Cada tiro de recuperação da memória do melhor jornalismo regional do País, representado pelos 19 anos da revista LivreMercado e parcialmente cumulativo de 18 anos de CapitalSocial, é um furo mortal no coração do ufanismo que aqui e ali ainda ganha forma de ervas daninhas no Grande ABC.
O texto que reproduzo hoje, vigésimo-nono da série 30ANOS, mostra o quanto LivreMercado combinava o rigor de análises críticas com a expectativa, quando não a esperança, de que a região alcançaria patamar de integração institucional e potencialização econômica.
Mais que isso: mais uma vez o prefeito Celso Daniel mostra, nesse texto de março de 1998, quatro anos antes de ser assassinado, quanto estava na dianteira dos chefes de Executivos de então e também dos demais que sucederam a ele e a todos eles.
Celso Daniel é um palavrão para sanguessugas sociais que fingem preocupação com o futuro do Grande ABC. Afinal, Celso Daniel revelava toda a inquietude de alguém com olhos muito além de um horizonte que virou hoje e não provoca qualquer reação significativa de lideranças que não lideram.
Tudo que se segue no texto abaixo se perdeu no tempo. O Grande ABC deste século não passa de embuste institucional que se espalha além-paços municipais.
Inspiração no lugar
de transpiração
DANIEL LIMA - 05/03/1998
O Grande ABC poderá transformar-se num grande centro de gestão de negócios industriais e, com isso, compensar a inescapável perda de postos de trabalhos operacionais. Em vez dos músculos de torneiros-mecânicos, ferramenteiros, operadores de máquinas e tantos outros profissionais que fizeram da região referência nacional de desenvolvimento econômico num período de mercado fechado e produção fordista, aumentará o fluxo por contratações de cérebros de engenheiros, designers, marqueteiros, projetistas e tantos outros profissionais disputadíssimos num regime de mercado aberto e de investimentos maciços em tecnologia.
A perspectiva foi traçada pelo espanhol Andrés Rodríguez-Pose, especialista em Geografia Econômica e diretor de mestrado em Desenvolvimento Econômico Regional da London School of Economics & Politic Sciense. Ele esteve em Santo André a convite do prefeito Celso Daniel, inserido no calendário de atrações internacionais do projeto Cidade Futuro, do qual participou anteriormente o urbanista catalão Jordi Borja. Tanto quanto Borja, Pose procurou transmitir recado otimista aos interlocutores: a região tem mais potencialidades positivas do que problemas.
Proximidade benéfica
A proximidade com São Paulo é, na avaliação de Pose, fator altamente favorável ao desenvolvimento do Grande ABC. A explicação é que a região tem tradição e experiência industrial para atrair áreas nobres da gestão empresarial, cujas plantas produtivas mais e mais se deslocarão para o Interior e outros Estados menos desenvolvidos, em busca de menores custos ocupacionais. Pose trabalha com a perspectiva de que, num futuro não muito distante, ocorrerá no Brasil o que afirma ser regra geral no Primeiro Mundo: a gestão dos negócios vai envolver cada vez mais cérebros profissionais, em contraste com o emagrecimento do chão de fábrica braçal, atingido pela tecnologia de ponta. Isto é: fábricas deixarão de ser sinônimo de emprego, de tanto que serão automatizadas, e atividades-meio como marketing, logística, gestão, venda, pós-venda, propaganda, entre tantos outros serviços de suporte industrial, concentrarão maior contingente de profissionais mais bem remunerados.
O consultor espanhol entende, por isso, que o Grande ABC deve se dedicar a algumas tarefas estratégicas. É justamente aí que a realidade não é nada cor de rosa. Ele fala em qualidade de vida superior à Capital como elemento mobilizador de investimentos de serviços industriais, mas quem mora na região sabe que cada vez mais a agitação, o trânsito caótico, a falta de segurança, a poluição, o desemprego e tantas outras mazelas da Capital transbordam para a vizinhança geográfica da Região Metropolitana.
Interação tripartite
Sugere o consultor que o modelo educacional, sobretudo do Terceiro Grau e das escolas técnicas, tenha integração tripartite, do qual participem representantes acadêmicos, administração pública e agentes econômicos, casos de empresas e Sindicatos. Também nesse ponto a região é um tormento de vácuos e omissões. Menos mal, segundo Pose, que a dicotomia entre ensino e mercado não seja exclusividade do Grande ABC e nem do Brasil. A falta de integração coloca em patamares distintos a grade curricular das escolas e a realidade da demanda do mercado. Só a aproximação entre as partes poderá gerar o casamento da teoria e da prática em nível satisfatório, elevando a atratividade regional.
