentos para cada grupo de 100 pessoas. Já em 2019, com 326.164 empresas, esse índice subiu para 11,71%, um avanço de 278,96%.
No Brasil como um todo o índice de 1999 era de 2,77% de empresas formalizadas para cada grupo de 100 pessoas. Em 2019, passou para 8,95%. Crescimento de 223,10%.
Quando mais é menos
Trocando em miúdos: o Grande ABC massificou em maior proporção o universo de empreendedorismo na contramão da criação de riqueza. O PIB Geral do Grande ABC neste século anda a passos de cágado. Na contabilidade por habitante, que é o que mais interessa, está praticamente congelado. Já escrevi muito sobre isso.
Não é a primeira vez que utilizo “nordestinização” para definir um dos vetores do empreendedorismo no Grande ABC. Na edição de dezembro de 1998 (portanto, há mais de 21 anos) fiz uma análise que abordava a questão sobre a qual escrevo nesta edição. Leia um dos trechos daquela matéria:
A baixíssima capacidade de geração de riqueza dos setores comercial e de serviços e o canibalismo decorrente desse afluxo desmesurado de novos negócios, sem políticas públicas e associativas específicas de viabilidade econômica, converteram boa parte dos empreendedores em operadores de negócios de subsistência. Uma espécie de nordestinização empresarial, neologismo cuja raiz é a semelhança urbano-econômica de considerável parcela do território do Grande ABC com capitais do Norte-Nordeste em que prevalecem estabelecimentos de pequeno porte.
Manchetes festivas
Esse fragmento de texto daquela matéria de mais de duas décadas (“Cuidado! Querem mudar a realidade”) integra o acervo de responsabilidade no tratamento das realidades de uma região cujo passado de glórias ainda é visto como presente pelos triunfalistas de plantão. O endeusamento ao empreendedorismo, com manchetes festivas sobre o crescimento do número de unidades privadas, é uma associação de ingenuidade e ignorância. Vale a pena reproduzir alguns novos trechos daquela análise que fiz ao final da década de 1990:
Cuidado com o que vem por aí! O festival de dissimulação que sempre cerca pesquisas socioeconômicas, principalmente quando está em jogo a reputação de governantes e aliados, pode ganhar mais um capítulo este mês, quando a Fundação Seade (Sistema Estadual de Análises de Dados), braço estatístico do governo do Estado, anunciar os resultados de histórico levantamento estadual, com detalhamento numérico do Grande ABC. O risco que se corre não é apenas de dissimulação, mas também de manipulação interpretativa por parte de agentes políticos interessadíssimos em tentar provar o impossível: que a região e o Estado não sofreram profundos derramamentos econômicos nas duas últimas décadas. O grave é que, se a recém-criada Agência de Desenvolvimento Regional trabalhar sobre bases equivocadas, vai para o ralo qualquer tentativa de reerguer o Grande ABC. Dissimulação e manipulação são faces da mesma moeda de conchavismos políticos. É possível que novas arremetidas para tentar dourar a pílula do Grande ABC sejam perpetradas com a prestidigitação da pesquisa. Por incrível que possa parecer, não estão fora de cogitação algumas aberrações analíticas. Alguns atores públicos são capazes de repetir cantilenas desmoralizadas, mas sempre redivivas, como a de que não passaria de engano o esvaziamento econômico do Grande ABC e, acreditem, que o mesmo sindicalismo revolucionário do final dos anos 70, que em muito contribuiu para a redemocratização do País, não tem peso significativo na debandada industrial da região, depois de exagerar na dose de reivindicações e greves.
Tema sempre importante
A nordestinização do Grande ABC é um tema que de vez em quando é lembrada nesta revista digital porque dessa forma se dá sequência histórica à abordagem que completou mais de duas décadas, em sintonia com a realidade e em confronto com ilustradores de cenários oníricos.
Na edição de 14 de março de 2012 desta publicação digital, também abordei o assunto em forma de alerta às autoridades públicas e à sociedade em geral. Leiam alguns dos trechos daquela análise sob o título “Quando mais empresas não significam mais desenvolvimento econômico”:
Armadilha estatística
O Diário do Grande ABC de ontem caiu numa antiga armadilha que desmontamos também há muito tempo: acreditou no conto da carochinha de que mais empresas nos setores de comércio e de serviços significam dinamismo econômico. No caso da Província do Grande ABC, mesmo nos últimos anos da Província do Grande ABC, é melhor não acreditar. Mais que isso: é melhor descartar. Vivemos há uma década e meia o que chamo de "nordestinização” econômica. Vou explicar o neologismo. Até metade dos anos 1990, quando a Província ainda não sentia as dores mais profundas da desindustrialização que na última década do século passado cortou 100 mil empregos industriais com carteira assinada, comércio e serviços estavam muito aquém do potencial de consumo da região. O emprego industrial, embora já em processo de declínio, que, de fato, começou em meados de 1980 com a interiorização movida à guerra fiscal, anestesiava o sonho do negócio próprio. Quem estava empregado na indústria, numa indústria que sempre pagou salários maiores que os demais setores, não tinha razões para montar o próprio negócio. Comércio e serviços da Província eram negócios de famílias. Rentáveis, confortáveis, acomodados.
Gênese do problema
Aí veio o que se sabe (e a maior parcela da imprensa regional procurou esconder na esperança de que os sintomas seriam imperceptíveis) e houve uma enxurrada de desempregados com dinheiro no bolso de indenizações por longos anos de trabalho prestado a indústrias. Foi um deus-nos-acuda. Gente completamente despreparada montou todo tipo de empreendimento com a cara, a coragem e dinheiro no bolso. A grande maioria se deu mal também porque os grandes conglomerados nacionais e internacionais aportaram na região. Mas a explosão de empreendimentos provocou e ainda provoca estragos num ambiente de refluxo do PIB (Produto Interno Bruto). Canibalizou-se de tal forma o mercado regional que empreender se tornou uma aventura. O número de empreendimentos corre em raia própria com velocidade assombrosa, enquanto a produção de riqueza expressa no PIB tem o andar de tartaruga. Não poderia mesmo dar certo.
Nossa nordestinização está explicitamente clara nas ruas de todos os quadrantes: como naquela região do País, há estabelecimentos de tamanhos geralmente diminutos espalhados por todos os cantos, a competir entre si, a dividir espaços e recursos financeiros dos vizinhos, a sufocar a rentabilidade, a estreitar os horizontes, a asfixiar o orçamento familiar da maior parte de quem sobrevive dos negócios. É assim que é a regra desse jogo. Até o início dos anos 1990 o cenário era outro. Qualquer pequeno negócio era bom negócio. Nosso capitalismo, como escrevi numa das mais importantes reportagens de capa de LivreMercado, já era de terceira classe naquele começo dos anos 2000. E não mudou nada desde então. Só as manchetes apressadas seguem a mesma trilha de triunfalismo. Não tivemos, nesse período, capacidade organizacional para preparar um grande plano de desenvolvimento econômico que contemple todos os setores – escrevi em 2012.
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