Imprensa

30ANOS: Novo Sindicalismo
completa 20 anos. E daí?

DANIEL LIMA - 01/05/2020

Na edição de maio de 1998 escrevi para a revista LivreMercado (publicação que criei e dirigi por duas décadas) análise que considero imperdível sobre o então chamado Novo Sindicalismo. “Nem anjos, nem demônios” foi o título que escolhi.

Ao reler aquela análise antes de preparar a edição de hoje, que marca o trigésimo-sexto capítulo da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, fiz o que todo jornalista deveria fazer: examinei ponto por ponto o trabalho.

É covardia eliminar os 22 anos daquela publicação de eventuais considerações críticas. Quem o fizer estará flertando com a desumanidade. Mas vai cair do cavalo da impertinência se o objetivo é buscar alguma incoerência profunda deste jornalista.

Com poucos reparos que o tempo acabou por exigir (e que foram gradualmente registrados em textos posteriores), diria que “Nem anjos, nem demônios” poderia ser repetido com a data de hoje.

Um dos pontos que exigiria intervenção, ou atualização, refere-se ao Partido dos Trabalhadores que, de esperança, virou um trambolho prático sobretudo no período de Dilma Rousseff em Brasília, além de cultivar o maior escândalo na história do País – até porque os anteriores não foram devidamente apurados.

Além disso, repararia também a teimosia de uma ala mais radical do sindicalismo regional sob o controle da CUT – algo sobre o qual também já escrevemos muito.

Acompanhem na sequência o que LivreMercado publicou sobre os 20 anos do Novo Sindicalismo.

Nem anjos, nem demônios 

 DANIEL LIMA - 14/05/1998

Os 20 anos do Novo Sindicalismo de Lula e seus rapazes, iniciados com a greve na Scania de São Bernardo em 12 de maio de 1978, recomendam mais que comemorações exclusivamente classistas, as quais o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC soube promover. É preciso refletir sobre a repercussão daquele movimento no Grande ABC e no País. A primeira constatação é que os efeitos desencadeados ao longo dos anos por Lula, Jair Meneguelli, Vicentinho Paulo da Silva, Guiba Navarro e por Luiz Marinho no sindicato mais aguerrido do País tiveram ressonâncias políticas, econômicas e sociais revolucionárias, mas de intensidade diferente em âmbito regional e nacional. 

Não se pode fechar os olhos para os pontos negativos resultantes do Novo Sindicalismo, da mesma forma que seria idiotice supor que nada de positivo tenha ocorrido. O grande pecado que se comete quando se analisa o movimento sindical liderado por Lula é atribuir-lhe o céu da perfeição de desempenho ou o inferno de desatinos, como se o quase presidente da República no pleito de 1989 fosse Deus ou Satanás. 

Há jornalistas de nomeada engajados politicamente demais para avocarem neutralidade em qualquer tipo de análise que envolva capital e trabalho. São capazes de dizer que viram Lula e seus rapazes travestidos de anjos, prontos para entrar no paraíso do mais absoluto comprometimento social. Há também aqueles que, inversamente, pintam os protagonistas mais importantes do cenário sindical de esquerda a partir do final dos anos 70 como demônios de equívocos que precisam ser exorcizados. 

Está na política, com o surgimento do Partido dos Trabalhadores, o saldo mais positivo da Era Lula. É verdade que o PT tem sofrido processo de rompimentos, que já não tem a base popular de seus primórdios, que os jovens já não se encantam tanto com suas mensagens, que muitos intelectuais já bandearam para o transatlântico mais promissor do situacionista PSDB e que também sofre para conter seu próprio divisionismo. Tudo isso é fato. 

Mas o PT é o que de mais consistente se encontra na esquerda nacional. Embora abarque muitas facções ideológicas, da direita civilizada à esquerda mais retrógrada, o que prevalece é o ramal da Articulação, da qual Lula é sua principal liderança e farol, cujo pensamento básico excomunga o chamado neoliberalismo sem, entretanto, bandear-se ao extremo oposto do socialismo cubano. 

