A pergunta do título é provocativa, mas também esclarecedora para quem topar seguir em frente. Espero que a resposta tenha algum paralelo com eventual consulta médica. O que quero dizer com isso? O leitor confia na chutometria ou em exame mais aprofundado para saber se a dor de cabeça que anda sentindo pode ser combatida com sugestões lotéricas ou enquadrada nos rigores da medicina?
Pois é essa a distinção entre o texto que a Folha de S. Paulo publicou ontem, assinada pelo jornalista Igor Gielow, e a contra-argumentação que preparei. Por que esse confronto saudável? Porque leitores menos criteriosos, leitores excessivamente engajados politicamente e mesmo leitores vacinados contra vieses possam distinguir fatos de especulações.
O tema é o vídeo barulhento da reunião ministerial do governo Jair Bolsonaro, em 22 de abril. Foi naquele encontro que se teria dado o gatilho final para a retirada do então ministro da Justiça, Sérgio Moro.
Escalonei o texto do jornalista da Folha. Produzi espécie de réplica. Aliás, não é a primeira vez que faço debate virtual, por assim dizer. Todo o mundo sabe que a Folha de S. Paulo faz parte da confraria da Grande Mídia que quer derrubar o presidente da República. E todo mundo eventualmente pode saber que este jornalista não concorda com as investidas, entre outras razões porque conheço bem o gado midiático de porte avantajado. E também as circunstâncias que embalam a campanha rumo ao impeachment. Muitas das quais, aliás, estão cuidadosamente nos meus arquivos.
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A serem confirmados os relatos do que disse Jair Bolsonaro na reunião ministerial realizada em 22 de abril, o presidente terá fornecido um “casus belli” barulhento para quem o quer ver derrubado por improbidade administrativa. Não chega a ser surpreendente que o chefe de Estado tenha colocado abertamente a prevalência de sua família sobre os assuntos do governo na frente de mais de duas dezenas de pessoas. Ele já havia feito isso antes, como no episódio da indicação do filho, Eduardo, para a embaixada em Washington. Bolsonaro é assim, e cumplices do comportamento são todos os ministros presentes. Com a exceção daquele de Sergio Moro, que jogou as migalhas de pão que levavam ao vídeo. Relativa, pois, o presidente poderia ter sido demovido por seus ministros militares da intenção de mexer com a encalacrada superintendência fluminense da PF. Nesse caso, Moro ficaria quieto acerca das intenções do presidente, como permaneceram os seus então colegas de Planalto?
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Qualquer ilação sobre o conteúdo do vídeo considerado bombástico por alguns e frouxo de indícios delitivos por outros corresponde a formatos especulativos típicos de quem tem interesses a defender muito além da prática de jornalismo responsável. Por isso precisa ser relativizado e ponderado o entusiasmo geral da mídia contrária ao presidente da República que se lança a precipitações de análises tanto quando congressistas às primeiras e desencontradas informações da sessão que apresentou o que seria a prova de fogo contra o presidente Jair Bolsonaro. Quem cometer a imprudência de, no calor de mexericos, cair na maliciosa disseminação de informações que colocariam o presidente em maus lençóis deveria ouvir atentamente o outro lado, no caso o próprio presidente da República que, ante vazamentos preliminares da apresentação do vídeo, reagiu com descaso, certo de que, segundo sua avaliação, nada que houve naquela reunião abriu brecha ao encaminhamento de eventual impeachment, sonho dourado da oposição. Avaliar criteriosamente as duas posições é o dever do bom jornalista.
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Isso agora é história contrafactual. O fato é que, salvo algum desvio nos relatos disponíveis, Bolsonaro está enrolado. Uma coisa é querer um novo diretor da PF porque o anterior não estava alinhado a seus ideais, sejam lá quais forem. Isso é péssimo do ponto de vista republicano, mas ainda navega dentro de um escopo de legalidade. Outra coisa é dizer que precisa cuidar dos interesses de seus filhos e amigos.
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A reunião ministerial ainda é um mistério quanto à efetiva intenção de Jair Bolsonaro ter-se manifestado em forma de ameaça à troca do diretor-geral da Polícia Federal e também do Superintendente do Rio de Janeiro. Há versões conflitantes sobre a exposição do presidente. Depoimentos prestados em inquérito policial não confirmam diretamente a ação de Bolsonaro vinculada à Polícia Federal. Parece não haver dúvida de que não se dirigiu nada no sentido de proteção aos familiares fora da órbita legal do GSI, Gabinete de Segurança Institucional, comandado pelo general Augusto Heleno. Como a controvérsia, o mais recomendável é esperar.