Importante também para que o Grande ABC desenvolva um figurino de ocupação de mão-de-obra que agregue muitos valores dos serviços industriais - segundo Pose - é não permitir que novas estocadas desfalquem o parque industrial. O consultor vai mais longe: além de procurar manter as empresas, o Grande ABC deve promover política industrial que fomente o fortalecimento de cadeias produtivas ligadas especialmente às montadoras de veículos, além de procurar complementação com outras atividades, sem priorizar especificamente qualquer ramo. “Manter as montadoras é passo importante nesse sentido, principalmente seus centros de administração" - enfatiza.
O professor trazido por Celso Daniel espera que a região saiba atrair pequenas e médias empresas para o cinturão de atendimento às grandes. Nada de guerra fiscal como elemento sedutor. A alternativa é outra. A proximidade entre empresas pesa muito, garante, quando se sabe que o fluxo de produção incorpora sistemas como o just-in-time. Se faltam espaços para grandes empresas, sobram para investimentos menores. Há galpões industriais à espera de investidores. Mas isso não é tudo. Sem mão-de-obra qualificada, tudo fica mais difícil. A qualificação deve levar em conta as novas tendências do mercado, nas quais se exigem implementações conjuntas de acadêmicos, setor público e meios empresariais e sindicais.
Exemplo da Dinamarca
Algo parecido com o que aconteceu - exemplifica o catedrático - numa região da Dinamarca que passou a desenvolver a indústria moveleira. Uma combinação de esforços conjuntos refletiu na construção de política setorial que representou resultados impressionantes. "O que houve lá, como em outros pontos em que se decidiu por políticas industriais e setoriais, foi a soma de esforços de todos os atores da sociedade" - explica.
Mobilizar agentes políticos, sociais, acadêmicos e econômicos não é tarefa fácil, segundo Andrés Rodríguez-Pose. Ele quer dizer com isso que o Grande ABC não deve fraquejar diante de eventuais dificuldades. Caso específico da indústria automobilística sediada na região, ainda fora da arena de debates sobre o futuro da economia do Grande ABC.
Pose cita o caso da Galícia, região do noroeste da Espanha, onde participou como protagonista das transformações. Diz que o Plano de Desenvolvimento Econômico local encontrou fortes resistências e que voluntários era o que menos se encontrava para executá-lo. Devagar a situação se reverteu e a região que se destaca pela pesca e produção de frutos do mar enlatados, além de agricultura e turismo, apresenta o menor índice de desemprego do País - de 14% contra a média nacional de 22%. "Hoje posso dizer que a demanda de voluntários é maior do que as tarefas a serem implementadas" - conta.
Redução de custos
Explica o professor da London School que a melhor arma para atrair as grandes e médias indústrias às causas regionais é oferecer-lhes profissionais qualificados a ponto de reduzir os custos de formação interna, garantir infraestrutura viária que assegure acessibilidade, entre outras ações práticas. Foi assim que a Galícia conquistou as empresas.
Política industrial local ou regional não se faz sem base de conhecimento. O professor Andrés Rodríguez-Pose tem informações sobre a encomenda do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC à Fundação Seade (Sistema Estadual de Análises e Dados), cujos resultados deverão oferecer radiografia completa do quadro produtivo na região. "Essa pesquisa é fundamental para o planejamento e a execução de política industrial. Nesse sentido, a Câmara do Grande ABC e o Consórcio Intermunicipal estão indo muito bem. Pouco a pouco acabarão encontrando o modelo econômico da região" - afirma. "Só não se pode correr o risco de escolher determinado setor para investir na complementação do atual perfil produtivo. É melhor diversificar" - completa.
Dieta escocesa
Por fim, Pose procurou temperar observações com pitadas de confiança. Comentou o radicalismo da abertura comercial do Brasil, sobretudo porque o Estado não oferece a rede de proteção social de que os países da Europa Ocidental são pródigos, como desencadeadora dos choques pelos quais passa o Grande ABC, região mais industrializada do País e até então poupada pelo regime de substituição de importações.
Mas -- lembrou o professor -- o quadro não tem a gravidade de Glasgow, importante centro de construção naval da Escócia, que, diante de mudanças macroeconômicas, perdeu 600 mil de seus 1,4 milhão de habitantes num período de 15 anos. "Aqui no Grande ABC apenas São Caetano perdeu um pouco de moradores, mas por outras razões" - disse Pose.
O problema, que talvez o consultor internacional não tenha conhecido de perto porque sua passagem por Santo André foi tão fértil quanto efêmera, é que a população do Grande ABC, como de todas as regiões metropolitanas do País, tem inchado sobremodo na periferia, com crescimento demográfico apontado pelo IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) acima da média nacional. Certamente o transbordamento do cinturão do Grande ABC é um caso mais complexo do que a dieta demográfica de Glasgow.
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