Contraponto aos exageros 

A importância de contar no espectro político nacional com um partido enraizadamente social como o PT é o contraponto aos eventuais exageros de um capitalismo que se vê desafiado pela globalização cada vez mais doutrinadora da eficiência, do individualismo, dos resultados. O tempero social que o PT oferece com pregações de seus representantes no Executivo, no Legislativo, no sindicalismo, nas universidades e nas comunidades chama a atenção contra a voracidade com que se tenta inserir o País num mundo sem fronteiras financeiras, econômicas e até mesmo culturais. 

Alguns, entretanto, veem esse quadro com binóculos de lentes invertidas, cultuando velhos chavões que falam de independência, de autonomia, de nacionalismo, como se já não se estivessem às portas de um novo século e de insuperáveis conquistas no mundo da informação, foco das grandes transformações por que passa a humanidade. 

Mais preparados para funções legislativas do que para executivas, os petistas não deixam de oferecer também alguns legados positivos como administradores. Basta pegar o caso de Diadema, aliás, muito mal trabalhado nas campanhas eleitorais do partido. Em três gestões seguidas, a partir de 1985, com Gilson Menezes, José Augusto da Silva Ramos e José de Fillipi Júnior, Diadema deixou de ser insuportável amontoado de favelas inabitáveis, de ruas intransitáveis, de mortalidade infantil nordestina, entre outros comprometedores indicadores de infraestrutura social e de serviços. Só não se livrou da pecha e da realidade de alta criminalidade, porque aí já seria pedir demais. Mas tentativas nesse sentido não faltam, até mesmo com uma campanha na mídia eletrônica a desafiar o próximo crime no estilo da Favela Naval. 

Também em Porto Alegre o Partido dos Trabalhadores fez sucesso como administrador e tem semeado sucessores. Em Santos, onde Telma de Souza inaugurou ciclo que teve continuidade com o médico David Capistrano, o revanchismo interno quebrou a sequência de comando partidário, da mesma forma que em Diadema, onde um Gilson Menezes filiado ao PSB passou a ocupar o Paço Municipal depois de superar nas eleições o então candidato petista José Augusto da Silva Ramos, mais tarde expulso do partido. 

Positivismo comunitário 

Sem precisar detalhar outros exemplos de cargos executivos, e sem recorrer a casos de eficiência legislativa, porque nesse aspecto é latente a impetuosidade, a dedicação, o empenho e o grau de responsabilidade da maioria de seus representantes, o Partido dos Trabalhadores gerado pelo sindicalismo de São Bernardo apresenta resultados mais favoráveis que contrários. Uma nova classe política deriva de suas origens trabalhistas. O entranhamento social, que se contrapõe na maioria dos casos ao individualismo de partidos ditos conservadores, contribuiu para dar às Câmaras Municipais, às Assembleias Legislativas e ao Congresso Nacional substancioso elixir de revigoramento comunitário. 

Essa qualificação, cuja doutrina está claramente vinculada ao socialismo democrático europeu ocidental, tem também lances populistas, com fórmulas miraculosas de superação de agudos problemas sociais, como se as adversidades econômicas fossem pontes a ser detonadas pelo voluntarismo messiânico de quem está no poder. Pecam os petistas pela exacerbação das funções do Estado. Mas já há facções entre os moderados que não se acanham em defender privatizações, com natural gerenciamento do Estado e da sociedade. 

Menos positivo 

Já em termos econômicos, o Novo Sindicalismo não consegue agregar tantos resultados positivos. A começar, porque concentrou atuação na Região Metropolitana de São Paulo. Mais propriamente no Grande ABC. Se é verdade que esse sindicalismo contestador, que ajudou a derrubar a ditadura militar, serviu para estabelecer relações mais respeitosas entre patrões e empregados, o que por si só lhe assegura média significativa na sabatina da modernidade, também acabou por exagerar na dose. O Grande ABC sofreu as dores do parto do sindicalismo como nenhuma outra região do País. Exageros foram cometidos ao longo dos anos não só na tentativa de instaurar civilidade entre empreendedores e empregados, mas também pelo maniqueísmo de que as partes representavam o capital, espoliador na interpretação sindical, e o trabalho, abusado na interpretação empresarial. 