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Fica claro que os motivos alegados para esconder a peça, de suposto risco à segurança nacional, eram só uma cortina de fumaça. Quem defende o presidente afirma que ele apenas se vê alguém perseguido. Por isso, volta e meia ele diz que “não mandou matar Marielle”, como se fosse Bolsonaro, e não pessoas ligadas a seu ex-faz-tudo Fabrício Queiroz, o suspeito disso. Pode ser, e o episódio do porteiro que mudou de versão sobre o contato de suspeitos com o “seu Jair” lhe dá o benefício da dúvida. Mas só a construção dessa sentença mostra a dificuldade de defesa do presidente. A alternativa, sonho de consumo dos opositores do Planalto, seria alguma implicação direta com o assassinato da vereadora do PSOL e seus motorista, em 2018, com a família presidencial. A pressão internacional seria enorme.
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Uma das artimanhas para colocar o presidente da República na defensiva ou em embaraços são as seguidas tentativas de relacioná-lo à morte da vereadora Marielle. Não faltam articulistas que organizam armadilhas semânticas para si próprios. Ardilosamente articulam narrativa que colocam o presidente e familiares no epicentro do crime, repassado a executores profissionais, e, em seguida, para fugir de responsabilidade penal, mas já contaminando a narrativa, atribuem ao presidente a dificuldade de se desvencilhar de suposta encrenca. Esses articulistas são mais que engenheiros de obras feitas. Eles fazem as obras de forma precária, suscetível à derrocada factual, mas usam vacinas para se desvencilharem de implicações éticas e criminais. A introdução do caso Marielle na narrativa do caso do vídeo não passa uma muleta para supostamente dar suporte de credibilidade à avaliação da reunião ministerial de 22 de abril.
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A questão agora é saber se a partir do vídeo e dos depoimentos do caso, a Procuradoria-Geral da República imputará crime ao presidente. Ninguém em Brasília aposta nisso, dadas as afinidades eletivas entre Augusto Aras e o presidente, e também pelo fato de que há desconfiança no Supremo Tribunal Federal acerca das intenções de Moro nessa crise.
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Entre as manobras interpretativas para desmoralizar qualquer resultado do inquérito que não se encerre com a decapitação do presidente Jair Bolsonaro está a instalação da dúvida sobre a retidão ética e técnica de instituições que zelariam pelo sistema de Justiça do País. Ergue-se, para tanto, uma fortaleza unilateral de argumentos supostamente monolíticos e entrega-se o destino do resultado à intempérie de conchavos. Essa é antiga e surrada tática diversionista.
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Pesa ainda em favor de Bolsonaro o fato de que tal motivo para a guerra enfrenta a apatia do meio político. Quando Moro saiu do governo, aliados de Rodrigo Maia (DEM-RJ) diziam que o presidente da Câmara dos Deputados poderia aceitar uma abertura do processo de impeachment no caso de uma denúncia por crime de responsabilidade no Supremo. Nas semanas subsequentes, o processo de compra e apoio do Centrão com cargos sugeriu a inviabilidade de tal cenário se concretizar. No momento, é bom enfatizar, pois o Centrão também esteve com Dilma Rousseff até quando lhe foi conveniente, e em sua encarnação dos anos 1990, com Fernando Collor.
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A retirada de Jair Bolsonaro da presidência da República não é tarefa fácil. Os oposicionistas já sentiram o impacto de que um golpe que se ensaiava e ainda está vivo é menos portentoso que o contragolpe das forças bolsonaristas. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, foi encurralado por manifestantes tanto no entorno de sua residência quanto nas imediações da Câmara Federal. O alinhamento de congressistas, acadêmicos, Grande Mídia e de setor intelectuais refluiu quando bolsonaristas foram às ruas. Diferentemente, portanto, de Dilma e Collor. Os pecados capitais dos dois apeados do poder estão longe de trafegar pelo mesmo caminho de supostas inconformidades de Jair Bolsonaro. Dilma e Collor jamais contaram com a retaguarda de um eleitorado que representa solidamente 35% dos brasileiros, ancorados nas redes sociais; ou seja, fora da mídia tradicional que, todos sabem, perdeu muito espaço desde que inventaram a Internet e sobretudo os smartphones.
