Na edição de maio de 1998 a revista LivreMercado publicou uma reportagem-análise que tratou do setor de autopeças no Grande ABC e as tendências para as temporadas seguintes.
A região já vivia processo insidioso de desindustrialização que se acentuava nos anos pós-Plano Real. Tudo porque o governo Fernando Henrique Cardoso protegeu as montadoras de veículos com alíquotas alfandegárias elevadíssimas e deixou ao deus-dará o setor de suprimento, de autopeças, à sanha internacional. Não bastasse isso, o campo de batalha nacional vivia ensandecida guerra fiscal. Ou seja: vigorava um vale-tudo.
Uma leitura atenta da entrevista com o então presidente do Sindipeças, Paulo Butori, é oportunidade de ouro para entender as razões que levaram a atividade industrial da região ao rebaixamento de participação estadual e nacional. As empresas familiares que forjaram a mobilidade social no Grande ABC foram praticamente dizimadas. Um genocídio empresarial, para ser mais claro.
A internacionalização da economia atingiu em cheio os pequenos e médios empreendedores nativos. Tudo sob a covarde política industrial do governo Fernando Henrique Cardoso. Como se os pecados da região, principalmente o ativismo sindical burro, que não distinguia pequenas e médias indústrias das grandes montadoras, não fossem suficientes.
Este é o trigésimo-quinto capitulo da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, uma junção de LivreMercado, revista impressa que circulou durante quase duas décadas na região, e esta revista digital.
Sindipeças faz
novo alerta
DANIEL LIMA - 05/05/1998
Os próximos quatro anos serão um grande campo de provas para a indústria de autopeças da região. É o prazo estimado para que outros polos automotivos do País estejam no auge da produção, entre 2001 e 2002, quando, então, a rede de fornecedores ao redor já terá parâmetros para estabelecer custos nas novas localidades em que estará atuando. Dependendo do Custo ABC, hoje reconhecidamente alto, a indústria de autopeças poderá zarpar de vez do Grande ABC ou transformar a região em mera compradora de componentes fabricados nos demais polos. "Isso inverterá a situação de hoje, ainda favorável à região como centro produtor de peças. Quando as filiais implantadas em outros Estados estiverem em atividade, ou forçarão a baixa dos custos das matrizes, ou inviabilizarão o ABC" -- prevê Paulo Butori, presidente do Sindipeças, empossado no mês passado para novo mandato até 2001.
Endereço de quase um quinto das cerca de 600 empresas do setor no País, o Grande ABC tornou-se chamariz de autopeças pela implantação da indústria automotiva brasileira. Paulo Butori também relaciona como atratividade da região os investimentos que as seis montadoras realizam em modernização. As ações mais recentes envolveram Ford e GM com as linhas do Ka e do Astra, respectivamente, além da promessa do novo projeto PQ 24 na Volkswagen da Via Anchieta e da importante plataforma mundial que a Scania faz de São Bernardo.
Sindicatos e os custos
Mas Butori insiste na tese de que os Sindicatos incharam os custos na região e de que a flexibilização nas relações do trabalho é um dos mandamentos capitais para as autopeças atravessarem os quatro a cinco anos que as separam da ameaça de passarem do papel de ator principal para o de apenas coadjuvantes no novo mapa automobilístico brasileiro. Os outros pré-requisitos são atualização tecnológica, busca incessante de produtividade, gestão enxuta e treinamento da mão-de-obra.
O receituário de Paulo Butori, que está no Sindipeças desde 1994, não é jogo de palavras. Pesquisa recém-concluída indica que no início da década o País possuía cerca de 1,3 mil autopeças, há dois anos eram mil e hoje são entre 500 e 600. E vem mais enxugamento pela frente, resultado do furacão de fusões e aquisições que varreu o setor por conta da globalização.
Em apenas três anos, de 1994 a 1997, o capital estrangeiro virou o jogo, saindo de participação de 48% para 60%, com previsão de no ano 2000 estar respondendo por 80% do comando do setor no Brasil. A reestruturação custou 51 mil empregos só nesse período. Na última década, de 1988 a 1998, foram ceifadas 103 mil vagas -- caíram de 288,3 mil para 185 mil em fevereiro último.
Leva-e-traz
Paulo Butori não está otimista com o cenário da virada do século. Se as fusões e jointventures foram o teste de sobrevivência do Brasil às compras mundiais impostas pelas montadoras, não significaram necessariamente modernização das empresas nacionais. O dirigente diz que os sócios estrangeiros, na busca sem trégua por ganho de escala, promovem frenético leva-e-traz de capital para países onde possam produzir grandes volumes e a custos baixos.
Por isso, só visualizam oportunidades de melhoria de gestão na compra de matéria-prima e peças importadas, e não em investimentos para desenvolvimento de produtos locais. Há uma prova inapelável disso: em 1997, pela primeira vez na história, o setor registrou déficit comercial de US$ 359 milhões, com as importações de US$ 4,401 bilhões ultrapassando as exportações de US$ 4,042 bilhões. Isso depois de já ter exibido superávit de US$ 1,41 bilhão em 1989.
