É muito caradurismo do sindicalista Rafael Marques, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, reclamar (como reclamou em reportagem do Diário do Grande ABC de ontem) da falta de resistência da região à saída da Ford de São Bernardo. Embora não se aprofundasse no sentido do que seria “falta de resistência”, dá para imaginar aonde pretenderia chegar quando mistura economia, corporativismo, política-partidária e tudo o mais.
Rafael Marques queria que a região fizesse pelo sindicalismo o que o sindicalismo sanguessuga liderado por Lula da Silva no final dos anos 1970 em São Bernardo jamais fez pela região. Diferentemente disso: o sindicalismo cutista acentuou o viés de desigualdade social a bordo de protecionismo e ideologismo corporativos, sem contar o ovo da serpente de uma luta de classes que confrontava trabalhadores de chão de fábrica aos das áreas gerenciais. Até parece que o Brasil dividido é coisa de agora.
Não vou mergulhar no passado para descredenciar o sindicalista Rafael Marques e seus seguidores como interlocutores ou como narradores de um desastre chamado Ford. A perda de 2,8 mil trabalhadores diretos é café pequeno quando contraposta aos 48 meses anteriores nas fábricas de São Bernardo. Vou ficar somente em São Bernardo, na São Bernardo industrial, modelo de modernidade segundo os botocudos.
Sindicalismo excludente
O efeito mais ruinoso das demissões na Ford, na avaliação interna dos sindicalistas (mas que a mídia de maneira geral ignora porque não cavouca ou porque tem afinidade ideológica com supostos socialistas) é que a casa do marketing fácil das montadoras caiu de vez. A Ford deu no pé porque o sindicalismo de São Bernardo e de Diadema impôs ao longo dos tempos um preço altíssimo aos empreendedores. Mesmo a empresas internacionais de relações especialíssimas com os mandachuvas da política.
A Doença Holandesa Automotiva, pronunciadamente nociva a São Bernardo e à região, está em franca exumação. A Ford é uma logomarca reluzente que desmascarou o modelo sindical instaurado em São Bernardo. E que não encontra mais espaço no País, quando não em territórios internacionais. O sindicalismo com alto grau de autismo corporativo não resiste mais às forças do mercado, das cadeias de produção. O Brasil desindustrializado até a medula é exemplo.
Tenho alguns dados que dinamitam sem dó nem piedade o discurso demagógico de Rafael Marques e de todos os sindicalistas metidos a besta que se atribuem portentosos pesos de benemerência na sociedade regional. Revelá-los é um prazer, por mais eventualmente mórbido que seja. As dores dos prélios devem ser expostas sem procrastinação.
Muitas Ford perdidas
Nos quatro anos anteriores ao anúncio da desistência da Ford (em fevereiro do ano passado, conforme lembrou o Diário do Grande ABC de ontem em reportagem em que ouviu Rafael Marques e outros personagens), houve rebaixamento de 18.211 trabalhadores com carteira assinada em São Bernardo.
Vou repetir: o estoque de trabalhadores industriais de São Bernardo nos ambos 2015, 2016, 2017 e 2018, ante o estoque registrado em dezembro de 2014, sofreu baixa geral de 18.211 carteiras assinadas. Eram 92.211 e sobraram 74.000. Em 2019 foram quase cinco mil demissões líquidas, mas não consideraremos o montante neste texto.
Faça as contas comigo. Pegue esse universo de deserdados industriais, sobre os quais sindicalista algum fez qualquer análise dramática e a Imprensa em geral jamais cedeu uma manchetinha qualquer, e compare com os 2,8 mil trabalhadores deixados ao deus-dará pela Ford.
Fez as contas? São nada menos que 6,5 fábricas da Ford que se foram antes da Ford. Estou sendo generoso ao restringir o período de comparação aos quatro anos anteriores a 2019.
Grupelhos em ação
Não se ouviu – repito mil vezes se preciso – um pio sequer dos sindicalistas de São Bernardo. Sindicalistas que, saibam os leigos, são considerados referências nas relações entre capital e trabalho. São jornalistas bobocas e baba-ovos que os idolatram numa extensão de servilismo acrítico que começa no fim dos anos 1970, quando se iniciaram as greves em São Bernardo.
O que supostamente era um grito de liberdade trabalhista virou o que todo mundo sabe, ou seja, grupelhos político-ideológicos isolados da sociedade como um todo, à qual explora politicamente em períodos eleitorais.
O que Rafael Marques e os sindicalistas mal-acostumados ainda não entenderam, ou fingem não entender, é que acabou a farra dos conluios entre sindicalismo automotivo, montadoras de veículos e governo federal. Todos navegavam em águas plácidas de autoproteção até que se chegou ao estágio de quebradeira fiscal e nova concepção de Estado fomentador de Desenvolvimento Econômico.
Acabou o jeitinho de produzir riqueza automotiva em detrimento do conjunto da sociedade. A desigualdade social no Grande ABC, objeto de várias análises nesta revista digital, é alarmante, e tem como uma das raízes frondosas os privilégios trabalhistas de quem vive na sombra do setor automotivo.
Querem ver onde está essa raiz de desconfiguração da coesão social, também chamada de capital social?