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O apoio angariado pela ala militar do governo ao presidente no seu embate com os Poderes, apesar de diversos incômodos em relação ao serviço ativo das Forças que isso gera, também forneceu uma talvez ilusória sensação de reorganização do quadro político para Bolsonaro. Ilusório porque Bolsonaro é Bolsonaro com sua condução deliberada da crise do Coronavírus para um estado de tragédia nacional e por atos falhos como o registrado na reunião de 22 de abril. A pressão econômica já está entre nós, assim como os cadáveres da Covid-19, e pesquisas começam a indicar uma aceleração na rejeição do presidente.
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Parece não haver dúvida sobre o suporte dos militares da ativa e da reserva ao presidente Jair Bolsonaro. Manifestações públicas fizeram estremecer opositores mais raivosos ou inconformados. O Clube Militar produziu documento devastador ao remeter o Supremo Tribunal Federal ao rés do chão constitucional. Negar a influência dos militares no governo Bolsonaro é trapaça que não se sustenta. Basta observar quem ocupa postos-chave no Palácio do Planalto. O que articulistas cegos de raiva não perceberam ainda é que os militares têm em Jair Bolsonaro exatamente o que mais apreciam para seguirem discretos no Poder: Bolsonaro trata os opositores mais encardidos com a truculência verbal que o levou à presidência da República contra todo o sistema corrupto que as urnas rejeitaram dois anos antes, também, nas eleições municipais. Os índices de rejeição ao presidente da República não sofreram abalos além da margem de erro de pesquisas de vários institutos. Dados de dezembro do ano passado e de abril deste ano, durante o vulcânico invasor viral, confirmam a sustentação de um terço do eleitorado a Jair Bolsonaro. Um exército que não admite deposição sem lastro criminal. A pressão econômica que já se mistura ao caos na saúde custará caro também a governadores que adotaram políticas de isolamento radical e generalizada, sem ponderações geoeconômicas. A presidência da República, por decisão do STF, perdeu a dirigibilidade federal para o enfrentamento ao vírus. Bolsonaro caiu em desgraça ante o eleitorado mais crítico ao comparar o Coronavírus a uma “gripezinha”, mas opositores com ímpeto à disputa presidencial em 2022, como o João Doria, governador de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio, incentivaram festejos carnavalescos quando o demônio vindo da China já se espalhava pelas duas capitais e, também, agarraram-se ao credo do isolamento sem mitigações que comportasse atividades econômicas.
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É nesse contexto que precisa ser lido o impacto da autoincriminação sugerida no vídeo. O acirramento da crise tríplice do país, sanitária, econômica e política, ganhou agora mais um elemento na sua disputa contra as forças de contenções que sustentam Bolsonaro. Mais concessões ao Centrão e novos episódios de enfrentamento institucional para agradar sua base radical e assustar o “establisment” estão no preço dessa dinâmica. O problema, para Bolsonaro, é que seu padrão se tornou previsível e, no limite, insustentável sem ruptura real. Ou, na ilusão do bolsonarismo raiz, a solução.
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Nessa altura do campeonato, o que forças de oposição ao governo Jair Bolsonaro mais sonham é com a radicalização da direita, porque isso faria parte do jogo de pressões e contrapressões pelo comando político do País e os desdobramentos que tudo isso implicaria. A Grande Mídia faz parte dessa operação de guerra ao intitular-se defensora da democracia. Basta acompanhar com razoável atenção como a Grande Mídia está unida como nunca, fruto de dieta de receitas publicitárias do Estado. O que seria a batalha da ponte à deposição de Jair Bolsonaro, o caso do vídeo poderá se tornar uma causa de resultado zero, como prevê o criminalista Roberto Podval, sereno avaliador da conjuntura institucional brasileira. A narrativa de profissionais da Grande Mídia segue o roteiro desenhado por um cartel informativo que se desqualifica na medida em que tudo que seria pecado da gestão de Jair Bolsonaro vira manchetíssima de jornais enquanto ações frutíferas (existe uma multiplicidade) são deslocadas aos cantinhos perdidos das edições. Tem razão o articulista da Folha de S. Paulo quando afirma que Bolsonaro é previsível. A oposição também o é. O que os difere é que já não é possível derrubar presidentes, sejam quais forem os motivos, sem a retaguarda de parcela substancial da população. E, por enquanto, apenas Bolsonaro leva gente às ruas. E não sofre constrangimento algum (muito pelo contrário) ao frequentar as mesmas ruas e botecos dos populares. Já os oposicionistas não abrem mão de quarentenas voluntárias. Mesmo se o isolamento social acabar amanhã.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)