Está no papel de Lula, de Luiz Marinho e de tantos outros sindicalistas de outrora ou de agora, minimizar as sequelas das armadilhas preparadas por eles contra as empresas. É lógico que vão repetir que a debandada empresarial é motivada principalmente pelo custo elevado do metro quadrado, pelo sistema viário obsoleto, pela infraestrutura cara, pela estratégica necessidade de descentralizar a produção combinada com a aproximação de novos polos industriais e, mais recentemente, pela conjuntura econômica de abertura indiscriminada. Tudo isso é verdadeiro e válido. Tanto quanto a invariavelmente negada poção de responsabilidade do esbravejamento sindical. 

Base quente 

Até hoje, por mais que muitas das lideranças sindicais tenham se convertido em defensoras intransigentes de negociações, buscando harmonizar as contendas, há em boa parte da base de trabalhadores do Grande ABC a cultura do grevismo, do oposicionismo ao capital, da interpretação de que todo empresário é aproveitador. Essa animosidade só não se cristaliza em novos movimentos grevistas porque, como se sabe, está tão difícil encontrar emprego quanto descobrir a fórmula consagradora de combate eficaz à calvície. 

As maiores vítimas de todo esse processo de guerrilhas foram as pequenas empresas, niveladas às grandes e médias nas negociações e nas convenções trabalhistas. Sem força para se fazer representar nas negociações do setor, cujos Sindicatos historicamente são liderados pelas grandes empresas, as pequenas indústrias do Grande ABC se viram permanentemente entre a cruz e a espada -- ou cumpriam as cláusulas que lhes eram determinadas, ou se debatiam com greves que lhes asfixiavam a respiração financeira já vacilante.

Nenhum sindicalista se apercebeu que as pequenas empresas já sofriam com o jogo desigual de ter de se abastecer com matérias-primas de monopólios e oligopólios, que lhes impingiam os preços e as condições de pagamento que bem lhes aprouvesse, e de fornecer produtos para grandes conglomerados igualmente em desvantagem de negociações mercantis. Principalmente quando se tratava das montadoras de veículos, grande vitrine das chamadas conquistas sociais dos trabalhadores, em cujas instalações internas e externas se procederam as principais batalhas sindicais, sempre ocupando destaque na mídia. 

Reajuste de 40% nos tempos inflacionários e de mercado fechado não significava problema maior para as montadoras, cujas folhas de pagamento, à época, não ultrapassam 6% dos custos gerais. Mas para as pequenas a dose era cavalar. A planilha de custos com os funcionários atingia em média 25% a 30%. O que se registrou ao longo desse período foi constante empobrecimento das pequenas indústrias, invariavelmente sem recursos para atualização tecnológica, muitas das quais simplesmente desapareceram com a abusada abertura dos portos a partir do governo Collor. 

Desigualdade complicadora 

Esse tratamento desigual, colocando-se na mesma panela de pressão ingredientes díspares como grandes, médias e pequenas indústrias, só poderia dar em congestão econômico-financeira. A combatividade sindical, inerente a quem procura espaços para equilibrar o jogo entre capital e trabalho, condição essencial do próprio desenvolvimento econômico, social e democrático, não teve nessa descabida equidade de tratamento a postura mais inteligente. Da mesma forma que o governo federal jamais se incomodou com o sofrimento das pequenas indústrias. Diversamente do que se verificou, por exemplo, com a Itália, que tem nos empreendedores de menor porte manancial inesgotável de consolidação econômica e social, o Novo Sindicalismo tratou o segmento a bofetadas. 