Os históricos saldos positivos, entretanto, começaram a ser comprometidos a partir de 1992, com a liberação de compra de cerca de dois mil itens e drástica redução das alíquotas de importação, para até 2,4% (depois 4,8%, 7,2% e hoje em 9,6%).
"As fusões e aquisições não foram para complementar linhas de produtos, já que muitos dos itens brasileiros desapareceram. Foram substituídos por importação. Se do ponto de vista da sobrevivência de várias empresas o capital internacional foi um mal necessário, do ponto de vista da modernização foi uma catástrofe. Não investimos em novos produtos, não criamos empregos e, como se sabe, capital estrangeiro não tem pátria. Como chegou, pode ir embora para onde for mais conveniente" -- sublinha Paulo Butori.
Regime automotivo
Essa mesma visão ele tem em relação às novas montadoras, as newcomers, que prometem dar ao Brasil o troféu de maior base automobilística do mundo até 2003, com 17 plantas, contra 15 dos Estados Unidos. Essa não é necessariamente uma boa notícia às autopeças. "A maioria está chegando para aproveitar o regime automotivo, que lhes assegura cota de veículos importados no mercado interno e tarifas especiais, pela metade, para importar peças e máquinas. Não serão indutoras de novos negócios e empregos, porque a maioria importará para exportar. Quem vai fiscalizar os índices de nacionalização?" -- polemiza Butori. Ele elenca nesse time Honda, Toyota e Chrysler, os utilitários que chegarão em CKD para a Land-Rover montar na fábrica da Karmann-Ghia em São Bernardo, além do futuro incerto das asiáticas Kia, Asia e Hyundai. "Continuam a investir para valer as mesmas cinco ou seis montadoras que já estavam no Brasil" -- arremata.
São calculados em US$ 21 bilhões os investimentos no Brasil, anunciados por todas as montadoras, novas e antigas, até o ano 2000. A produção nessa data deve estar ao redor de 2,3 milhões de veículos. Por conta de isenção de impostos e doação de áreas, os investimentos automotivos se deslocaram para polos como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná, além de terem usufruído de incentivos especiais no regime automotivo do Nordeste. Alguns governos, como do Paraná e Rio de Janeiro, entraram inclusive como sócios das novas montadoras.
Sistemistas agravam
Se os esforços do Sindipeças até agora foram no sentido de aproximar capital nacional de sócios estrangeiros para colocar o Brasil no páreo das exigências de um novo mercado, não significa que as inquietudes cessaram. Um novo e gigante desafio passou a atender pelo nome de sistemistas, ou seja, fornecedores que passaram a trabalhar dentro da linha de montagem das automobilísticas com sistemas e módulos completos. São espécie de submontadoras e, como tal, negociam sem intermediários e participam de planos estratégicos das automobilísticas, como concepção e desenvolvimento de produtos.
Paulo Butori calcula que, das cerca de 500 autopeças, somente 40 terão status de sistemistas e concentrarão 80% do faturamento do setor na virada do século. Isso tornará no mínimo delicada, como ele próprio diz, a conciliação de interesses com o grupo dos demais 460 fornecedores indiretos, ou subsistemistas, geralmente de pequeno porte e vulneráveis diante de rígidas negociações de quantidade, qualidade e prazo de entrega com esses megagrupos.
O Sindipeças até já criou o Grupo dos Sistemistas, que na verdade passaram a dar o tom dos negócios aos demais fornecedores. O objetivo é abrir espaços para aproximar as necessidades dos dois níveis de empresas de autopeças. "Cada qual terá de ceder um pouco. Divididos, seremos fracos" -- comenta.
Fragmentação perigosa
O dirigente teme fragmentação como a verificada no ramo eletroeletrônico, que se cingiu em Abinee, agregando fabricantes de componentes, e Eletros, de eletrodomésticos. A empresa de consultoria KPMG acredita que, em âmbito mundial, os sistemistas globais que vão vender diretamente às montadoras não serão mais do que 20, o que dá ideia do poder de força que terão na definição e exigência dos fornecedores menores.
É por isso que Paulo Butori bate na tecla do Custo ABC e incita empresas da região a se tornar competitivas. Em âmbito nacional, grande parte assimilou a lição: até o final do ano passado, 300 empresas do setor já haviam conquistado o selo ISO de qualidade, 30 estavam certificadas pela QS-9000 (o ISO do setor automotivo) e outras 191 a caminho. O próprio Sindipeças obteve o ISO 9002, tornando-se o primeiro Sindicato brasileiro com a distinção.
Trabalhar sob padrões internacionais garante pelo menos uma porta aberta, segundo Butori: a das exportações. Já que não participa diretamente da concepção dos carros mundiais, cujos projetos são desenvolvidos no exterior, o Brasil pode pelo menos abastecer diretamente as linhas mais competitivas das montadoras, casos do Corsa, Pálio, Golf e do novo PQ 24 da Volks, que terá 70% de sua produção no País. "Os carros pequenos têm muito Ibope lá fora, por isso dão escala para o Brasil competir" -- festeja Paulo Butori. Ele está particularmente animado com a consolidação do Mercosul e a integração prevista pela Alca (Área de Livre Comércio das Américas) a partir de 2005.
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