Fossos salariais
No ano passado mostrei que a média salarial de um trabalhador da indústria em São Bernardo é quase 60% maior que a média dos empregados com carteira assinada nas demais atividades. Reforçando a constatação: quem trabalha na indústria em São Bernardo (e o peso dos trabalhadores no setor automotivo é muito maior do que os trabalhadores de outras atividades industriais) é 60% maior que os empregados das demais atividades.
Como não sou de ficar restrito a números da região para mostrar as mazelas da região, comparei São Bernardo com Ribeirão Preto, Interior do Estado. Lá a diferença de média salarial entre indústria e demais atividades não passa de 3%, e, mesmo assim, favorável aos trabalhadores não-industriais. Em Barueri é de 5%. Entre os maiores municípios do Estado, que formam o G-22 (Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra entram de piratas) São Bernardo só é superada na relação salário-industrial versus salário-das-demais-atividades pela Taubaté também automotiva e por São José dos Campos essencialmente aeroespacial. Os demais municípios perdem feio para a Capital Econômica do Grande ABC.
Compare os salários
Em termos de região, o salário médio do setor industrial de São Bernardo é muito maior que o das demais cidades. Ainda com dados de 2018 (os números oficiais do ano passado serão conhecidos até abril), vejam a grade de salários industriais e da média salarial em geral na região, sempre lembrando que se trata de carteira assinada:
São Bernardo com salário médio industrial de R$ 5.908,82 mil ante salário médio geral de R$ 3.772,60.
Santo André com salário médio industrial de R$ 3.937,72 mil ante R$ 2.867,35 mil de todas as atividades.
São Caetano com salário médio industrial de R$ 2.893,90 mil ante salário médio de R$ 3.178,81 mil do conjunto das atividades.
Mauá com salário médio industrial de R$ 4.163,68 mil ante salário geral de R$ 3.085,40 mil do conjunto das atividades.
Diadema com salário médio industrial de R$ 3.730,51 mil ante salário médio de R$ 3.299,06 mil do conjunto das atividades.
Rio Grande da Serra com salário médio industrial de R$ 2.898.33 mil ante salário médio de R$ 2.417,27 mil do conjunto das atividades.
Ribeirão Pires com salário médio industrial de R$ 3.218,87 mil ante salário médio de R$ 2.628,96 do conjunto das demais atividades.
Compare mais salários
Colocados esses números à avaliação dos leitores, não resisto a traçar as diferenças dos salários médios industriais de São Bernardo ante salários médios industriais dos demais municípios da região. Acompanhem:
No confronto com Santo André, o salário médio industrial de São Bernardo é 33,35% superior.
No confronto com São Caetano, o salário médio industrial de São Bernardo é 51,02% superior.
No confronto com Diadema, o salário médio industrial de São Bernardo é 36,86% superior.
No confronto com Mauá (química e petroquímica), o salário médio industrial de São Bernardo é 29,53% superior.
No confronto com Ribeirão Pires, o salário médio industrial de São Bernardo é 45,52% superior.
No confronto com Rio Grande da Serra, o salário médio industrial de São Bernardo é 50,95% superior.
Produtividade em desacordo
Para completar o incêndio do circo de manipulações e demagogias do sindicalismo em torno da debandada da Ford, e de modo que não se ceda espaço a semânticas desestruturadas, convém lembrar que a diferença salarial no setor industrial do Grande ABC não tem conexão sólida com o nível de produtividade média por trabalhador. Ou seja: os vencimentos salariais não estão necessariamente relacionados à produtividade.
Nesse caso, os dados são relativos a 2017, porque dependem da divulgação do PIB dos Municípios Brasileiros. A diferença de 12 meses em relação ao universo de trabalhadores formais, ao qual recorri para formular os dados acima, não altera em praticamente nada o conceito e a lógica de valores.
A produtividade média do trabalhador industrial de São Bernardo ocupa a 16ª posição no G-22, o Clube dos 20 Maiores Municípios do Estado de São Paulo. Cada trabalhador da terra do sindicalismo cutista do Sindicato dos Metalúrgicos registrou R$ 125.033.16 mil de produtividade. Só é um pouco maior que os números de Rio Grande da Serra, Ribeirão Pires e da lanterninha (geral), Diadema. Perde para a quinta colocada Mauá (R$ 291.993.45 mil), para a oitava colocada Santo André (R$ 212.435.08 mil) e para a 13ª colocada São Caetano (R$ 183.344,61 mil).
Banana ao sindicalista
Portanto, desfraldar a bandeira da resistência contra a saída da Ford é uma prerrogativa democrática do sindicalista Rafael Marques, mas totalmente desprovida de valor histórico que poderia conduzir a alguma conclusão voltada à ingratidão regional. O fato inexorável é que a mamata do Estado-todo-poderoso está ruindo não porque haveriam forças necessariamente contrárias a tudo o que está aí.
Trata-se de algo muito mais grave: não dá mais para empurrar com a barriga a crise fiscal que infesta União e Estados. A fonte secou. Acabou a longa invernada de vantagens corporativas em detrimento da sociedade. Uma banana, eis o que Rafael Marques merece.
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