A atuação geograficamente parcial do modelo do Novo Sindicalismo -- confirmada na entrevista de Lula na edição de abril desta publicação, quando se referiu especificamente à tranquilidade que a Fiat encontra em Betim, Minas Gerais -- também levou o Grande ABC ao altar de sacrifícios em relação a outros polos econômicos do País. A explicação é simples: enquanto o tônus de conquistas dos trabalhadores foi se acentuando a cada negociação com os empresários, num exercício permanente de potencialização do poder sindical, outras regiões do Estado e do País beneficiavam-se da manutenção de um perfil conservador de relações entre capital e trabalho. O resultado dessa equação é que se construiu no País um adicional trabalhista da infraestrutura Custo Brasil -- o terrível Custo ABC. 

Os sindicalistas da região, é evidente, desconversam sobre o Custo ABC, em que incidem componentes sindicais. Mas gradativamente vão sendo seduzidos a abrir mão de várias das conquistas históricas. Horas extras com acréscimos de até 200% dos valores contratuais estão desabando na mesma toada das pressões das empresas pela redução da folha de pagamentos. Cláusulas de proteção social, casos de seguro-saúde, vale-transporte, vale-estudo, vale-refeição e vale-educação, num vale-tudo de funções geneticamente de Estado, também vão sendo podadas. Aqui e ali surgem cortes percentuais de subsídios, quando não totais. Tudo porque há absoluto desequilíbrio entre os benefícios da mão-de-obra razoavelmente qualificada da região e a mão-de-obra igualmente razoavelmente qualificada do Interior paulista ou mesmo de Minas Gerais, Estado que mais se beneficiou com a debandada de empresas do Grande ABC. 

Não estão enganados os sindicalistas que observam tudo isso com desalento e interpretam a situação como retrocesso. Afinal, são anos de lutas que se vão desmanchando em novas negociações. Mas essa é a alternativa que resta aos trabalhadores para conservar seus postos numa economia mundializada em que sobram ofertas de terras, de isenção de impostos, de melhor qualidade de vida, de mão-de-obra suficientemente preparada para receber novas fábricas, longe de exóticas cláusulas trabalhistas que preveem até absorventes íntimos gratuitos às funcionárias. 

Paradoxo 

O Novo Sindicalismo completa 20 anos de ativismo sem deixar de acusar os golpes de uma reviravolta econômica que, paradoxalmente, ajudou a erigir, à medida que circunscreveu atuação mais incisivamente transformadora a determinada região de determinado Estado, no caso a Grande São Paulo e o Grande ABC. O rebaixamento da massa de salários que já atinge a região e que se vai acentuar à medida que se eleva o desemprego e se aprofundam novas rupturas de convenções trabalhistas sem dúvida afetará a própria economia regional. A tendência é de perdas conjuntas, com ressonância generalizada, com queda dos valores dos imóveis, como aliás já está acontecendo. É o preço que se pagará por ter sido o Grande ABC ponta-de-lança de mudanças socioeconômicas geradas pelo sindicalismo mais atuante, mas sem ações abrangentes ontem e hoje em todo o País. 

Em suma, o que se tem depois de 20 anos é uma histórica ação trabalhista com repercussões políticas que estudante algum poderá ignorar, que político algum poderá desdenhar, que empresário algum ousará subestimar, que intelectual algum poderá desmerecer, mas que também deixou rastro de dicotomias, de imperfeições, de sequelas econômicas e sociais que sugerem atenção redobrada nas avaliações de resultados tanto domésticos quanto nacionais. 

O Novo Sindicalismo provavelmente foi muito mais importante politicamente do que na esfera trabalhista, porque enquanto no primeiro caso repercutiu por todo o País, auxiliando na reavaliação de usos e costumes, no segundo tratou de, descontados todos os fatos positivos, imprimir a marca da divisão entre territórios eventualmente evoluídos e outros desgarrados de avanço significativo na relação capital e trabalho. Enfim, o Novo Sindicalismo estourou nas paradas de sucesso da política Nacional, mas empacou domesticamente na revolução das relações entre patrões e empregados. Trata-se, como se observa, de um quasímodo que merece tanto reverência quanto crítica -- longe, portanto do endeusamento de alguns e da satanização de outros. 



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