Vai completar 22 anos em julho próximo o que você pensa que é manchetíssima de hoje. Sim, a Cidade da Criança virou Cidade da Vovozinha faz muito tempo. Foi o que mostramos na edição de julho de 1998 da revista LivreMercado. Este é o quadragésimo-segundo capítulo da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País. Estamos escarafunchando a história recente do Grande ABC. Sem condicionamentos de qualquer espécie. Seria o fim da picada filtrar os textos do passado sem filtros num presente que segue sem filtros acomodatícios.
Os 30ANOS do melhor jornalismo regional do País não são uma força de expressão publicitária, uma jogada de marketing. Os 30ANOS são a maneira mais apropriada para as novas gerações entenderem o que se passou para valer na região, sobretudo a partir de 1990, quando LivreMercado foi lançada na esteira do alucinante Plano Collor, alquimia da turma de Zélia Cardoso de Mello que surrupiou o dinheiro de todo o mundo em nome do combate à inflação. O Plano Collor foi por algum tempo, no campo econômico, algo muito pior que os efeitos do vírus chinês.
30ANOS do melhor jornalismo regional do País é uma junção de LivreMercado (1990-2009) e desta revista digital, criada em 2001. Deleite-se com a Cidade da Vovozinha.
Pobre Cidade
da Vovozinha
DANIEL LIMA - 05/07/1998
A Cidade da Criança envelheceu tanto -- como mostrou LivreMercado há três meses em reportagem especial de capa -- que deveria ser rebatizada de Cidade da Vovozinha. Assemelha-se a desmanche a situação deste que já foi -- nos tempos em que as vovós de hoje eram crianças de ontem -- o principal parque de entretenimento da região. Posso falar de cátedra, dentro das minhas limitações, mesmo sem ter idade de vovô e mesmo sem ter frequentado o local quando criança, porque morava no Interior. Pelo menos três vezes por semana corro no entorno, já que moro nas proximidades e não consigo resistir a oito, 10 quilômetros de manutenção física em cada jornada. As ruas que envolvem a Cidade da Vovozinha são cheias de altos e baixos.
Desafio meu fôlego e a musculatura ao optar pelo sentido horário da corrida, que contempla mais aclives que declives. A explicação talvez seja o fato de que, exceto às dores de perdas humanas, já me acostumei com a missão de enfrentar obstáculos. Há os bem-aventurados, equipados com dispositivos especiais, que tudo conseguem sem grandes esforços e desafios. Mas isso é outra história.
Voltemos à Cidade da Vovozinha. Durante a semana, o espaço antigamente nobre está às moscas. Nos finais de semana, está às baratas. A situação de desorganização chega a tal ponto que os poucos visitantes formam fila na única e precária bilheteria. Os incautos podem imaginar que o afluxo faria inveja aos grandes clássicos do futebol brasileiro. A morosidade de atendimento, a falta de troco, o desinteresse dos atendentes, tudo isso contribui para o agravamento da esclerose da infraestrutura física, material e de serviços da Cidade da Vovozinha.
Desencanto dos filhos
Os brinquedos, como se sabe, são do tempo do onça e estão permanentemente encrencados. Mas o pior mesmo é que estão desatualizados em relação a um mundo infantil em que vídeo games, computadores e outros apetrechos tecnológicos transformam a fantasia em virtualidade. Mais que isso: a manutenção é feita sem o menor cuidado ambiental. Há duas semanas, senti na rua forte cheiro de tinta fresca que vinha de seus interiores. Um funcionário, respondendo-me rapidamente, enquanto diminuía o ritmo da corrida para não ficar sem a informação, disse que estavam pintando um brinquedo. A céu aberto. Indiferente às consequências provocadas pelo cheiro e pela nuvem de tinta. Sou suspeito, porque não suporto produtos químicos, principalmente esses que empesteiam residências e escritórios a pretexto de limpeza e higiene. Mas que fazem mal, principalmente para crianças, não tenho dúvida. Ainda mais que na semana seguinte o cheiro mantinha-se forte, como se a tarefa de maquiagem não fora completada.
Mesmo num ritmo normal de corrida em que procuro acrescentar mais vida em meus anos, não anos em minha vida, como escreveu certa vez o craque Armando Nogueira, é possível ouvir reprovações à Cidade da Vovozinha. É comum pescar diálogos entre pais claramente frustrados com o desencanto dos filhos. Afinal, prepararam os pimpolhos para um programa de atrações dignas dos estertores de um século pródigo em inventividade e se viram, eles próprios, num frustrante túnel do tempo. Tivesse Hilda Furacão passado a infância na região, seria barbada a ambientação na Cidade da Vovozinha. O cenário não exigiria qualquer retoque, porque tudo exala passado.
O envelhecimento da Cidade da Vovozinha não é obra de uma gestão apenas. É construção do descaso de contínuas administrações públicas, inclusive do Legislativo, cujos integrantes, ao longo dos anos, mais que usufruíram politicamente daquele acervo infantil com farta distribuição de passaportes da alegria. Faça-se justiça: o prefeito Maurício Soares está decidido a dar novos rumos a essa área, que só resiste a tanta incúria histórica porque é detentora de uma marca forte.
Não há mais tempo a perder. Ou se entregam a gestão e a operação à livre-iniciativa, com responsabilidade e compromissos de eficiência, sem intromissão política, ou a Cidade da Vovozinha vai mesmo para o beleleu.
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